Sabemos o que são polémicas em Letras e na política, por vezes duras e cheias de paixão, carreando argumentos de todos os campos do conhecimento. Em ciências, aquilo a que se chama polémica são perguntas feitas por favor no final de uma comunicação a um congresso e as críticas por causa das vírgulas mal colocadas numa tese de doutoramento. O cientista trabalha dentro de um sistema fechado de ideias que ele mesmo construiu, esse é o seu castelo de cartas, o seu paradigma. Em princípio está apto a discutir qualquer assunto do paradigma, dentro do esquema paradigmático. Fora dele, não. Perguntem a um mamalogista seja o que for acerca de ratos, esquilos ou essas preguiças da imagem, e ele sabe tudo sobre a matéria, e até quantos pêlos tem a mancha nas costas dos animais: as manchas de pêlos distinguem espécies, essa é Arctopithecus griseus Gray. Ou era, ao tempo em que Gray descreveu a espécie, no século XIX. Hoje o nome deve ter mudado, e o que eu escrevi, passível de críticas por parte dos especialistas, sendo assunto interno ao paradigma, é um sinónimo, uma designação desactualizada. Os pêlos são caracteres diagnosticantes: a ciência estipulou que os pêlos são fundamentais para discriminar espécies e variedades de animais. As Letras nem sequer entendem isto, riem-se, a menos que se vá um pouco mais longe.
Digam ao naturalista que essas preguiças de mancha nas costas foram deixadas de propósito pelos colegas no lugar onde vivem, se ainda lá vivem, para estudarem o modo como a mancha nas costas desapareceria ou se ampliaria no curso das gerações, e ele primeiro diz "Não!", e dali não sai, porque não tem prova nenhuma em que assentar o seu "não" (a menos que haja fósseis da espécie na região, e muitas vezes não há). Note-se que estou a dar um exemplo, nem sei de onde são esses animais. Depois o naturalista fica sem pinta de sangue, mete o rabo entre as pernas e foge para a sua toca, recusa-se até a dar a cara, se quem faz declaração tão subversiva apresenta alguma prova. O naturalista não admite sequer estudar essa hipótese, ela não faz parte do seu sistema de ideias, e mais: entende que a introdução ou hibridação, mesmo praticada em séculos transactos com objectivos científicos, é uma fraude. Encostado à parede se forçado a ver, ele jamais cederia. Trataria, isso sim, de eliminar todas as provas da fraude que encontrasse: registos em etiquetas, listas de remessas, cartas dos colectores, animais em frascos, livros, e quem sabe se não eliminaria da Natureza os animais nessas circunstâncias que tivesse a oportunidade de capturar. É uma pena que a verdade tenha deixado de ser o objectivo do conhecimento, e que o conhecimento científico se limite a ser uma construção ideológica. Felizmente o escritor tem outros recursos, e mesmo quando fala com as paredes, há sempre uma orelha nelas que se arrebita para ouvir. |