RODRIGO PETRONIO E O NATURAL

Uma das experiências ganhas por mim no TriploV é a de ir verificando que as nossas referências culturais são comuns: europeus e americanos têm aparentemente a mesma formação universitária. Rodrigo Petronio, a partir de agora nosso colaborador (tem link em baixo para o seu directório), é um claro exemplo desse cosmopolitismo. Na colectânea de ensaios "Transversal do Tempo" (Prefeirura do Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2002) predomina até a cultura europeia. De notar o modo não escolástico da sua expressão, mérito aliás reconhecido por outros críticos: este jovem escritor não revela ter feito voto de obediência a nenhum magister, seja ele Baudrillard ou Umberto Eco, nem de castidade relativamente ao seu próprio desejo de dizer - daí um discurso culto, mas sem excesso de referências e citações que afoguem a identidade da sua voz.

Dez ensaios apresenta o autor neste livro, maioritariamente sobre temas europeus, desde Lucrécio a Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, passando pelo amor cortês dos romanceiros medievais. Em todos demonstra igual naturalização dos assuntos, alguns bem complexos.

Toda a cultura é adquirida, porém o escritor sabe fazê-la passar por inata, e é esse talvez o seu segredo: escrever com a naturalidade de quem nasceu com a palavra no sangue. Rodrigo Petronio escreve assim, naturalmente.

Deixando agora de lado este modo correntio de me exprimir, a verdade é que o "natural" é muito problemático, como de resto o TriploV demonstra, na sua vertente científica e de História das ciências. Outro livro seu, agora de poemas, intitula-se precisamente "História Natural" (Gargantua, São Paulo, 2000). Um dos poemas em linha no TriploV traz por título "Natureza morta". Enfim, não há dúvida de que a natureza representa para o autor um tema importante de reflexão.

O que entenderá porém Rodrigo Petronio por "natural"? Se levarmos em conta que um dos seus procedimentos na poesia é a enumeração de objectos - "A planta que cresce [...] mar que arrefece, /praia que se apaga" (no poema que dá título ao livro homónimo, "História Natural") - diríamos que natural, para o poeta, é o que é planta, animal ou mineral, enfim, aquilo que em princípio é o objecto das ciências naturais, ou que, sem qualquer pré-conceito, o comum dos mortais entende por "natural". E que um dos seus interesses é ecológico, releva do sentimento de que é necessário preservar o ambiente. É claro que a natureza está ameaçada por todos os ataques cometidos nos últimos séculos contra ela, mas não é deste ponto de vista, o do existente e sua preservação, que no TriploV problematizo o natural.

O problema do natural é apresentado pelo autor logo na abertura de "Transversal do Tempo", no ensaio sobre a obra "De rerum natura" de Lucrécio, quando evoca Epicuro e o fundamento materialista do naturalismo: "Os deuses são mera ilusão". Eis o princípio fundamental do naturalismo, o de que "Tudo o que existe é natural". O naturalismo nega a existência do sobrenatural - o divino. Ora basta uma pergunta para mostrar as suas consequências no conhecimento científico: "Como é que Epicuro ou Lucrécio sabiam que os deuses são mera ilusão?" Interroguemos agora a actualidade: "Como sabe a ciência que tudo o que existe é natural?"

Quando a ciência se comporta como religião - a resposta àquelas perguntas é: "Não sei, creio" - alguma coisa passa a estar errado nela. Porém a questão do natural não se cinge à exclusão do divino, também alcança o humano, já que para os evolucionistas há duas origens das espécies: a operada pelo acaso e a operada pelo homem, e esta recebe o nome de selecção artificial. Por convenção, a origem do mundo e das espécies é atribuída a factores naturais, sem se saber qual de facto a sua origem, por um fenómeno de credo ateísta, o que não deixa de ser uma teologia, em que o Natural ocupa o lugar de Deus. Se a ciência se funda num credo e não em factos verificáveis, esse natural passa a pertencer à mesma categoria metafísica do divino. As consequências são claras: ou bem que a ciência engana o público transmitindo crenças como se fossem factos, e esse é o procedimento habitual nos estabelecimentos de ensino, nas obras de divulgação e nos meios de comunicação de massa, ou então, quando o cientista é prudente e fala para os seus pares, não consegue ultrapassar a barreira do discurso putativo: toda a sua asserção é hipotética. Temos exemplos abundantes e mesmo barrocos deste discurso, muito mais esclarecedor do que o metafórico, de um ponto de vista da Retórica, no TriploV.

Questionado sobre o seu interesse, Rodrigo Petronio respondeu em e-mail: "Não sei ao certo de onde vem esse meu gosto pela história natural. Sempre me fascinou muito pensar no tempo não como uma categoria histórica, causal, linear, que comporta as coisas visíveis, mas como um dado geológico mesmo, como um espécie de itinerário do invisível, daquilo que se sedimenta à margem da nossa cognição. Há um abismo transcendente entre nós e as criaturas, nós que somos criaturas entre criaturas, e ele consiste nessa condição irredutível da existência à Razão. Por mais que você tente abarcar o universo sensível ou descrever o seu campo de fenômenos, nós vamos dar conta de uma parcela ínfima, quase desprezível desse continente e de sua movência. É como uma pequena ilhota no meio do oceano. Em termos psicológicos podemos chamar isso de inconsciente, o que é válido. Mas prefiro pensar a coisa em um sentido metafísico. Não sei o que rege essa margem mítica e atemporal dos fenômenos, pode ser Deus ou o acaso ou algum tipo de animismo ancestral. Mas só de pensar nela me sinto muito entusiasmado. Acho que a Alquimia entra nessa chave, que contempla tanto o saber prático do metalúrgico (poeta e poiesis, aquele que faz) quanto a especulação metafísica desse campo transcendental, que Kant tentou esgotar e que foi transformado em máquina de germanização por Hegel, mas que se rebela contra ambos e contra todos os filósofos mostrando o seu riso solene de desprezo."

Rodrigo Petrónio não é um naturalista, ele não exclui a existência do invisível - o sobrenatural. E ao assimilar a Alquimia, outrora chamada "Filosofia natural", fica claro que para ele há outros modos de conhecimento válidos, além daquele que a ciência pretende que tomemos por único - o científico.