ANTÓNIO BARAHONA, O SERVO DE DEUS



Senhor poeta
vamos dançar,
caem cometas
no alto-mar

António Barahona

"Pássaro-Lyra" (Ichtus, Lisboa, 2002) é o segundo volume da Obra Poética de António Barahona. Estas antologias são importantes, não só por darem meios para uma visão global da obra como por reactualizarem textos, alguns deles marcantes na cultura portuguesa, como é o caso de "Eunice", que data da época em que Barahona estava casado com a actriz Eunice Muñoz. Se o divórcio ocorreu entre eles, já no enlace vida-obra não pode haver divórcio, sob pena de desagregação de uma unidade poética inscrita num complexo contexto de História.

Infelizmente, se Portugal reconheceu o valor de Eunice Muñoz, já o mesmo não aconteceu (ainda) com António Barahona, cuja obra vem passando mais ou menos incógnita de geração em geração, apesar de alguns livros publicados em editoras reputadas, entre elas a Imprensa Nacional/Casa da Moeda, cuja chancela devia corresponder à sua integração no núcleo dos mais representativos poetas portugueses contemporâneos. De facto, essa circunstância parece não ter tido qualquer repercussão cultural, uma vez que o autor continuou a fazer edições de autor, como o demonstram estes dois primeiros volumes da sua Obra Poética. Em princípio, declarou-nos António Barahona, a partir de agora a Assírio & Alvim encarrega-se de lhe editar os livros. Antes tarde que jamais: com a chancela desta editora, finalmente a obra de António Barahona ascende ao lugar a que tem direito.

E porquê tardou tanto, e tarda ainda, o reconhecimento pelo valor da obra do autor de "Pátria Minha"? Provavelmente, porque a poesia se tornou burguesa e académica, a sua sacralidade tem vindo a ficar submersa ao longo dos tempos debaixo da ideologia da aparência: mais facilmente se eleva a insignificância apoiada num currículo universitário e numa forma de vida modelada por uma carreira de sucesso - expressa em sinais exteriores de riqueza -, do que no mérito intrínseco de obra oriunda de pessoa sem este perfil social. Cada vez há menos espaço para margens e António Barahona é um marginal. Já o termo "marginal" se sobrecarrega de tons negativos e associa-se mesmo à criminalidade. Ora a marginalidade de António Barahona é de outra estirpe e começa por ser religiosa. Numa época em que o país era maioritariamente católico, e ateu na sua representação científica e cultural, ele era muçulmano, aliás o seu casamento com Eunice verificou-se segundo o rito islâmico. Hoje, em que a tendência do catolicismo é para a abertura e adaptação a novos problemas, em que se luta pelo acesso das mulheres ao sacerdócio, e em que a élite intelectual recupera os valores religiosos - em expressões várias, e não especificamente católicas - António Barahona assume provocatoriamente uma posição fundamentalista cristã. Ele navegará sempre contra a corrente, e nós podemos recusar as suas propostas de vida, não podemos é persistir no silêncio quanto à sua poesia, da mais alta que nas últimas décadas tem aparecido em Portugal.

António Barahona escolheu o peixe, ICTHUS, como emblema das suas edições, e de facto é sob o signo da água que no "Pássaro-Lyra" se vai erguendo a nave poética. O que é o poeta, o que é a poesia? - sempre algo e alguém imaginado como participante de actividade aquática: navegação, barca, harpoador com "restos de baleia ao redor da alma", "degraus de rio" que é necessário passar. Neste ambiente húmido, um dos poemas mais significativos é é o que analoga a natureza-poesia a um sacramento. Essa natureza-poesia decorre da fusão dos elementos de uma paisagem marinha com elementos (verso final) de um dos mais conhecidos sonetos de Camilo Pessanha.

MISSA

A neve na praia,
joelhos na areia
e a donzela, aia
da mãe lua-cheia

Suspira, sorri,
tão ruivo o perfil;
inspira, expira,
tão ruivo o perfil

Na doca escaleres
oscilam de luto
Deitam-se mulheres
sob o aqueduto,


pintadas, tão pálidas
e com pesadelos;
pintadas, tão pálidas
tão ruivos cabelos,

enquanto a maré
revolve destroços,
dois braços, um pé,
conchas, seixos, ossos

ANTÓNIO BARAHONA
"Pássaro-Lyra"

"Missa", com final à Camilo Pessanha, tb tem tema aquático.

temas próprios - a navegação, as barcas, a náutica - água - o harpoador, com 2restos de baleia ao redor da alma" - "os degraus do rio"







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