LUIZ ROBERTO GUEDES E A LÍNGUA DAS ANAVES





errata: onde
se lê: eros
leia-se: erros
ou vice-versa







Para Luiz Roberto Guedes, poeta e ficcionista brasileiro, abrimos há pouco um directório no TriploV, com alguns poemas (clique na imagem ao fundo). Tal como nesses, nos poemas de Calendário Lunático - Erotografia de Ana K (Edições Ciência do Acidente, São Paulo, 2000), nota-se a tendência principal do poeta: ele trabalha invariavelmente no arame, entre registos muito diferentes, sejam a lírica e a sátira, a prosa e a poesia, o coloquial e o erudito, o antigo e o moderno, o arcaísmo e o neologismo, sejam enfim esses contrários o corpo referencial e o corpo linguístico. Nessa fronteira, a tensão homologa os dissemelhantes, dissolve-os e coagula-os, devolvendo um terceiro corpo, com voz muito própria. É o que acontece na Erotografia de Ana K, em que a linguagem é Ana e Ana é a matéria verbal, ou em que Ana é a lunática e esta, "eh lua/puta velha/de qualquer/canção". Será, mas sempre renovada quando incide nela essa linguística anamorfose. Criar vocábulos é um prazer erótico para qualquer poeta. Uma vez que neste livro existe uma Anamusa, que não capa apesar de K, os neologismos nascem sobretudo dessa fonte, e assim temos "anave", "anarcana", "ultrana" e anainda anamais.

I vindima I
palavra solta
pedaço do rótulo
da garrafa de vinho

I vinde a mim I
ela escreveu
com tinta-vinho-tinto
no verso do papel

agora
I nunca por acaso I
a mensagem voga
no bojo da garrafa

I in vino vênus I
vem vindimar
anave à deriva
já vou zarpar

rumo da rosa
de anamar
paramarana
paranamar

Com traduções para o italiano de Fabrizio Wrolli, "Calendário lunático" é um conjunto de 28 poemas e mais um, de acordo com o calendário lunar. O "mais um" não decorre de artifício meu para acertar com os dias do ciclo lunar, esta descodificação simbólica vem expressa no livro pelo próprio autor, por isso o poema a mais devia até entender-se como sátira a certas leituras numerológicas, em que só com arredondamentos se chega ao 666, quando o que está escrito é, por exemplo, 665,5, número atrozmente longe do Apocalipse, como se pode notar. Não será essa a intenção de Luiz Guedes, antes subversão dos próprios códigos, já que outros se transgridem por sistema, como é próprio de Erros, o deus-menino alado. Aliás, o errotismo já por si é uma transgressão, pelo menos nas nossas culturas ocidentais, fortemente vinculadas ao princípio de que o prazer desagrada a Deus.

Outro aspecto a apontar, já que algures o poeta faz uma referência a Apollinaire, aspecto aliás visível no poema acima transcrito, que uma leitura esoterista remeteria logo para a rabelaisiana Diva-garrafa (outro nome da língua diplomática, cabala fonética, etc..), é a forma visual do poema, o caligrama, no caso a desenhar a garrafa com a imprescindível mensagem na língua das anaves...

No TriploV (veja as "Alquimias"), temos a felicidade de contar com um especialista da língua das aves, Richard Khaitzine, que nesse âmbito é um continuador de Fulcanelli, e contamos ainda, com mais inevitabilidade do que felicidade, com o meu próprio estudo (e prática) também neste domínio da linguagem (veja "As gralhas"). Como insisto sempre em referir, a língua das aves não é específica dos alquimistas, ela tem uma tradição longínqua em vários géneros, aliás nasceu nas tabuletas das estalagens, segundo Khaitzine. Todos conhecemos o exemplo mais divulgado de nome de hotel, "Au Lion d'Or" ("No Leão de Ouro", que em francês se pronuncia "Au lit on dort - na cama, dormimos).

A poesia é um dos mais ricos repositórios da língua das gralhas, aquilo que às vezes parece erro, e é, mas voluntário. Luiz Guedes é um dos poetas que cultivam essa arte de anamorfose ou transmutação verbal. Sem qualquer referência à Alquimia, que eu tivesse notado, no plano apenas erótico, profano, por consequência, a cabala fonética está presente em todos os poemas nesses vocábulos herrados, erróticos ou erráticos, como preferirem. A letra R ("erre", em francês, é também forma do verbo "errar") era o emblema da heresia, diz Richard Khaitzine na sua comunicação ao colóquio de Alquimia que está a decorrer. Curioso que Luiz Guedes diga pouco mais ou menos a mesma coisa, a propósito de Eros/Erros. "Eros meus, má fortuna, amor ardente", escreveu Camões, não é verdade? O amor transtorna, por isso cometemos erros e quantas vezes, mesmo sem eros, ou erros, a sociedade o condena como heresia.