José Brandão abre o seu livrinho "Carbonária, o exército secreto da República" (Perspectivas & Realidades, Lisboa, 1984), comentando que ainda hoje se sabe muito pouco dessa sociedade secreta. Além de se saber pouco, a historiografia costuma atribuir aos bons irmãos maçons grande parte das acções praticadas pelos bons primos carbonários. Se a sociedade secreta causa calafrios a muita gente, a Carbonária tem um perfil susceptível de arrepiar ainda mais. Por isso a própria maçonaria reprovou o carbonarismo, alegando que optara pelo caminho substituído: em vez de seguir a via espiritual, tinha enveredado pela acção francamente política. Do lado da Igreja também houve condenação dos Carvoeiros, através da encíclica Ecclesiam, de Pio VII, em 1821.
No meu caso pessoal, lido com textos, e os textos têm aspectos condenáveis e louváveis. Além disso, como vou mostrar, muito pouco neles é prova suficiente para os considerar assinados por carbonários. Mas o meu desejo é de facto aprofundar o conhecimento da cultura carvoeira para melhor me aproximar da floresta que lateja no naturalismo.
A Carbonária, também chamada Maçonaria da Madeira e Maçonaria Florestal, em paralelo com a Maçonaria da Pedra, é o ramo desta que, em Portugal, desencadeou a implantação da República, e garantiu a sua integridade nos primeiros anos. A partir daí, é geralmente considerada extinta pelos historiadores. Este desaparecimento não é radical, a sociedade pode ter encerrado, mas os seus membros sobreviveram, com a bagagem de conhecimento nela adquirido. Ora o conhecimento é uma casa com porta única: o que por ela entra, tem como destino ser transmitido. É isso a traditio: passagem de testemunho.
Por muito que a Carbonária Portuguesa esteja extinta, o que não é assim tão fácil de aceitar, algo dela sobrevive. Pelo menos como discurso clandestino, pois já detectámos a sua presença em textos posteriores à República (1), e mesmo num, de Fernando Frade, datado de 1946 (2). Ao de Fernando Frade, no qual é muito insistente o uso das expressões "barraca" e "barraca improvisada", já me referi em trabalho publicado no TriploV, e também numa webpage carbonária (3).
"Barraca" e "choça" designam hierarquias na agremiação da Maçonaria da Madeira. Implicam, na sua construção, o emprego da matéria-prima em cujo símbolo assenta a sociedade (o termo Carbonária provém de carbono, carvão, produto vegetal). Essa matéria-prima, homóloga da pedra, é a madeira. Como então disse, a barraca e a choça constituem um topos muito característico da narrativa de viagens empreendidas pelo naturalista. Invariavelmente, é obrigado a pernoitar ou a viver nelas uns dias. É assim que o explorador italiano Leonardo Fea, no seu périplo pela África ocidental, tem de improvisar a sua com algumas tábuas e pedaços de vela, no ilhéu Branco, em Cabo Verde. Na ilha de Ano Bom, no Golfo da Guiné, o topos repete-se, de modo mais insinuante, por unir o que de facto está intimamente unido em termos simbólicos, a barraca e o templo:
"Nell'unica Missione di quest' isola non è posto per lui ed è costretto a rifugiarsi in una capella, o meglio in una baracca sdruscita e lurida" (4).
A bandeira verde e vermelha da Carbonária, com ligeiras alterações de caracteres, é a que ainda hoje simboliza Portugal. Diversamente da Maçonaria da Pedra, a da Madeira inclui membros de todos os estratos sociais, mulheres também, e sobretudo recrutou operários e outros trabalhadores, no período anterior à República. O que melhor caracteriza esta sociedade secreta é o facto de operar como exército, quando a solicita alguma grande campanha social ou política, como aconteceu sob a liderança de Garibaldi na unificação da Itália, e entre nós com a queda da monarquia, daí que José Brandão o declare logo no título da sua obra.
Então o bom primo é um cavaleiro da modernidade, não usa espada porque já não vive no tempo dela, mas é-lhe exigida a posse de arma de fogo e respectivas munições. O seu ideário é idêntico ao da maçonaria, defende o lema celebrizado pela Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade (ou Humanidade, em versões carbonárias actuais).
A Maçonaria da Madeira não existe de forma independente, é uma ala armada da maçonaria em termos gerais. Se bem que a Carbonária seja secretíssima, algumas evidências se lhe conhecem, entre elas, essa: todos os carbonários são maçons, mas nem todos os maçons são carbonários. Nos textos do naturalismo, são frequentes as assinaturas e as marcas maçónicas, mas algumas participam especificamente da simbólica carbonária, casos da iniciação na floresta, e do templo construído à sombra das suas frondosas árvores.
Em relação às marcas maçónicas universais, já tenho falado de várias. Nunca falei da prancha nem da raiz, termos que designam o ofício, uma peça de oratória, o primeiro termo na Maçonaria da Pedra, e raiz na Carbonária. Não me apercebi ainda da existência desta palavra nos textos, a não ser, claro, no seu sentido próprio em Botânica. Já a prancha solicita às vezes atenção, por a vermos em contexto invulgar. Se é comum para designar imagens, na linguagem oral mais do que na escrita, esse uso exprime-se em francês e não português: planche. Nós, portugueses, para além de "estampa", "imagem", "ilustração", etc., também dizemos "planche". Então, quando ocorre a palavra "prancha" para designar as estampas de um livro (ou noutras circunstâncias), isso soa a marca maçónica do texto.
Dez anos após a publicação do livro de José Brandão, julgo que não se saiba muito mais sobre a Carbonária em Portugal, além do que eu mesma tenho revelado, não do ponto de vista do historiador, sim do exegeta de textos dos naturalistas. A principal razão para se saber tão pouco decorre do seu grande secretismo. No meu caso, da circunstância de o bom primo usar a simbólica geral da maçonaria, raramente sendo óbvia a da sua tradição própria, fundada em grande parte no léxico do Reino das Plantas. Na Botânica, as marcas até podem ser óbvias, receio porém que só o botânico simultaneamente iniciado no carbonarismo as detecte com facilidade. Para o profano que pouco ou nada sabe de Botânica, como é o meu caso, as marcas, a existirem, confundem-se com o discurso normativo sobre o jardineiro, o lenhador e o rachador.
O botânico e o silvicultor falam naturalmente da raiz, do tronco, da árvore frondosa, ou invocam possíveis parentes como o primo Carvalho, o primo Oliveira, etc., sem que isso provoque sobressaltos à leitura ingénua: como saber se o autor não tem realmente um primo chamado Olmo e outro chamado Acácio? Só quando há forte baralhação dos graus de parentesco, e já temos visto autores chamarem sobrinhas às primas, uma criatura começa a desconfiar. Para funcionarem como alerta, é necessário que tais elementos se comportem de forma anómala no contexto - por excesso, defeito, ou deslocação abrupta do sentido. O texto que eu diria mais tipicamente carbonário que já me passou pelas mãos, mas do qual ainda só coligi alguns exemplos dispersos, é o livro-artigo de Júlio Henriques sobre São Tomé, relato de uma viagem à ilha anos antes da República, mas publicado só em 1917, seis anos depois da sua implantação (5). Diria isso, mas é difícil a comprovação. Já é fácil provar a sua instrumentalidade subversiva, em todos os domínios em que se inscreve um livro.
A dificuldade que se levanta à análise mais extensa é justamente o facto de Júlio Henriques ser botânico, e por isso não serem perceptíveis, ou invocáveis como provas pelo não botânico, os elementos lexicais do livro que, participando em simultâneo das semânticas do mundo vegetal e da Maçonaria Florestal, se encontram no contexto desviados do sentido botânico. Estando desvinculados do sentido normal da Botânica, então é porque a sua comunicação se exerce no interior da semântica carbonária. Uma das passagens do livro mais impregnada emocionalmente é aquela em que fala das derrubadas, o abate das árvores. Mas em São Tomé não havia nada de menos espiritual nem de mais materialista do que destruir a floresta para ganhar terreno onde se pudesse cultivar o café e o cacau. Nada permite então considerar esse tipo de relato como próprio de um autor que nele visa deixar as marcas da sua identidade carbonária. Mas elas estão lá, quanto mais não seja, por inevitabilidade da polissemia: quem abate as acácias com o machado é o rachador, sejam autor e rachador iniciados ou não.
Um elemento tão deslocado como o psicómetro, que Júlio Henriques emparelha com o pluviómetro e com o termómetro, em discurso sobre a meteorologia, é uma machadada subversiva no texto, mas em nada se relaciona com a semântica carbonária. Já a pontuação, e sobretudo os acentos gráficos desviantes, sim. Oliveira Marques refere algures que os carbonários dispõem de escrita com sinais característicos, o que contempla decerto estes aspectos gráficos, resta porém descobrir algum caderno de notas que nos industrie na sua gramática, para além daquilo que é do conhecimento público, como os três pontos em triângulo com o vértice apontado para baixo, em V, ao contrário do que acontece na Maçonaria da Pedra. O alfabeto maçónico é conhecido, o carbonário, nunca vi.
Entre as poucas marcas indubitavelmente carbonárias, a mais expressiva verifica-se na adopção do próprio nome como elemento constitutivo do binómio lineano, ou da localidade de que são originários os exemplares a partir dos quais foram feitas descrições de novas espécies para a ciência. No primeiro caso, temos as espécies carbonaria, carbonerae, carbonema, etc., no segundo os topónimos Carvoeiro, Carbonera e afins. Os topónimos, só por si, pouco identificam. Em princípio, admito que sejam, ao menos alguns, anteriores ao aparecimento da instituição maçónica. Mas há outros de cuja origem não descobri rasto, relativos a acidentes geográficos mínimos, o que me leva a crer que tenham sido criados pelos próprios naturalistas.
É preciso que haja vários elementos simbólicos no texto, ou que o próprio contexto os ilumine, para os aceitarmos como assinatura. Assim, chamam a atenção certos excessos, como as abundantes referências ao carvão na literatura de ou sobre exploradores-naturalistas, nos jornais das últimas décadas do século XIX, e nas memórias descritivas de territórios ultramarinos. Há um ilhéu minúsculo e desabitado, o ilhéu de Santa Maria, face à cidade da Praia, em Cabo Verde, para o qual alguma literatura remete dois factos incomuns. O primeiro pertence mesmo à esfera do maravilhoso: refere-se a existência de cágados no ilhéu. Que eu saiba, os cágados ainda não fizeram a sua espectacular aparição na fauna de Cabo Verde. Estes animais são dulciaquícolas, o arquipélago é desértico e no ilhéu de Santa Maria nem sequer há água doce. O outro facto é em aparência banalíssimo, e só por força de tal banalidade se torna insólita a informação de nele ter existido outrora um depósito de carvão. O que há de extraordinário no ilhéu? Só se for uma espécie de osga descrita a partir de exemplares coligidos em Bornéu, que deve ter sido largada em Cabo Verde por algum comandante de navio que as levava de presente para as primas, filhas da sua querida esposa: Tarentola borneensis.
E é assim: os jornais assinalam a chegada de navios com carregamentos de carvão, a literatura dos exploradores nunca se esquece de assinalar locais, na costa ocidental africana, onde existiam depósitos de carvão, e ainda menos se esquece de referir topónimos formados sobre a raiz carbono, mesmo quando dificilmente os lugares assim chamados seriam visíveis, dada a distância e as condições atmosféricas. Refiro-me a um relato de subida ao Pico de Clarence, em Fernando Pó. O herói, salvo erro Rogozinski, um explorador tão problemático que a sua escalada é considerada viagem de recreio e piquenique pelos críticos mais impiedosos, uma vez alcançado o cume, quase sempre envolto em névoa, admira a paisagem até aos confins do horizonte, e consegue avistar, ao longe, um navio ancorado na Baía Carbonera (1). Era de certeza o navio que transportava para Cabo Verde as osgas de Bornéu.
A maior parte das situações que evocam iniciação na floresta, com as quais construí o modelo da narrativa do explorador-naturalista nas montanhas de África, no texto "Esoterismo e História Natural" (3), provêm da literatura sobre as explorações em São Tomé e Fernando Pó (Bioko, actualmente). Voltarei a elas logo que tenha tempo, pois há um relato da descoberta do lago Loreto, em Fernando Pó, para pôr em linha, que vai regalar os bons primos, os bons irmãos, os bons frades, os bons naturalistas e quaisquer outros bons leitores.
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