AMADEU BAPTISTA
(para Carlos Silva)
1.
Nascido a 6 de Maio, o herói
Só se aguentou até aos dezassete
Meses. Depois, uma família recolheu-o
Para que ao longo da vida se traísse
Muitas vezes. Sob os pés não teve
O chão que tantos tiveram
A aconchegá-lo, um carinho
De mãe, o ombro de um irmão,
Uma pequena luz erguida sobre
O feno. E, no entanto, sempre foi leal,
Sobretudo aos seus mortos, aos seus afectos,
À intensa palavra que há nos bosques
E se aloja nas têmporas exangues dos poetas.
Quase nem se acredita que tenha amado tanto.
2.
Se viveu empolgado, não se sabe.
A esse mistério ousou permitir-se,
A transformar em segredo a dor bravia
Que recolheu da poeira do caminho.
Há-de dizer-se que triunfou na permanente
Derrota de si mesmo, marcado pela deriva
De uma piedade dissimulada na redonda
Arte de sonhar para perder tudo.
Perdido de ternura nunca soube
A que inesperada pergunta podia responder
Quando pretendeu voltar à infância
Como um velho idiota que presume
Que por um passe de mágica pode salvar tudo,
Funestas ilusões e consumidas esperanças.
3.
E, no entanto, ainda está de pé,
Para deter a brisa com as mãos vazias
E os olhos limpos e unânimes
Na progressão geométrica da sua desgraça.
A versos se rendeu para que fosse um pouco
Menos miserável o mundo que lhe coube em sorte,
Aquela luz que sempre nos alcança
Quando almeja a alma à hera que renasce
Da imediação da terra que converte a sombra
Na indizível faísca que nos ilumina.
Podia desistir a qualquer instante,
Mas ignora o que fazer à gratidão
Que tem por tudo ser assim tão sórdido e belo
Na escuridão que alastra e o derruba.
4.
Mas se cai o herói a vida é que o levanta,
Ainda com mais força na adversidade.
Com uma cobra amarela dentro do peito
E um ramo de junquilhos na cabeça.
Do deserto deserta quem se acha
Para escutar ao longe a trompete
Que glorifica os heróis abandonados
Ao livre arbítrio dos seus pensamentos,
Com o lume do corpo em carne viva.
Era só um menino quando o levaram
Da casa de seus pais, mas fez-se o homem
Que passa por ti com a cruz às costas.
Ah, não te alarme o escarro no rosto que te mostra.
Aprende que há sempre descorçoados modos de prevalecer.
5.
Não compreendas a dor por que tem passado.
Atiça-lhe os cães como é costume,
Dispara à queima-roupa sobre a revulsiva
Figura ignóbil que te amedronta,
O ininteligível clarão que te fascina.
Olha que a um desesperado pouco importa
A qualidade das chamas que transporta,
A intensidade do pânico que semeia,
O teor de angústia de que se alimenta.
Olha que este herói é um anti-herói,
Alguém cheio de frio na chuva do que escalda.
Sem que o soubesse deu abrigo às térmitas.
Nascido a 6 de Maio, nada deve
Ao ínvio contrato que celebrou com a vida.
6.
Não é possível reorganizar o passado.
Nem sequer o presente, nem sequer o futuro.
Não há como dulcificar o azedume
Quando se regam as raízes com vinagre.
Onde está a memória está o desassombro,
Este jogo de sombras, este fumo sagrado.
Este desvio ao que temos por certo.
Este corrupio de ventos que não cessa nunca.
O que dizer do poeta que entrou aqui à força?
O que não poupou as lágrimas nos dias mais áridos
E não soube nunca como se redimir
Das culpas que não teve e dos actos falhados?
Ainda bem que o poeta é um ser imortal.
Não há nenhum mal nisso e talvez seja verdade.
7.
De sarna para se coçar não se livrou,
O aniversariante. Nem das formigas
No saco do açúcar, nem do par de bandarilhas
Cravadas no seu dorso, Minotauro
Sitiado em estranhos labirintos, coisa
De perder sangue pelas esquinas.
O poeta é um animal que raciocina irracionalmente,
Sempre em busca das forças em presença
Do universo, sempre em busca de irromper do vazio
Como um clamor elegíaco que o conclua, certo
De que nunca há saída para a estrada à sua frente,
O poeta a esta hora dorme apaziguado,
Trabalha o pesadelo que no sonho o atormenta.
Como será ser outro sendo sempre o mesmo?
8.
Paira no ar a fragrância de olíbano, o grande Pã
Morreu, como anunciou Plutarco – e o poeta
Alinha o horizonte com a praia onde viveu,
A aquiescer com a inevitabilidade
Da sua própria morte. A esse fio-de-prumo
Deve tributo, ainda que seja sempre insubmisso
Às atribulações perpétuas da incandescência
Em que se vê detrito e sombra do acaso.
Há só um mundo dado, pese embora
A escuridão latente sob as pedras
E a progressão oculta do silêncio.
O poeta acrescenta-se à epifania
E abre a cesta de figos para reencontrar a luz.
Para onde quer que vá, há-de voltar.
9.
Recuso-me a ser um desgraçado.
Que o próximo ano seja especialmente criativo.
Tantas balas disparadas que não atingem ninguém,
Tantas palavras perdidas no eco das tensões.
Ah, talvez baste uma escada, talvez baste
Uma porção de corda e uma encruzilhada,
Ou um pneu a arder no meio da estrada,
Um pedaço de azul a ampliar o horizonte.
Que se há-de fazer ao desencanto trágico?
Ao sentido do que nunca irá ter sentido?
Dar-lhe um pouco de Bach, um pouco de Mozart?
Talvez a liberdade viva em Tombuctu.
– ‘Minha mãe, quantos passos? Minha mãe, quantos passos?’
Agradeço os morangos e não digo mais nada.
10.
Não posso devolver ao coração
Os amplos horizontes que tive outrora.
O que era claro agora é escuridão
E a tempestade cede a esta demora
Inscrita na distância da tua ausência.
Só das pedras que carrego no meu peito
Conheço a inexorável permanência
E a insustentável tristeza a que sujeito
A dor de te ter perdido para sempre.
Se havia estrelas, todas soçobraram.
Se os rouxinóis cantavam, já se calaram.
Agora nada é como antigamente.
Este rasto sombrio em que a alegria
Não é mais que uma ruína e uma injúria.
11.
Abandono o edifício com a kalashnikov nos braços,
Aponto ao infinito e volto à infância.
Estava aqui uma maçã que se perdeu,
Talvez pela linguagem volte a tê-la,
Talvez pelo enigma a recupere.
Se me chamares rebelde ninguém me irá deter,
Não sei que horas são, não sei se é noite ou dia,
O passado e o presente hão-de ser o meu futuro.
O mundo em volta é um chão de campas rasas,
Mas o princípio do sonho ainda perdura
Sob a sumptuosa ansiedade que me rodeia.
Ignoro onde estarei para lá da cordilheira.
Creio na terra viva e na poesia
Com que o pensamento se ergue para o espaço.
12.
Bendito todo o mal que me foi feito
E o exército de piolhos que me infestou o corpo.
Bendito o ar imundo que me provocou o vómito
E a pedra que se atravessou no meu caminho.
E mais bendito ainda o osso que nunca se partiu,
E o muro que a meus pés foi levantado.
Bendita a relação carnal que mantive com o mistério
E a um só tempo foi profana e foi divina.
Bendito o avc e o enfarte que me tocaram.
Bendita a orfandade que ensombreceu a minha infância
E as balas tracejantes que violaram o céu do paraíso.
Benditos os ódios e as paixões que suscitei.
Bendita a inquietação que jamais me abandonou.
Bendito coração que resistiu a tudo e me tem mantido vivo.
Amadeu Baptista