Doze sonetos para o septuagésimo-primeiro aniversário

 

AMADEU BAPTISTA


 

(para Carlos Silva)


1.

Nascido a 6 de Maio, o herói

Só se aguentou até aos dezassete

Meses. Depois, uma família recolheu-o

Para que ao longo da vida se traísse

 

Muitas vezes. Sob os pés não teve

O chão que tantos tiveram

A aconchegá-lo, um carinho

De mãe, o ombro de um irmão,

 

Uma pequena luz erguida sobre

O feno. E, no entanto, sempre foi leal,

Sobretudo aos seus mortos, aos seus afectos,

 

À intensa palavra que há nos bosques

E se aloja nas têmporas exangues dos poetas.

Quase nem se acredita que tenha amado tanto.

 

2.

Se viveu empolgado, não se sabe.

A esse mistério ousou permitir-se,

A transformar em segredo a dor bravia

Que recolheu da poeira do caminho.

 

Há-de dizer-se que triunfou na permanente

Derrota de si mesmo, marcado pela deriva

De uma piedade dissimulada na redonda

Arte de sonhar para perder tudo.

 

Perdido de ternura nunca soube

A que inesperada pergunta podia responder

Quando pretendeu voltar à infância

 

Como um velho idiota que presume

Que por um passe de mágica pode salvar tudo,

Funestas ilusões e consumidas esperanças.

 

3.

E, no entanto, ainda está de pé,

Para deter a brisa com as mãos vazias

E os olhos limpos e unânimes

Na progressão geométrica da sua desgraça.

 

A versos se rendeu para que fosse um pouco

Menos miserável o mundo que lhe coube em sorte,

Aquela luz que sempre nos alcança

Quando almeja a alma à hera que renasce

 

Da imediação da terra que converte a sombra

Na indizível faísca que nos ilumina.

Podia desistir a qualquer instante,

 

Mas ignora o que fazer à gratidão

Que tem por tudo ser assim tão sórdido e belo

Na escuridão que alastra e o derruba.

 

4.

Mas se cai o herói a vida é que o levanta,

Ainda com mais força na adversidade.

Com uma cobra amarela dentro do peito

E um ramo de junquilhos na cabeça.

 

Do deserto deserta quem se acha

Para escutar ao longe a trompete

Que glorifica os heróis abandonados

Ao livre arbítrio dos seus pensamentos,

 

Com o lume do corpo em carne viva.

Era só um menino quando o levaram

Da casa de seus pais, mas fez-se o homem

 

Que passa por ti com a cruz às costas.

Ah, não te alarme o escarro no rosto que te mostra.

Aprende que há sempre descorçoados modos de prevalecer. 

 

5.

Não compreendas a dor por que tem passado.

Atiça-lhe os cães como é costume,

Dispara à queima-roupa sobre a revulsiva

Figura ignóbil que te amedronta,

 

O ininteligível clarão que te fascina.

Olha que a um desesperado pouco importa

A qualidade das chamas que transporta,

A intensidade do pânico que semeia,

 

O teor de angústia de que se alimenta.

Olha que este herói é um anti-herói,

Alguém cheio de frio na chuva do que escalda.

 

Sem que o soubesse deu abrigo às térmitas.

Nascido a 6 de Maio, nada deve

Ao ínvio contrato que celebrou com a vida.

 

6.

Não é possível reorganizar o passado.

Nem sequer o presente, nem sequer o futuro.

Não há como dulcificar o azedume

Quando se regam as raízes com vinagre.

 

Onde está a memória está o desassombro,

Este jogo de sombras, este fumo sagrado.

Este desvio ao que temos por certo.

Este corrupio de ventos que não cessa nunca.

 

O que dizer do poeta que entrou aqui à força?

O que não poupou as lágrimas nos dias mais áridos

E não soube nunca como se redimir

 

Das culpas que não teve e dos actos falhados?

Ainda bem que o poeta é um ser imortal.

Não há nenhum mal nisso e talvez seja verdade.

 

7.

De sarna para se coçar não se livrou,

O aniversariante. Nem das formigas

No saco do açúcar, nem do par de bandarilhas

Cravadas no seu dorso, Minotauro

 

Sitiado em estranhos labirintos, coisa

De perder sangue pelas esquinas.

O poeta é um animal que raciocina irracionalmente,

Sempre em busca das forças em presença

 

Do universo, sempre em busca de irromper do vazio

Como um clamor elegíaco que o conclua, certo

De que nunca há saída para a estrada à sua frente,

 

O poeta a esta hora dorme apaziguado,

Trabalha o pesadelo que no sonho o atormenta.

Como será ser outro sendo sempre o mesmo?

 

8.

Paira no ar a fragrância de olíbano, o grande Pã

Morreu, como anunciou Plutarco – e o poeta

Alinha o horizonte com a praia onde viveu,

A aquiescer com a inevitabilidade

 

Da sua própria morte. A esse fio-de-prumo

Deve tributo, ainda que seja sempre insubmisso

Às atribulações perpétuas da incandescência

Em que se vê detrito e sombra do acaso.

 

Há só um mundo dado, pese embora

A escuridão latente sob as pedras

E a progressão oculta do silêncio.

 

O poeta acrescenta-se à epifania

E abre a cesta de figos para reencontrar a luz.

Para onde quer que vá, há-de voltar.

 

9.

Recuso-me a ser um desgraçado.

Que o próximo ano seja especialmente criativo.

Tantas balas disparadas que não atingem ninguém,

Tantas palavras perdidas no eco das tensões.

 

Ah, talvez baste uma escada, talvez baste

Uma porção de corda e uma encruzilhada,

Ou um pneu a arder no meio da estrada,

Um pedaço de azul a ampliar o horizonte.

 

Que se há-de fazer ao desencanto trágico?

Ao sentido do que nunca irá ter sentido?

Dar-lhe um pouco de Bach, um pouco de Mozart?

 

Talvez a liberdade viva em Tombuctu.

– ‘Minha mãe, quantos passos? Minha mãe, quantos passos?’

Agradeço os morangos e não digo mais nada.

 

10.

Não posso devolver ao coração

Os amplos horizontes que tive outrora.

O que era claro agora é escuridão

E a tempestade cede a esta demora

 

Inscrita na distância da tua ausência.

Só das pedras que carrego no meu peito

Conheço a inexorável permanência

E a insustentável tristeza a que sujeito

 

A dor de te ter perdido para sempre.

Se havia estrelas, todas soçobraram.

Se os rouxinóis cantavam, já se calaram.

 

Agora nada é como antigamente.

Este rasto sombrio em que a alegria

Não é mais que uma ruína e uma injúria.

 

11.

Abandono o edifício com a kalashnikov nos braços,

Aponto ao infinito e volto à infância.

Estava aqui uma maçã que se perdeu,

Talvez pela linguagem volte a tê-la,

 

Talvez pelo enigma a recupere.

Se me chamares rebelde ninguém me irá deter,

Não sei que horas são, não sei se é noite ou dia,

O passado e o presente hão-de ser o meu futuro.

 

O mundo em volta é um chão de campas rasas,

Mas o princípio do sonho ainda perdura

Sob a sumptuosa ansiedade que me rodeia.

 

Ignoro onde estarei para lá da cordilheira.

Creio na terra viva e na poesia

Com que o pensamento se ergue para o espaço.

 

12.

Bendito todo o mal que me foi feito

E o exército de piolhos que me infestou o corpo.

Bendito o ar imundo que me provocou o vómito

E a pedra que se atravessou no meu caminho.

 

E mais bendito ainda o osso que nunca se partiu,

E o muro que a meus pés foi levantado.

Bendita a relação carnal que mantive com o mistério

E a um só tempo foi profana e foi divina.

 

Bendito o avc e o enfarte que me tocaram.

Bendita a orfandade que ensombreceu a minha infância

E as balas tracejantes que violaram o céu do paraíso.

 

Benditos os ódios e as paixões que suscitei.

Bendita a inquietação que jamais me abandonou.

Bendito coração que resistiu a tudo e me tem mantido vivo.


 

Amadeu Baptista