PEDRO SEVYLLA DE JUANA
Dom Quixote e Sancho no Caminho de Santiago
Segunda parte, capítulo acrescentado depois do último,
imaginado e poetizado por Pedro Sevylla de Juana.
(Da resolução tomada pelo vencido cavalheiro,
de visitar Santiago durante o imposto sossego.)
Fugindo das calçadas reais, da férvida
Altisidora que inquieta o da Mancha,
da duquesa, com o escudeiro tão atenta;
fiel dom Quixote à sua amada Dulcineia
e à sua natural Teresa Sancho Panza,
tomam em Barcelona a rota pirenaica.
Resolvem, escudeiro e senhor, em proveitoso diálogo,
fazer-se perdoar do Céu compassivo,
tanto os erros muitos como os muitos pecados,
percorrendo piedosos o Caminho
que leva ao sepulcro do apóstolo Santiago.
Foram obtidos salvo-condutos e licenças,
sem ditar -como se estila- testamento,
mochila e abóbora acomodam, saial e roseta
e em fortes bordões apoiam seu empenho.
Vislumbram Somport mais seguem adiante,
desejoso o Cavaleiro da Figura Triste
-mais triste que nunca nesse instante-
de ver no abrupto Roncesvalles
a pegada de Roldán tão admirada
e dos conhecidos Doze Pares,
da espada em pessoa transformada,
a bem forjada Durandarte.
Passam as noites de claro em claro,
porque aflige o cavalheiro a promessa absurda,
de não tomar armas durante um ano,
arrancada pelo de «A Branca Lua».
Torturam o escudeiro impedindo-o dormir,
os açoites insatisfeitos prescritos por Merlin;
única medicina contra o encantamento da sem par Senhora,
que sendo princesa se trocou em labradora
De Roncesvalles partem buscando seu destino,
Dom Quixote e Sancho, inusitados peregrinos.
Trás o descarnado cavalo e o jumento pardusco,
a pé chegam por Viscarret até Pamplona,
Monreal, Estella, Nájera e Burgos.
Na Cidade do Cid, herói que o Engenhoso elogia,
o rústico sucumbe ao embelezo
do dispositivo que move na catedral o papa-moscas;
e assombra o fidalgo nos seus pensamentos,
que das pétreas torres as pontas
não cheguem a tocar as nuvens dos Céus.
Açoitado Sancho pela graça do destino,
consegue da fortuna desigual
alcançar um bom partido,
pois cobra a meio real
os açoites avaliados a quartilho.
Cento e trinta lategadas se dá Sancho,
com áspera corda de resseco esparto.
Os moços castiga em verdade sobre seu lombo,
equilibrando assim as patadas recebidas,
ao recolher de um frade os despojos,
na aventura da princesa biscainha.
E o magro dom Quixote jejua
para reforçar o efeito da tunda.
Em Castrogeriz e em Boadilla detêm-se
e sem temer o sangue que produz o dano
pensando em dá-las aos almocreves
duzentas chicotadas se dá Sancho.
Em Frómista, acendidos os semblantes
ante Sâo Martín de traça esplêndida,
segundo o esforçado andante
do românico a fábrica mestra,
cento e setenta pancadas de castigo
a quem o mantearam na pousada,
aplica Sancho no tronco amigo
que segura sua cabeça alçada.
E os dá com tanta raiva que em um ano
não poderá vingar-se de nenhum outro adversário.
Exalta Dom Quixote o afã posto no castigo,
do qual julgava incapaz o seu escudeiro,
de carne frouxa e espírito tranquilo;
e a baixo custo em boa hora,
mil seiscentos e cinquenta reais,
já vê em Dulcineia, deixada a aparência de pastora,
a princesa mais formosa que registram os anais.
O corajoso cavaleiro do olhar triste,
em Villasirga revela a quem sempre o acompanha,
que nesse povo afortunado existe
um tesouro único na Espanha.
Santa Maria é a templária igreja que faz de arca:
Pantocrátor, Apostolado, Anunciação, Epifania,
ao retábulo maior, aos sepulcros e à Virgem Branca
que o Rei Sábio louva em suas Cantigas.
Um fervedouro humano representa o Caminho.
formigam por ele gentes bem distintas:
estudantes, patifes, reis, soldados e mendigos,
que falam da Europa as diferentes línguas,
intercambiam culturas sedimento de séculos
e as bem entesouradas experiências;
enchem templos, refeitórios, hospitais e abrigos,
descansam, rezam, curam chagas, se alimentam.
A estepe castelhana descobrem com assombro,
campo despovoado em favor das cidades
dizimado pela peste e o imã do Mundo Novo.
A expulsão de judeus e mouriscos,
a Inquisição e a barbárie repressiva,
chega a ver um dom Quixote intuitivo,
fidalgo para quem o trabalho não é estigma,
entre os males que levam a Castela,
em prata americana submergida,
à dependência exterior e à pobreza.
Torna em Carrión o escudeiro às duras disciplinas,
e diante do magnífico Salvador da igreja de Santiago,
cento e quarenta e oito lategadas se propina,
fustigando o galeote roubador do asno.
E sem prudência alguma engolem pão e vinho,
convento de San Zoilo refeitório e claustro,
pétreos retratos de monges distinguidos.
Antes de entrar em Sahagún, da oitava etapa cabeceira,
segundo o Codex Calixtinus no seu texto sábio,
em um hospital assentado do Valderaduey na ribeira,
alivia o escudeiro suas feridas com um bálsamo,
que sem ser o de Fierabrás obra excelências;
mas a lança atada a Rocinante não floresce,
como acontece na lenda que dom Quixote evoca,
onde o próprio Carlomagno se intromete.
Atravessam o Cea pelo caminho romano,
onde Panza, pensando nos reais prometidos,
duzentos cardeais acrescenta a seu espinhaço,
destinados ao maior enredador existente e existido,
conhecido em todo o mundo como Merlin o Mago;
e tomando de Mansilla das Mulas o caminho,
chegam a León de um só tranco.
Admiram de São Isidoro a trabalhada pedra,
as obras da Catedral e de São Marcos,
e na margem verde do Bernesga,
pelo menos cento e noventa lategaços
recebe queixoso o escudeiro com empenho,
posto o vingador afinco nos velhacos
que em Barataria remataram seu governo.
Em Rabanal diminui o desânimo que a alegria impede,
célebre Casa das Quatro Esquinas,
pois estão perto de encontrar o Rei Felipe,
peregrino entre soldados de uma escolta reduzida.
Seguindo o uso enraizado,
na Cruz de Ferro depositam as pedras trazidas,
os rodados cantos.
Ponferrada, Carracedo e Villafranca,
os veem passar sobre as bestas,
a coragem decaída e muda a palavra.
De pão e água se alimenta o cavalheiro em despovoado
e de caldo de convento em hospitais e hospedarias,
de modo que os seus agudos traços
parecem afilar-se na comprobação diária.
Os açoites que enriquecem o bom Sancho
longa conta confiada à memória frágil,
brunhem o espírito deixando o corpo algo esmagado.
Não são despojos de encarniçada luta,
são romeiros que peregrinam a Santiago
e pastores serão quando concluam.
De Triacastela a Palas, na tardinha esplêndida,
desde o longínquo Monte do Gozo,
alcançam a visão da idealizada Compostela,
enchendo de lágrimas seus olhos.
Entram no Obradoiro como se fosse o Céu mesmo,
com idêntica humildade e devoção parceira
jubilosa sensação de prediletos.
O pórtico da Glória, solidez ademais de equilíbrio,
lhes entrega a catedral e as relíquias
ocorrendo ali o prodígio:
a mente de dom Quixote se equilibra
e Sancho se converte em erudito.
Aceitada a verdade dos que consideram mentiras
as descomunais e enredadas ocorrências
contadas nos livros de cavalaria,
Quixote e Sancho voltam à aldeia,
onde o sacerdote e o barbeiro, a ama e a sobrinha,
conhecedores do regresso, os esperam.
PSdeJ El Escorial 16 de marzo de 2023