LUÍS FILIPE PEREIRA
[feira da bagageira
ao azul acocorada a manhã aporta malas
de mil viaturas cheias de coisas
chamativas por tantas memórias autopsiadas
é nesta arca da impulsão arrastada
que fragmentário me consumo
a praça larga emplumada em lotes sem préstimo
zinca as munições d´intimidades e como ressoa
a insolente pólvora obsoleta que sacode
sacos da ressaca das acácias de passagem
p´ las louças ácidas de tinta de jornal cerâmicas
lascadas nas comissuras do barro de viés
insinuadas é larga a praça no chão
presenças maneiristas retouçam colunatos da infância
reinos das coisas anómalas porcelanas
próteses de sapatos de areia
astenia de noé em barcas imaginadas p´lo fungagá
da bicharada música de filosóficas pendências
soube-o já tarde
carripanas para todos os gostos e nenhum sem tardoz
de carnívoros desgostos carros cofres
abertos amachucadas grinaldas de casamentos
roídos sabido de antemão que mais cedo que tarde
pleiteadas cóleras e custas de notários
meias-de-liga bugigangas comidas pelo sol
ou pela necessidade peças da secla
livros tardos cinzeiros aleluia bidés
aloirados pechisbeques
a manhã gradualmente menos esparsa
ou atenuadas as deslembranças porventura
porém o festim de cores inconformado
devindo um só corpo – com-mil-cabeças
corpo arremessado ao transe dos padrões pouco
ou muito inúteis parafusos arrancados
dos ganchos moles do mundo uns de pontas-chanfradas
outros de pontas-brocantes
alguidares penicos nucas de gesso máscaras pff2
garrafas vazias com a sua ciência filatelia sucinta
angiologia asas de jarras alemãs aguarelas sem mestres
burgueses efeitos de estilo vista alegre sacavém
vírgulas figurativas nos lados toscos dos paliteiros
quinquilharias acidentadas retalhos do subsídio
em lençóis de aladino
peças de colecção solitários ai jesus binóculos
monóculos álcool-gel sementes hindus cravinho
línguas de gato e de trapo farturas pão com chouriço
mantas mortas em décima quarta mão
retratos repintados em papel fotográfico 10×5
e tudo variações embebidas de um só corpo de teimosia
tudo amálgama anátase de palavras regateadas
até à liberalidade quase à tuta-e-meia pelo menos
aos absortos almofarizes calcados de sombras divididas
entre a ordem amativa e a leiloada desordem
porque o poema posterior sempre
um pouco muito saturado do pasmo vintage
repouso os olhos que porventura não repousam nunca
sobre a escoliose restante duma cadeira de rodas
fora de serviço com desatenção palito o crédito na boca
com sete alinhavos cosida
entre o hausto do mofo e a multidão por turnos
coisas a sangue frio substantes sete saias nazarenas
mercam o tempo alimado folclórico ácido
encostam-me outro mar um tanto gasto ao ouvido
súbito uma beguina de faiança
calculo-lhe os ombros de mudez abatidos negrejados
de claustros e quarentenas uma beguina de saltos-agulha
e carmesim de argila nas extremidades dos lábios
não sei se dedal ou alfinetes comprei-a
o sol tão alto não creio que ao preço da chuva
comprei-a ao pensamento na pele interpôs-se
a pressentida memória das beguinarias oficinas
de clausura de carnes escaldantes e asiladas
da lassidão lascada da feira insurge a descomunal escada
do desapego o que estimamos afinal
é larga escavação do irrecuperável
das coisas mais que coisas arrebanhadas p´ lo anjo assassino
do areado esquecimento dentro de cada peça
mais que substância
recentes ou anacrónicos anómalos os objectos
do mundo endurecido burocraticamente removido
dos rigorosos parâmetros da condição de recursos
[re-morro II
observo o magnânimo par de jogadores de xadrez
avançam peças staunton tão compadecida.mente
abstidos os dedos ébrios o jogo pelo jogo
paupérrimo de azul aponto dura.mente as sílabas
as flechas trazidas de viagens longínquas à abdicação
porque hoje há um tabuleiro de séculos
morro e remorro por todos os lados em todos os sentidos
sucessiva.mente
remorro em cada mulher retalhada na exactidão da angústia
em cada uma esvoaçada até que um pé de árvore
desarvore retorcido em raiva os rascunhos do sangue
remorro a cada justiça selvagem a cada vingança cavalar
em troca de numerário. até que até que uma espingarda
uma pistola de fulminantes ao ombro de uma ossada
até que atinja as linhas da frente da corveta ciosa
dos fossos internos das vagas que desmancham a direito
e a torto a chuva peneirada nos quícios da carne
não páro de remorrer
esquecido a maior parte das vezes de que em ramo-zero
treino o poema apontado às torres ao toureio dos cavalos
das santíssimas santas aos senhores bispos aos reis aos
xeques aos xaques o poema não para descontar
compulsiva.mente quadrados preto-no-branco
pretonobranco pretonobranco pretonobranco
para lavar as mãos quatrocentas vezes por hora
remorro dobravel.mente aos pés das patas feridas
do sinistro e a cada abúlica deslocação de cada peça
há uma pústula a ferrar longitudinal.mente
a moratória. a selecta cegueira de fingir o massacre
remorro a cada urgência de amarela-pulseira
impavida.mente rateada a pulseira-vermelha à volta
dos pulsos dos grandes indiferentes dos que não impediram
o fim do jogo do xadrez e que seguem com a alma toda
em minutos para a bala de oxigénio
luís filipe pereira. BIC AZUL
ed. The poets and dragons society
maio de 2024