MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
Dois ciprestes em Granada terão de ser muito especiais, porque o que mais há em Granada são ciprestes. Lembro-me de ter lido algures, há muitos anos, uma discussão sobre uma espécie identificada por Abade Correia da Serra como Cupressus lusitanica. Ironizava então o crítico que a espécie nem era cedro nem do Buçaco, enfim, nem era cipreste nem português. Seja que espécie for, hoje ela figura na flora portuguesa com nomes vulgares variados, que mostram a confusão, ou a fusão de duas espécies: «cipreste-português, pinheirinho, cedro-de-portugal, cipreste-de-portugal, cedro-do-buçaco», e ainda mais. Deve ter sido por causa do debate contra Correia da Serra que eu não consigo separar os Cupressus dos Cedrus, sobretudo Cedrus libani, cedros do Líbano, aqueles que o arquiteto Hiram escolheu, dada a sua incorruptibilidade, para construir o Templo de Salomão. Em termos estritamente botânicos, Cedrus e Cupressus são géneros da mesma família, Cupressaceae, da mesma ordem, Pinales, a dos pinheiros, etc.. Em suma, são géneros irmãos ou bons primos.
Com as aromáticas, principalmente jasmim, a água, corrente, de repuxo ou em lago, e as citrínicas, os ciprestes representam a essência do jardim árabe, ainda muito presente em Granada e noutras cidades da região mediterrânica, outrora partícipes do Al-Andaluz. E aparecem muitas flores e toda a casta de representantes do mundo vegetal, na obra de Federico García Lorca, alguns dos quais espero mostrar neste primeiro contributo para o estudo da semântica e simbologia do mundo vegetal na obra do poeta granadino que alguns consideram mais árabe do que andaluz.
Sabemos, di-lo o seu grande biógrafo, Ian Gibson, em Poeta en Granada – Paseos con Federico García Lorca (Barcelona, Penguin Random House / Grupo Editorial, 2018), que o poeta plantou dois ciprestes em frente da Huerta de San Vicente, casa de veraneio da família, na Vega de Granada. Foi no terraço da Huerta de San Vicente, vindo do interior, que Federico, uma vez atravessado o umbral, se dirigiu, uma navalha aberta em triângulo na mão, para as trepadeiras, cuja grimpa começou a podar com esse instrumento ao qual, então, sendo-o ou não na realidade, podemos com propriedade aplicar a designação de “navalha de poda”. A navalha de poda é um dos símbolos primeiros de várias ordens englobadas pela Maçonaria Florestal, por isso figura no emblema desta. Podem consultar sobre o assunto um artigo meu, publicado no Triplov (https://www.triplov.com/Venda_das_Raparigas/Stella-Carbono/Carbonaria/Argotica.htm).
Decerto não terão ficado por aqui as artes de jardineiro de Federico na realidade dos campos, porém não creio que o piano, a guitarra, o desenho, a poesia, o teatro, os amigos, as tertúlias, as viagens com a companhia de teatro itinerante La Barraca, constituída por estudantes universitários, lhe deixassem muito tempo livre para jardinar. Embora, em termos simbólicos, e dado que choças e barracas são construções em madeira, típicas dos habitantes da floresta, possamos dizer que jardinou, foi lenhador, carpinteiro ou carvoeiro durante boa parte da sua vida, bruscamente interrompida aos 38 anos. Tal desconcerto ocorreu mal se iniciara a Guerra Civil, por fuzilamento, durante os massacres perpetrados pelas tropas fascistas do general Francisco Franco. Segundo testemunhos orais, transmitidos por Ian Gibson, Federico foi fuzilado, com mais três homens, um pouco adiante do Barranco de Víznar, tristemente célebre pelos massacres, no caminho de Alfacar, junto de uma oliveira, e perto de uma nascente conhecida como Fonte das Lágrimas. Ian Gibson refere sempre a presença do olivo, árvore decerto idosa que testemunhou a morte de Lorca, impotente, ela, que simboliza a paz.
Lorca nasceu na Vega de Granada, vasta planície, muito fértil, aos pés da Sierra Nevada. Em Valderrubio, nome substituto de Asquerosa, que a ninguém agradava, o pai cultivava sobretudo tabaco “rubio”, daí a riqueza da família e o nome da terra. Outros produtos eram a fruta e as hortícolas, a avaliar pelo que em seco se conserva, a ornamentar e a dar voz às paredes, ou pendente de tetos, no que hoje já não é uma casa de lavoura, sim um museu, dotado de dois palcos para teatro, um instalado no antigo armazém, outro desmontável, no exterior, para espetáculos de Verão. As casas de campo onde Lorca viveu, Fuente Vaqueros, Valderrubio e Huerta de San Vicente, são casas brancas, graciosas, sem sinais ostensivos de riqueza, sombreadas por árvores de porte, como os ciprestes e as palmeiras, embelezadas por arbustos de belos frutos, como as romãzeiras, ou perfumados como o jasmim. As flores em vaso variariam consoante a vontade de Dona Vicenta, mãe de Federico, e as estações. Por vezes, as personagens de teatro exibem o nome das mais belas flores, para citar Dona Rosita soltera o El lenguage de las flores, cujo segundo titulo promete instrutivas lições de gramática. Os diversos quadros desta peça são designados por Lorca como “jardins”. Jardins e canteiros, na linguagem das flores, ou seja, dos habitantes da floresta, são as mais pequenas células em certas ordens da maçonaria florestal. Na cúpula, temos a Alta Venda.
Tenha Federico vivido a maior parte da vida no campo, em contacto com a terra e a agricultura, não creio que sobrasse ao poeta muito tempo para a jardinagem. Vejo-o mais sentado ao piano, a dedilhar a guitarra, ou mesmo a ouvir música do gramofone «A Voz do Dono», peça conservada na sua casa-museu de Valderrubio. Aliás, para deixar uma prova mínima do que afirmo, no segmento de filme inserido em vídeo do YouTube, quando o vemos assomar ao terraço munido de navalha de poda (que, fora do símbolo, devia ser apenas a de barbear), quando o vemos, em várias fotos tiradas na Huerta de San Vicente, e não apenas nesse segmento jardineiro de filme, ele não traja roupas campesinas, sim o uniforme que todos os atores usavam na Barraca, o fato-macaco, cuja cor azul conhecemos da literatura sobre ele. Em aparência, o que devia ser roupa de trabalho operário, para evitar sujar outra roupa, destinado a erguer as colunas da barraca e a desmontá-a, em geral no adro de igrejas de povoações pequenas ou nas praças das cidades grandes, essa roupa de trabalho era usada por ele como uniforme, farda que identificava La Barraca, se não lhe atribuía Lorca as mais elevadas funções de paramentos. As suas fotografias mais conhecidas e carismáticas mostram-no-lo com essa roupagem que eu diria sacerdotal.
Federico é um ser da floresta, a despeito do seu parco jardinar. Desde os gerânios à janela, campos de milho e tabaco da infância, até ao “olivo” da morte, ele está quase sempre integrado numa paisagem vegetal. É assim que o vemos a estudar, ou a conversar com os camaradas, num banco do Jardim Botânico, anexo da Faculdade de Direito de Granada. Ele estudou aqui Direito, Filosofia e Letras. No átrio, pendurado na parede, vemos o seu mais tocante retrato: tão jovem que mal se percebe a penugem que lhe rodeia o queixo e desenha o bigode. Em baixo, a denunciar talvez a sua familiaridade com a Alhambra, maravilhoso complexo de palácios e jardins a coroar uma colina vestida com um belo bosque, a sua assinatura em arabescos também denuncia uma caligrafia ingénua de menino.
Em 1936, data da sua morte, informa Ian Gibson que a parte traseira da Faculdade fora ocupada pelo Gobierno Civil. Foi ali que Federico passou as duas últimas noites da sua vida, preso. Os dias, esperemos que os tenha passado à janela, a contemplar o que tanto amava: as belas árvores e plantas do Jardim Botânico: a Gingko biloba, o Pinus canariensis, o castanheiro-da-índia, os canteiros de canavial, de rícino, as roseiras, enfim, aquele céu verde antes da partida para o azul, anunciada pelos Cedrus e Cupressus, primos afinal de Pinus canariensis e de outros pinheiros.