DO DODÓ À FÉNIX
Parte II
Transmutação na iconografia científica
Nuno Marques Peiriço 


A par de uma possível limitação daquilo que o ser humano pode aprender, podemos também interrogar-nos sobre uma eventual limitação daquilo que deve aprender.

François Jacob, O Ratinho, a Mosca e o Homem

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O Discurso das Imagens

É fácil reconhecer que uma imagem substitui mil palavras. Para um pintor, fotógrafo ou desenhista, a máxima terá certamente um valor acrescido. Mas, mesmo para os restantes, não será difícil aceitar a veracidade da afirmação.

Então que tipo de informação nos dá uma imagem? E uma mesma imagem dará a mesma informação a diferentes leitores? Não creio.

Por exemplo. Ao fornecer a imagem de um hipopótamo num lago, não pretendo com isto passar qualquer informação. No entanto, se à imagem fizer corresponder uma fantástica descoberta no lago Loreto, localizado a mais de 1000 metros de altitude na ilha africana de Fernando Pó (Bonelli), estarei a passar a mesma informação a todos os leitores? Estarei a seleccionar leitores? Muitos dirão que se trata de uma barbaridade, pois a ocorrência natural de mamíferos terrestres em ilhas oceânicas não é suportada pela biogeografia, excepto a atlante, que os consideraria relíquias ou fósseis vivos. Outros, mais estimulados para um discurso extraordinário, questionar-se-ão sobre o propósito desta fantasia. Por detrás pode estar o interesse do informador de que pessoas instruídas se desloquem a Fernando Pó para averiguar o que lá se passa. Dar uma informação fantasiosa sobre a fauna foi uma maneira subtil de seleccionar os leitores que me interessam. Desta forma, a imagem ganha carácter linguístico, assumindo nova identidade.

Fechado este preâmbulo, podemos avançar para o DoDó.

A Espécie

Por me sentir inepto para descrever os caracteres de uma espécie tão transmutante, recorro a Sonnini para alguns traços fundamentais do Dronte ou DoDó.

Os holandeses chamaram-lhe dodaerts e walgh-vogel (ave nauseabunda), os portugueses, dodo, os naturalistas, cisne de capelo, avestruz encapuçado, galo estrangeiro, etc.. Mas esta ave já não se encontra nas ilhas, perda que não se deve lamentar, pois era uma dessas espécies que a natureza parece ter gerado em momentos de negligência ou de humor e que pouco se preocupa em conservar. Com efeito, o Dronte não apresenta senão formas e qualidades repulsivas. Maior que um cisne, de ave só tem as penas e a forma geral. De resto, era-lhe impossível elevar a sua pesada massa no ar e andar com velocidade; mal podia arrastar-se pesada e desajeitadamente. A cabeça, montada num pescoço espesso, inchado como o do pelicano, é quase inteiramente um bico imenso, de mandíbulas côncavas no meio, curvas na ponta em sentido contrário. A abertura do bico prolonga-se bem para lá de dois grandes olhos negros. Um tufo de plumas, ou segundo certas pessoas, uma membrana, forma sobre esta cabeça já bem disforme uma espécie de capuz. O corpo é cúbico. Penas cinzentas, moles e suaves, cobrem-no completamente. Um tufo de penas amareladas de cada lado fazem de asa e cinco plumas da mesma cor, de barbas desunidas e crespas, substituem a cauda. Toda esta massa bizarra se sustenta mal sobre dois pés, ou antes, sobre duas colunas com quatro polegadas de comprimento e quase o mesmo de circunferência, terminados por dedos sem unhas. Acrescente-se a este quadro tenebroso que a carne do Dronte não se pode comer, devido ao sabor desagradável, e ter-se-á a noção exacta de uma verdadeira ave nauseabunda, que, pela singularidade dos seus atributos, se diria dever a existência à fantasia de uma imaginação desordenada.  

Fig. 1: Imagem que acompanha a descrição do DoDó in Sonnini.

Maurícia: Didus ineptus, Ornithopera solitaria, e D. broeckii ou Aphanapterix imperialis, a galinha vermelha;

Reunião: Didus ineptus, Raphus solitarius e D. borbonicus ou Victoriornis imperialis, o DoDó branco da Reunião.

Rodrigues: Pezophaps solitaria, Pezophaps minor e Didus nazarenus, a ave de Nazare.  

Desde que foi descoberto, o DoDó foi desenhado por inúmeros autores, quer para fins científicos, quer em representações artísticas. A figura mais antiga de DoDó de que tenho conhecimento é de 1601, por De Bry, e representa um animal que fora levado vivo para a Holanda por Van Neck, explorador holandês que andou pelas Mascarenhas no final do século XVI. Roelandt Savery pintou o Dodó várias vezes: Berlim, 1626; Viena, 1628; Haia; Estugarda e Londres (Zoological Society e British Museum), Oxford e Harlem. Na biblioteca do último imperador da Áustria, existe um desenho atribuído a Hoefnagel que se pensa datar de 1620, feito a partir de animais do vivário do imperador.

 

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Figura 2: O DoDó, por Hoefnagel em 1600. In Wissen.

O mais importante trabalho português sobre o DoDó é de Luna de Carvalho (1989). Neste artigo apresentam-se alguns desenhos do Dronte que o autor relaborou a partir dos originais.

A respeito da imagem de Hoefnagel, Luna diz ter origem num animal empalhado, trazido para a Europa por Van Neck. O espécime estava mal empalhado, diz o autor, justificando o aspecto excessivamente magro do DoDó de Hoefnagel. Por isso corrige o desenho, arredondando as formas à ave.

Fig. 3: Algumas representações do DoDó da primeira metade do séc. XVIII. In Luna de Carvalho.

   

Gigantesca Imaturidade

A imagem de De Bry (1601) patenteia-se no diário de Van Neck. O DoDó está despido, como qualquer criança acabada de vir ao mundo. Nos Exoticorum, obra de Clúsio (1605), que classifica o DoDó como Gallinaceus gallus peregrinus, a imagem, de Adriani Vennij (ou Adrian van de Ven), não difere muito da anterior. As asas curtas e inaptas para o voo são a principal característica desta ave, que, talvez por se aperceber disso, apresente em Herbert (1634) um ar melancólico, perdendo o aspecto desembaraçado e feroz das imagens anteriores. Tal é a tristeza, que não tira os olhos do chão e até o bico se arredondou.

A imagem de Walther (1657), diferente das outras pela postura muito mais erecta e garbosa, foi razão para descrever nova espécie, Ornithopera solitaria, segundo Hatchissuka, Hachisuka, Hachissuka ou Hakisuka (in Luna de Carvalho). Agrada-me saber que o galo peregrino teve direito a baptismo católico, se me não engano ao decifrar a legenda em que leio DODO BÍBL. de FLORENCE.

Todas estas representações dão a ideia de estarmos na presença de jovens e não de adultos. Aliás, Maddox acha muito curioso que o Dodó tenha sido descrito como um patinho do tamanho de um cisne (young duck or gosling enlarged to dimensions of a swan). O Dodó será então exemplo de uma população cujos adultos mantiveram caracteres juvenis de outra espécie? 

Comparando a imagem de Clúsio com a de van de Broecke, encontramos no segundo um animal bastante mais envelhecido e mais gordo, mas mantendo o aspecto de gigantesca imaturidade de que fala Maddox.

Figura 4: O DoDó por Pieter van de Broecke. In Luna de Carvalho.

 

Excessiva Obesidade

.Em 1626, duas figuras, uma de Vennij e outra de Savery, dão-nos conta de outras transmutações, com especial destaque para a perda da postura erecta. Vennij, que tinha desenhado o DoDó de Clúsio, apresenta agora uma ave bastante mais robusta, de papo saliente e pescoço curto e curvado, certamente pelo peso de uma vida começada em 1605. Conclusão, o DoDó é o mesmo, mas engordou, talvez por causa de uma alimentação à base de biscoitos, como sugere Kitchener, ao tentar justificar a súbita obesidade dos espécimes representados. 

Figura 5: Duas representações do DoDó datadas de 1626: a) por Adriani Vennij (in Wissen); b) Cena com vários exemplares, por Roelandt Savery (in Gould, 1996a).

 

Na imagem de Roelandt Savery temos uma cena doméstica, com um roliço casal de DoDós e descendente, notando-se, no que julgo ser a fêmea, cauda dupla e um olhar de abutre; como abutre foi aliás classificado por Blainville (Gervais & Coquerel). De notar que o pescoço da cria é exactamente igual ao do adulto, o que demonstra a transmissão hereditária dos caracteres recém-adquiridos, pois até aqui o DoDó tinha o pescoço levantado, como afirma Leguat. 


 

CONTINUA