DO DODÓ À FÉNIX As Professor Owen has remarked,
O trabalho Do Dodó à Fénix resulta de investigação no âmbito do projecto Ciência extraordinária: espécies críticas e supercríticas, da responsabilidade exclusiva dos dois autores. Nuno Marques Peiriço, ao mostrar como o dodó se transmuta na iconografia, já declarou que espécies críticas são aquelas cujo historial é mais mirabolante do que um espectáculo de ilusionismo, precisando por isso de ser lido com espírito crítico. Para contextualizar a transmutação dos dodós convém iluminar três pontos: 1º A palavra transmutação ocorre em História Natural em lugar de evolução. Darwin pouco ou nada usou este vocábulo. Em vez dele, prefere variação. Owen, contemporâneo de Darwin, quando refere as mudanças anatómicas do solitário, o termo que emprega é transmutation. Nem todos os evolucionistas eram darwinistas, na maior parte defendiam o criacionismo Deus criou, mas as espécies não são imutáveis. 2º A ciência garante que três espécies de dodó se extinguiram nas três ilhas nos três últimos séculos, e que só uns treze animais vivos viajaram das Mascarenhas para outras partes do mundo, entre elas um para o Japão. Tudo o que deles resta são ossos soltos e reconstituições. Gould vai ao extremo de afirmar que, in flesh and blood, não há mais do que a pata e a cabeça do exemplar empalhado de Elias Ashmole, salvas da fogueira em 1755, data sísmica, pois foi em 1755 que a ave nauseabunda sofreu tal condenação. Com apenas um pé e uma cabeça de não se sabe o quê, nenhum naturalista descreveria uma espécie, e, se o fizesse, ninguém lhe publicava o artigo, salvo em circunstâncias extraordinárias. No mínimo, em caso de vida ou de morte. Ornithoptera solitaria foi descrita a partir da gravura de um livro, em data recente, o que é ainda mais inacreditável. É o mesmo que pegar num livro de quadradinhos e descrever como novas espécies o Pato Donald, o Rato Mickey, etc.. Ora as transmutações do dodó, a que também se dá o nome de tolo e idiota, não andam longe das de um Superpateta. 3º O período Fénix do dodó segue de perto a publicação da Origem das Espécies (1859). É aquele em que, por obra dos irmãos Newton, a ave renasce das cinzas para se transmutar numa vedeta científica. O estrelato ocorreu na sequência de uma Transit of Venus Expedition. Periodicamente, Vénus aproxima-se de nós, e o ponto da Terra de que mais se aproxima é as Mascarenhas. Na Maurícia havia um lago, a Mare aux Songes, que então estava a ser drenado. Ora foi aí, no Lago dos Sonhos, que Edward Newton e os naturalistas da Expedição do Trânsito de Vénus descobriram importante depósito de ossos de várias espécies, entre elas de Didus ineptus e de Didosaurus mauritianus. O Didosaurus, ou sáurio Dido, tem a propriedade de apresentar, na iconografia, um osso de mamífero. Este facto espectacular indica certamente a sua origem atlante, pois o osso transmutado é o atlas. De outra parte, um célebre lagarto gigante de Cabo Verde foi considerado seu descendente (Hoffstteter), pelo que mais uma vez o discurso científico aponta para a Atlântida. É através da New Atlantis, de Francis Bacon, que o mundo submerso de Platão penetra no discurso da ciência. Este livro, ao descrever o sistema governativo de uma sociedade de 36 fellows numa ilha secreta, forneceu inspiração aos construtores de uma das mais poderosas sociedades científicas, a Royal Society of London, cujos membros se auto-designavam Colégio dos Invisíveis, isto é, Rosa-Cruz. O período Fénix do dodó inicia-se nos anos sessenta. Em 1870, Alfred Newton, reputado ornitologista, será eleito fellow da Royal Society. Por seu intermédio, o irmão, Edward, auditor-geral na Maurícia, obtivera financiamento para explorações na ilha Rodrigues, onde tinha descoberto muitos ossos de solitário, após as colheitas no Lago dos Sonhos. O tema da Atlântida está presente na ciência até para lá de meados do século XX. Para a biogeografia atlante, espécies como o dodó, o sáurio Dido, os lagartos e osgas de Cabo Verde e Canárias, etc., são relíquias (fósseis vivos) da fauna de um continente afundado, cujos pontos de altitude afloram como ilhas. Outras teorias rejeitam a atlante, por isso negam que tais espécies sejam fósseis vivos, para as considerarem modernas, formadas tão recentemente como as ilhas que habitam. As Mascarenhas só têm vinte milhões de anos de idade, de acordo com The New Caxton Encyclopedia. Estudado pelos cientistas da época, o Didus ineptus foi elevado à via de Vénus ou, como diria o Abade Pingré, sic itur ad astra. Nas palavras de Newton & Newton, tomou a place among the constellations. E porquê subiu ao céu uma ave quase sem asas, que não voava? Precisamente, porque estamos a viver a polémica da selecção natural ou sobrevivência dos mais aptos. O Didus ineptus torna-se um desafio para a ciência, ao reclamar a sobrevivência dos inaptos. E qual a sua origem geográfica e genética? A maior parte das fontes inclina-se para a hipótese de que na origem teria sido um pombo. Chegado a ilhas distantes do continente, encontra um Éden sem cobras nem outros predadores de que fosse preciso fugir usando as asas. Não precisando de usar as asas, elas atrofiaram-se e por isso diferenciou-se dos pombos. Estas teorias são contrariadas por Gervais & Coquerel, ainda no século XIX, ao declararem que o dodó não é um pombo modificado, sim uma ave que sofreu uma paragem no desenvolvimento do aparelho de voo. Esta hipótese também é defendida por cientistas actuais: o dodó é uma ave que nunca chegou a voar. A sua inépcia é inata e não adquirida. Mas, se já nasceu inepto, a menos que Deus o tenha criado assim nas Mascarenhas, não se vê a que outro milagre possa dever a existência, excepto, claro, ao da criatividade humana. Extraordinário é que na Origem das Espécies Darwin não mostre conhecer sequer o dodó, quando ele tem sido tão discutido quanto à evolução. E sobretudo sendo Darwin criador de pombos. Hibridava-os, conhecia todas as variedades, entendia que todas derivavam do pombo das rochas, Columba livia, a que muito se assemelham os pombos das praças. Darwin concorda com Owen em que não há maior aberração na natureza do que uma ave incapaz de voar, mas não lhe ocorre o exemplo da Fénix inapta, porque, à data, a Fénix ainda não tinha ressuscitado para o teatro darwinista. Extraordinário também que Bernardin de Saint-Pierre não o inclua na avifauna de Paul et Virginie. A entidade mais semelhante a Dido que na obra se encontra é o primeiro editor, M. Didot. A dado passo, porque Virginie gostava de ouvir o canto das aves junto de uma fonte, Paul transporta para ali ninhos de todas as aves da Maurícia, mas nada de dodós. Mais longe, ao falar das aves de arribação, o narrador menciona os pombos holandeses. Mas estes são migradores, com boas asas. Saint-Pierre viveu na Maurícia de 1768 a 1770, desempenhando funções de maître maçon, literalmente, ele que se diz ter sido pedreiro em livre exegese. E nem por uma vez menciona a Dido inapta. É certo que nessa época já só sobreviviam os solitários de Rodrigues e de Reunião. Em todo o caso, estranha-se o silêncio, quando afinal a história dos amores de Paulo e Virginia pertence a uma época anterior, contada como foi pelo velho Domingos. A ciência faz remontar a história das Didos a Vasco da Gama, primeira pessoa que as terá visto, ao passar pela Maurícia (Osório). Acontece que Vasco da Gama não passou nas Mascarenhas, e os únicos animais associáveis a dodós de que fala Álvaro Velho são os soliticairos: E neste ilhéu há umas aves que são tamanhas como patos, e não voam porque não têm penas nas àsas, e chamam-lhes soliticairos e matámos delas quantas quisémos; as quais aves zurram como asnos. O consenso assentou em que o descobridor das Mascarenhas foi Pero de Mascarenhas, nove anos após a passagem do Gama pelas cercanias de Madagáscar. Assim sendo, embora nenhum português tenha até hoje reclamado a descoberta dos dodós, dê-se o dodó a Mascarenhas e a Gama o pinguim do Cabo, pois é dele que fala Álvaro Velho. A sua nota é tão correcta que é como zurrar de asnos que os ornitólogos ainda hoje lhe descrevem a voz (Brown et al.). As aves zurrantes, Spheniscus demersus, habitavam um ilhéu perto do Cabo da Boa Esperança, e foi já em Janeiro de 1498 que os marinheiros as avistaram. A que motivo se deverá a implantação destas aves, digamos que invertidas, em ilhas tão distantes do palco científico europeu? Estamos a lidar com naturalistas, e naturalistas e maçons são quase sinónimos. Lendo pela cabala hermética o nome da Expedição do Trânsito de Vénus, achamos nele os Fiéis do Amor, defensores da Igreja Invisível, oposta à Romana. Pedro de Mascarenhas, como todos os Mascarenhas da família deste Pedro que não deve ser o navegador, foi o introdutor da Companhia de Jesus em Portugal, em 1540. Jesuítas e maçons não são doces que se possam juntar na mesma bandeja. De outra parte, estas ilhas foram palco de disputas e partilhas entre pombos que uns aos outros se atacavam e os holandeses não seriam os menos aguerridos portugueses, espanhóis e ingleses. Aos portugueses criticavam por exemplo os holandeses a nossa tendência para o secretismo: mapas deliberadamente erróneos, para ninguém saber onde ficava o Brasil, diários de bordo que não se publicavam, etc.. E é facto que os portugueses, a respeito do dodó, mantiveram até hoje o mais profundo silêncio, ao contrário de todos os adversários, que publicam informações não só deste mundo como do outro, o que acaba por dar no mesmo secretismo. Em suma, Pedro é pedra, e sobre estas pedras mascarenhas se edificou o templo ao dodó. Desde Clúsio, que só lhe viu um pé, o bastante para se reconstituir toda a arquitectura orgânica, aos utilizadores da Internet, o dodó tem sido transmutado de todas as maneiras. Nuno Marques Peiriço já mostrou algumas, e como resultam de golpes de varinha mágica. As transmutações iconográficas não são autónomas das literárias, o ícone interage com o verbo: se de repente vemos uma Dido com os dedos ligados por membrana interdigital, deve-se isso a Cuvier ter dito que os dedos de Didus ineptus seriam de pinguim, se os pés fossem palmados. As imagens em que o dodó é um avestruz decorrem de Lineu o ter classificado como tal - Struthio cucullatus. Assinalemos uma diferença entre os dois discursos: no escrito, há frequente identificação com o pombo, aliás o dodó continua na ordem Columbiformes. Nas imagens, só com imaginação nos parece columbiforme. É mais um negativo ou uma paródia disso. Falta-lhe a graça, a espiritualidade da Pomba. Diz-se que era tão denso que arrastava o ventre pelo chão, e no livro de Lewis Carroll até usa bengala. É tão plúmbea a sua matéria que não surpreende ver a imagem na qual, enfrentando a espada de S. Jorge, substitui o dragão (Luna de Carvalho). Se o dodó fosse um dragão, talvez pudesse ter chegado à Maurícia num carro de fogo, tal como Elias foi para o céu. Elias o profeta, não Elias Ashmole, o alquimista que tinha uma Dido empalhada, anos depois condenada à fogueira. Mas seria ela um dragão? Consoante as fontes, já se transmutou em avestruz, galinha, galo, peru, grou, cegonha, pato, pombo, abutre, cisne, etc., e Gallinogralle. Com o táxone Gallinogralle (Gervais & Coquerel), passamos mais directamente ao discurso científico penetrado por técnicas destinadas a duplicar sentidos, o que é próprio do discurso alquímico, mas não se aceita em ciência, ainda que esteja à vista com a grandiosidade de um hipopótamo insular escarrapachado nas páginas do Boletim da Sociedade Geográfica de Madrid, e pelo punho de um dos directores. Inútil dizer que é de propósito que alguém descreve o dodó como um cubo montado em colunas cúbicas e com dedos sem unhas, quando na imagem o bicho tem garras enormes e mais perto estaria da esfera. A ciência normal não aceita duplicações de informação num dicionário de História Natural publicado em Paris e com mais de uma dúzia de volumes. Nem os artistas da mesma arte aceitam às vezes que um arquitecto está por detrás da descrição, que as colunas têm as letras J e B, e que o cubo já se sabe que representa o Templo maçónico. Para todos os efeitos da paz de espírito, o que temos vindo a enunciar são erros de ortografia, manifestos de ignorância das fontes, etc.. Que pânico move à rejeição? - o da fraude. Mas não é fraude, é guerra, subversão, terrorismo cultural, como já tivemos oportunidade de comunicar no trabalho sobre a Chioglossa (Guedes & Peiriço, 1998). Paródias como a do dodó impedem que o leitor aceite a autoridade do mestre, portanto elas são uma guerra aberta ao ensino escolástico, que entre nós foi monopólio dos jesuítas até ao tempo do Marquês de Pombal. O novo ensino que se propõe é o do livre arbítrio, da livre interpretação, que corresponde ao aprende à tua própria custa dos alquimistas, posto o método em termos profanos. O dodó revelou-se espécie crítica quando nos apercebemos de que a sua literatura e iconografia constituiam um currículo fortemente gralhado. Gralhado como em Gallinogralle, que literalmente seria fruto de relações sexuais entre uma pernalta e uma galinha. O táxone Grallae já não é válido mas, outrora, pertenciam-lhe espécies como o flamingo. No Egipto, a Fénix, ou ave Benu, era a garça vermelha, Ardea purpurea. Foi porém ao flamingo que a ornitologia deu o nome da Fénix - Phoenicopterus ruber roseus. O étimo gradus que subjaz a Grallae sugere todo o tipo de graus, grãos e silêncios. Falar às aves e arte de música são designações da ciência hermética, aquela cujo discurso só é decifrável mediante a íntima conquista de chaves, ao longo de uma via de provações em direcção ao inexprimível. Na linguagem das aves incluo a das gralhas, irmãs dos corvos e rivais das musas, cuja tagarelice causa ruído ensurdecedor. Discurso gralhado é aquele em que a informação científica normal é subvertida pela extraordinária. À maneira de vírus, a gralha infecta o documento. Porém, em vez de o destruir, desdobra a informação. Vejamos alguns órgãos do discurso científico feridos pelas gralhas. Discurso das Gralhas 1. Nomenclatura a) confusão de identidades b) etimologia inverosímil 2. Geografia a) distribuição geográfica anómala b) anormalidades geográficas 3. Anatomia e comportamento a) dados somáticos fabulosos b) sexualidade transcendental 4. História a) arquitectura mítica b) materiais de construção esotéricos Por confusão de identidades não me refiro à circunstância de o dodó não ser uma espécie, sim cerca de nove; nem à de ter muitos nomes - walgh vogel, doddaers, dronte, doudo, solitário, avestruz encapuçado, cisne macaco, galo estrangeiro, dudu, etc., na nomenclatura vulgar; e Pezophaps, Didus, Raphus, Victoriornis e Ornithoptera, na científica - isto não é confusão, sim resultado normal do trabalho dos sistematas. O que não é normal é o acervo de confusões que levam Gervais & Coquerel, por exemplo, a dizer que os únicos dodós verdadeiros eram os de Rodrigues e da Maurícia. Dos de Reunião não havia um desenho, um osso, uma descrição. Perguntemos: Que confusão de dodós há na ilha Rodrigues? - e logo Damião Peres e Fontoura da Costa, em pleno século XX, respondem: A Reünião e a Mauricia, belas pérolas do Oceano Índico, a E. de Madagascar, são duas ilhas que restam de um grupo que as Cartas do século XVI indicavam como sendo três. A terceira só existiu na ardente imaginação dos descobridores portugueses. Se Rodrigues nunca existiu, fica demonstrado que as confusões de dodós nela existentes não passam de fruto da minha ardente imaginação, e por isso até me dispenso de tocar no item das anormalidades geográficas. Quanto a duplicação de identidades humanas, é ver que certas fontes atribuem todas as gravuras de dodós de Savery a Savery, como se o Savery pintor de dodós fosse só um, quando no mínimo há dois, o Rolando e o Salomão, se bem que as suas datas de nascimento distem só dezoito anos; é ver como o distinto ornitologista Alfred Newton (1865), director da mais importante revista de aves do mundo, a Ibis, que ainda se publica, pede várias desculpas: por ter classificado machos e fêmeas de dodó como duas espécies de dodó; por ter classificado um dos redescobridores do dodó como filho do governador da Maurícia, o capitão Barcly, quando o Barclay redescobridor do dodó não era filho do governador da Maurícia. E não esqueçamos a actualíssima salada de Hatchissuka, Hachisuka, Hachissuka e Hakisuka, tudo especialistas japoneses em dodós. Para fechar a alínea, recuemos à confusão gerada por Emmanuel Althman, quando escreve ao irmão, a avisar que envia da Maurícia uma estranha galinha e umas contas para as primas, filhas do seu most loving brother: of mr perce you shall receue a iarr of ginger for my sister: some beades for my Cosins your daughters: and a bird called a DoDo (Newton, 1874). O aviso de que estas cartas são posteriores ao século XVI vem da inadequação de parentescos. E então percebemos que quem de facto as assina, como autor de obra e de arte, são Bons Primos (carbonários) e Irmãos (maçons). Quanto à etimologia, incide na palavra dodó, que não provém de uma língua, sim de todas, consoante a nacionalidade da fonte. Não se trata de os portugueses reclamarem nada, sim de ingleses e franceses nos oferecerem de bandeja a palavra doudo como étimo de dodó; de o Webster afirmar que provém do francês doudo (na edição do Webster mencionada na bibliografia; noutras, a imagem mostra um dodó anatomicamente diferente, e desaparece a informação de que a palavra doudo é francesa); e de Cândido de Figueiredo, sem mais explicações, oferecer ao inglês dodl a filiação de doido. Além disto temos de contar ainda com as palavras holandesas Dodars, Dodoor, Doddaers, etc., que nos afiançam serem todas origem da palavra dodó e significarem pateta e preguiçoso. A palavra dodó existe em português, de acordo com o Didionário Etimológico de Pedro Machado, originária do concani dhadó, que por sua vez provém do hindustânico, remontando decerto este a alguma expressão sânscrita querendo dizer não tem os alqueires todos bem medidos, uma vez que o dodó é uma medida de peso. A Mare aux Songes é bom local para fazerem dodo os que precisam de fraldas Dodot, e com isto lembro que o dodó sofria de gigantesca imaturidade. Maddox interpreta como pedomorfose esta frase, junta a uma descrição segundo a qual os dodós eram aves adultas com aparência de pintainhos, por terem o corpo coberto de penugem em lugar de penas. Outras fontes, porém, referem que inicialmente se julgava que as Didos eram todas fêmeas, fenómeno também inteligível como pedomorfose, mas injustificados ambos atendendo a que não havia predadores nas ilhas que os poupassem por delicadezas morais. A não ser os marinheiros de que diz Leguat não raro pouparem as fêmeas à morte por serem maravilhosamente belas. Em suma, o dodó é um brinquedo como a Nessie, com que ainda hoje a ciência arma e desarma hipóteses, subverte, diverte, controla o conhecimento, nos desarma a nós também. Avanço para Vénus, a deusa do Amor, esse anagrama. Estamos no coração de uma guerra entre Roma e os naturalistas, com a encíclica Humanum genus entalada na garganta de muitos. Em Portugal, como o governo era maçónico, nem a queriam traduzir (Clemente). Não posso entretanto parar aqui, sim no papel do sexo na permanência da vida e suas transmutações - sejam as espécies imutáveis, transformáveis por adaptação a novas condições do ambiente, ou modificáveis pela selecção natural, o meio de que a natureza dispõe para isso se passar é a cópula, etc., e subsequente reprodução de caracteres. Com a subversão das gralhas, o sexo transcende não só a norma como o natural. A cópula entre dodó e marinheiro, como sugeriu a imagem encontrada em Luna de Carvalho, imita cópulas divinas como a de Leda e o cisne, ou das virgens daomeanas com Dangbé, a piton sagrada. O relato de Leguat que traduzimos no programa do colóquio, acerca do dodó da ilha Rodrigues, retrata bem a sensualidade das espécies críticas. A história das espécies não católicas costuma ser como Paul et Virginie, muito bem construída pelos mestres pedreiros. Na de Dido temos três pedras e, como as pedras são órgãos essenciais na anatomia das aves, Newton & Clark proporcionaram-nos a importante visão de três faces da pedra que um dodó entesourava na moela. E mais: essas pedras, de basalto, não existiam no local onde tinham sido desenterrados os ossos do dodó, só a milhas de distância, donde se depreende que os pintainhos, mal saíam do ovo, empreendiam a questa do Lapis basalticus. Essa pedra ia crescendo filosofantemente à medida que crescia a moela, até a moela atingir proporções compatíveis com uma pedra do tamanho de um ovo de galinha. Leguat confirma que interpretei correctamente este fabuloso achado, ao declarar que a pedra da moela dos dodós era a preferida para amolar facas, decerto pelas perfeitas dimensões. A pedra mais curiosa deste templo narrativo é Elias Ashmole, doador de um museu à Universidade de Oxford, entre cujos objectos ia uma Dido empalhada. Em 1755, a administração do Museu da Universidade manda lançar o empalhado à fogueira, por ser um objecto inútil, feito com penas de várias espécies de aves, bolorento e cheio de traça. O conservador salva uma pata e a cabeça como peças de inventário, para obedecer às regras do próprio Ashmole, falecido décadas antes: devia guardar-se uma pata e a cabeça de todos os animais reformados. Enquanto perdemos tempo a magicar em patas e cabeças de centopeia e de minhoca, escapa tudo o que é importante. Ashmole, como Bernardin de Saint-Pierre, era um arquitecto, um mestre pedreiro. Na pré-história da maçonaria, encontramo-lo a assentar as colunas da ordem sobre os três graus de iniciação. Toda a história do dodó é alquímica, assinada pelos mestres maçons. Jerry Berg Man estudou as mais recentes teses evolutivas sobre o dodó. Conclui que se aceita hoje a passada existência da espécie, não porém a tese de que se tenha modificado. Os factos apontados, diz ele, não suportam o mito da evolução, suportam, isso sim, a corrupção moral da humanidade. Eis uma extraordinária conclusão moral, de que tomo distância, preferindo a literária: Dodó era a alcunha de Charles Lutwidge Dodgson. Lewis Carroll era tão gago que lhe custava imenso apresentar-se. Dó-dó-dó, tentava. E como bem tentava, por Dodó ficou conhecido (Carroll). Quanto às aves das Mascarenhas, os portugueses começaram por dar à Maurícia o nome de Ilha do Cirne ou do Cisne. Melhor é ficar por aqui e olhar para a solitária de Leguat (Figura 13). Não é tão bela que dá dó?
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