Do religioso no poema – poemas de Manoel T. R.-Leal

 

 

 

 

 

LUÍS DE BARREIROS TAVARES, Org.


Nove poemas inéditos de Manoel Tavares Rodrigues-Leal

 

Manoel T. R. Leal – (c 2005)

Nota – Em alguns destes poemas há um certo sentido de desconsolo na invocação divina. Por exemplo: «Felizes ou infelizes não há Deus que nos redima.». Noutros passos, dir-se-ia uma espécie de desencontro ou desajuste no apelo terreno ao divino: «Pobres palavras doadas ao Senhor, / por Ele interditas à idade vagabunda dos homens.»; «Senhor, em vão busquei Vosso apelo demasiado». E nestes, pelo contrário, uma entrega e devoção plenas: «Senhor, sede meu arrimo, / meu alimento, minha alta sabedoria»; «o que me amanhecia era amar amar e Deus desenha a minha madrugada». E o seguinte verso evoca o célebre passo de Cristo na cruz («Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» Mateus, 27:46; Marcos, 15:34): «Senhor, por que me abandonais ao xadrez do tempo ostensivo e extraviado.». 

«Perto estamos, Senhor, / perto e tangíveis. // Tocados já, Senhor, / agarrados uns nos outros, como se / o corpo de cada um de nós / teu corpo fosse, Senhor. // Ora, Senhor, / ora para nós / estamos perto.»

Paul Celan – do poema «Tenebrae» – tradução de Gilda Lopes da Encarnação.

 

Bartolomé Esteban Murillo – «Jesus curando o paralítico» (1667-70)

1

O que esplende é o tempo de tão possuído e solicitado

o que freme é esta brisa tão abandonada e escassa

o que me amanhecia era amar amar e Deus desenha a minha madrugada

 

Lx. 16-11-76 – caderno Fragmentos de um livro dividido (Anónimo do séc. XX)

 

2

Pobres palavras doadas ao Senhor,

por Ele interditas à idade vagabunda dos homens.

Palavras. Senhor, possuídas em sangue, inscritas na imperfeição da dor.

 

Belas – 19-9-76 – caderno Fragmentos de um livro dividido (Anónimo do séc. XX)

 

3

São ausência memória despedida ruínas

um mapa do ser em circulação

e apesar do timbre ocioso dos cristais

que emoção ingressar-me em metais

de amor e sempre esperei do amor peregrinação

um ínvio acesso à perfeição morte ressurreição

 

Belas – 21-9-76 – caderno Fragmentos de um livro dividido (Anónimo do séc. XX)

 

4

Senhor, em vão busquei Vosso apelo demasiado,

e Vós não ouvistes o meu apelo, o meu apego, amor meu tanto.

Senhor, por que me abandonais ao xadrez do tempo ostensivo e extraviado.

 

Belas – 23-9-76 – caderno Fragmentos de um livro dividido (Anónimo do séc. XX)

Manuscrito do poema 4

5

Isto vos digo: é fenómeno efémero da fala;

e génese das abóbadas da geometria da manhã.

Isto vos digo: irmana-vos o rigor, a passagem de Deus,

o verão mais pungente. E se se recorda, que mulher nos fende e cala?

 

Lx. 8-10-76 – caderno De Profundis et de Clamoris

Manuscrito do poema 5

 

6

Senhor, sede meu arrimo,

meu alimento, minha alta sabedoria,

verdade última das verdades que afirmo.

 

Lx. 8-12-76 – caderno Fragmentos

 

7

Estas mãos de lua, linho, prata,

mas urdo em exílio, mas em corpo breve.

E a noite anuncia-se, quase bíblica, e assim se escreve,

_______________ quase química e se ata.

 

Lx. 11-12-76 – caderno Fragmentos

 

8

Às vezes pedaços simples da vida

seduzem-nos como altas insónias.

Felizes ou infelizes não há Deus que nos redima.

 

Lx. 12-12-76 – caderno Fragmentos

 

9

Ó meu Deus omnipresente em os poemas

em este derramado desarmado quotidiano que Tu desenhas

 

Lx. 13-12-76 – caderno Fragmentos


Artigo na Caliban: «O sentido do religioso no poema»:

https://medium.com/revista-caliban/o-sentido-do-religioso-no-poema-e153000e6114