Do Minério ao Sangue

GLEDSON SOUSA

Do Minério ao Sangue: A Poesia de José Antonio Gonçalves
em Cavernas, Arenitos e Poemas


Gledson Sousa (Brasil, 1972). Formado em História, com especialização em História da Arte. Tem trabalhos publicados no site Triplov (www.triplov.com) e no blog A Esfera da Manhã, além de publicações em livros: O Ovo – Meditações Sobre a Semântica do Mundo. São Paulo: Ed. Janos, 2004
A Iconografia Interior – Kandinsky e a Teosofia. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014. O Livro das Novas Mutações ou O Oráculo da Natureza. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014. Além de participação em obras coletivas: Presença do Feminino no Relato dos Viajantes, no livro Desigualdade no Feminino. Lisboa: Apenas Livros, 2009; Uma Espiritualidade Nietszcheana?, no livro A Religião que Anda no Ar. Lisboa: Apenas Livros, 2014. Poeta e ensaísta.


A arte é uma esfinge que não se deixa decifrar; em primeiro lugar, porque seus enigmas não possuem respostas ou possuem-nas demais; em segundo lugar, porque suas linguagens não se encerram num único horizonte, o que torna difícil a redução ipsis literis de qualquer sentença, seja na poesia, na pintura, ou qualquer outra arte. Arte é sobretudo invenção, e invenção é recriar-se em meio à gestação.

Penso nisso tudo ao ler Cavernas, Arenitos e Poemas, do discreto poeta José Antonio Gonçalves. Digo-o discreto porque José Antonio corre à margem dos movimentos, grupos e correntes, e ainda que em seu último livro haja uma aproximação da linguagem surrealista, ousaria dizer, de seu jogo de imagens e metáforas, tais como Breton assimilou de Pierre Reverdy, José Antonio parece-me fazer isso à maneira dos alquimistas, que se apropriavam da linguagem e técnicas de metalúrgicos e ferreiros com vistas à outra realidade, ou seja, usavam-nas como ferramentas.

Porque ainda que imbuído de uma metafísica em que transparece uma nítida influência da gnose, com a cosmovisão de um mundo dual – terra/céu, corpo/alma, alto/baixo, as metáforas e imagens de José Antonio partem de uma realidade que desperta, no poeta, angústia e estranhamento. Mas a realidade está ali, e a poesia é seu espelho invertido, é o lado da câmara escura por onde a luz se projeta e a realidade é o reflexo que se deposita em seu interior.

Heidegger dizia que “Do ponto de vista ontológico-existêncial, o não-sentir-se-em-casa deve ser concebido como o fenômeno mais originário”.[1] Sendo assim, o estranhamento pressentido por José Antonio possui esse matiz de experiência originária, primeva, do poeta em confronto permanente com o mundo.

Nos poemas de José Antonio Gonçalves há uma meditação sobre o tempo, a vida, o corpo.

A vida é metaforizada, todo acontecimento transforma-se em símbolo, em algo mais que não se encerra em si mesmo, apontando sempre para um lugar outro, um além, um aquém, um agora.

Mas vida e corpo não são idênticos: há um vapor gnóstico que emana das separações presentes no texto: aqui/além, corpo/alma, puro/impuro. O corpo é identificado a uma prisão e o amor é a ascese capaz e reconciliar as duas instâncias pelo processo de queda na matéria (a luz do amor / fere fundo / por todo lado // a chama / do candelabro / é o punhal / arremessado / pelo sonhador // a qualquer momento / vai acertar o alvo o disparo do condor p. 79).

No texto gnóstico A Realidade dos Governantes, há uma frase que diz: (…) pois a partir do território invisível o território visível foi criado[2]. A poesia de José Antonio parece querer recuperar essa fonte da realidade material, partindo da matéria mesmo para um além apontado em experiências de transcendência que são verdadeiras narrativas à clef. Não há a transcendência em si como a coisa kantiana, porque uma transcendência que se deixa capturar pela palavra já deixou de sê-la, mas também porque José Antonio não abre mão do controle de si, o consciente do poeta está presente o tempo todo, ele não se deixa arrebatar pela experiência, mantêm-na sob controle. Penso nos poemas Um Poema Subdividido (p. 39) e O Transe (p. 87) que parecem relatar experiências pelas quais o poeta passou em busca do divino, do transcendente.

O título diz Cavernas, Arenitos e Poemas, uma conjunção que separa. Poemas vêm depois. Do ponto de vista simbólico, cavernas representam o que esconde e também a própria mente. Lembremo-nos do mito da caverna platônico e a caverna é o lugar onde se manifesta uma aparência da realidade, aparência esta que é incompleta, mas que é real: as sombras projetadas na caverna, tal como nos relata o mito, são reais, mas reais como sombras e não como o todo da realidade que os habitantes da caverna imaginam perceber. Arenito é um tipo de rocha sedimentar, ou seja, formada pela junção de um ou mais elementos através da compactação. Então teríamos cavernas e material sedimentar, textos que se acumularam e se fundiram ao longo do tempo? É possível, como também é possível que sejam as próprias experiências do poeta que se fundiram num instante único, abrindo-o para outras dimensões da existência. Há que se lembrar de que o poeta dedicou um poema ao instante (Água Viva, p. 15), onde num belo poema em prosa, o poeta medita sobre o tempo (O instante é o tempo imobilizado cada vez que a roda do carro veloz toca a estrada. A vida só é percebida com intensidade quando em contato com o movimento.). Mas onde aparece também a referência ao corpo como uma prisão e a própria realidade material como uma experiência sufocante: Encontro liberdade ao perceber as sombras assimétricas das grades da minha prisão impressas no cimento – a sombra do corpo em movimento (observação minha). Preso no mundo, eu sou o outro em silêncio. Luto para sair do emparedamento – ao ler isso, não pude esquecer essa passagem gnóstica: Existe um véu entre o mundo de cima e os reinos que estão embaixo, e sombra veio a existir sob o véu; e essa sombra se tornou matéria.[3] Véus e paredes a impedirem a experiência do real, o real como fundamento e essência e não aparência.

É curioso pensar que um pensamento mineral esteja na base da organização do livro, em sua arquitetura poética. Mas quase como um contraponto à arquitetura poética, a linguagem se reveste de símbolos orgânicos: sangue, água, carótida (assim mesmo, em linguagem médica), boca, carne, peito, feridas, seios, cicatrizes… São muitas as palavras que trazem à arquitetura mineral uma face orgânica, e essa fusão, ou sedimentação, é também a fusão dos diferentes planos, antes inconciliáveis, agora fusionados pela experiência poética.

Essa fusão não se dá sem dor; se o estranhamento é a base de seu confronto com o mundo, a angústia parece irremediável, mesmo quando a transcendência parece abrir as portas, como no poema Hermetismo:

dualidade

eu estou em você

 você não está em mim

 

estímulos redobrados

as musas adormecem

duas felicidades cansadas e perdidas

causas e efeitos em desordem

solidão ao lado do outro

maternidade e traumatismo

ponto final da escada

O tempo, esse guardião implacável, parece vigiar toda poesia, e há um sentimento de perda, de dor, que corresponde à medida do tempo que passa e que torna a experiência pretérita, incompleta, mesmo a experiência amorosa, quando ela não consegue romper a casca do tempo em direção à eternidade.

Não diria que a poesia de José Antonio Gonçalves traduz uma totalidade poético-amorosa, poucos poetas o fazem, Lorca, Saint-John Perse, René Char, Pessoa? Talvez.  O que ele nos apresenta é uma realidade fragmentada que a poesia tenta unificar, numa sintaxe de estranhamento e dor que nos leva além pelos mais estranhos caminhos, do minério à dor, como só a boa poesia consegue fazer.

A grandeza do poético está em nos fazer esquecer que é poético e nos remeter diretamente à vida, em sua confusa plenitude. Se essa plenitude é percebida pela angústia, faz parte de nossa natureza ainda dividida; a poesia a redime no indivíduo, mas é necessário que as fraturas históricas sejam cicatrizadas para que acabe a cisão do humano.

 

São Paulo, SP, 02 de julho de 2019


[1] AGAMBEN, Giorgio. O Uso dos Corpos – Homo Sacer IV, 2. São Paulo: Editora Boitempo, 2018, p. 65

[2] LAYTON, Bentley. As Escrituras Gnósticas. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 82

[3] Idem, p. 88.


JOSÉ ANTÕNIO GONÇALVES

Cavernas, Arenitos e Poemas 

Ed. Lab, São Paulo, SP – 2018