Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- O famoso Padre Felicidade Alves (1925-1998), na apresentação do seu livro, Católicos e Política – de Humberto Delgado a Marcelo Caetano, de 1969, não se deu por satisfeito com a obra que acabava de apresentar. Verificava que existia um grande vazio de estudos e de informação para enfrentar o regime político e bélico em que o país estava mergulhado. Mais dia menos dia, terá de se fazer a história crítica destes últimos anos da vida política portuguesa. Não deixará de ter lugar de relevo a presença ou ausência dos católicos na vida política, assim como a posição negativa ou positiva dos hierarcas e das estruturas clericais no funcionamento do sistema.
Surgiram, entretanto, os Cadernos GEDOC[1]. Começava, assim, a recolher-se alguns textos e qualquer destes documentos marcam uma viragem.
O P. Felicidade Alves destaca que, num regime em que a opinião pública está destruída pela castração dos meios normais de informação, documentos deste género sofrem as condições precárias da clandestinidade. Passam de mão em mão, muitos perdem-se irremediavelmente.
Foi encerrado um período e um estilo de «participação» dos católicos na vida política, que consistia em aparecerem em grupo a tomar posição como católicos, sobretudo através de documentos e abaixo-assinados.
Desta vez, e espera-se que não se volte atrás, os católicos entraram na liça, ombro a ombro com os demais cidadãos, sem preocupação do rótulo de católicos. Não entraram em bloco monolítico. Dispersaram-se e fragmentaram-se por todos os meridianos políticos, desde a extrema-direita fascista até à extrema-esquerda revolucionária.
Facto significativo: salientaram-se as posições de radicalismo socialista com inspiração profética haurida nos fermentos revolucionários do Antigo e do Novo Testamento[2].
- A começar pelo grande livro de João Miguel Almeida,A Oposição Católica ao Estado Novo (2008), contamos, hoje, com várias obras sobre o catolicismo e a oposição à ditadura e às três frentes da guerra colonial. Este ano (2024), a Tinta da China publicou um livro de Ana R. Gomes, precisamente com o título, Padre Felicidade. O oposicionista praticante, pároco de Santa Maria de Belém entre 1956 e 1968.
1968 representa uma viragem radical no itinerário desta figura central: apresentou ao seu Conselho Paroquial um documento intitulado Perspectivas actuais de transformação nas estruturas da Igreja. Sentido da responsabilidade na vida política do país (19.04.68) – páginas que encerram duras críticas à Igreja Católica portuguesa e ao Estado Novo.
Esta corajosa tomada de posição não levou o Cardeal Cerejeira a fazer um exame do que tinha sido, e era, a situação da Igreja e não reviu as ambíguas relações entre a Igreja e o Estado Novo, de que era o grande responsável. Nem a carta de D. António Ferreira Gomes, Pró-Memória (Carta a Salazar), a 13 de Julho de 1958, nem a realização do Vaticano II (1962-1965), foram capazes de convencer o Cardeal Cerejeira que tinha de mudar. Acerca do Vaticano II, o Patriarca justificou o seu imobilismo com a declaração delirante de que «nós já estamos muito à frente do Vaticano II». Não admira, portanto, que a única resposta às posições do Padre Felicidade Alves foi a suspensão a divinis para o exercício das funções sacerdotais, a 2 de Novembro de 1968.
Entre 1969 e 1970, Felicidade Alves integra e coordena o movimento GEDOC (Grupo de Estudos e Intercâmbio de Documentos, Informação e Experiências), cuja face visível era o projecto editorial designado Cadernos GEDOC. A publicação assumia como missão ser espaço de partilha de informação e de debate sobre a Igreja no pós-Vaticano II, produzida por um grupo informal de crentes que se autointitulava de vanguarda cristã[3].
O que julgo importante sublinhar foi a incapacidade do Cardeal-Patriarca Cerejeira de entender que as suas posições, tanto em relação à Igreja como ao Estado Novo, tinham, mais dia menos dia, de chegar ao fim. Não percebeu os sinais do novo tempo.
- Apesar das várias tentativas de reconciliação, não seria ainda, durante o mandato de D. António Ribeiro, que se assistiria a um desfecho do «caso de Belém». Morre a 24 de Março de 1998, dia que é também o da nomeação de José Policarpo como Patriarca de Lisboa. Este, passado pouco tempo, a 4 de Abril, escreve uma carta a José da Felicidade Alves, propondo um encontro para resolver o debate em curso, disponibilizando-se mesmo a deslocar-se à casa do antigo sacerdote para o efeito[4].
A 10 de Junho, D. José Policarpo apresentou oficialmente um pedido de perdão e presidiu ao casamento canónico de Felicidade Alves, poucos meses antes da sua morte, que ocorreu a 14 de Dezembro desse mesmo ano.
Na homilia, frente a uma assembleia de cerca de três centenas de pessoas, o Cardeal-Patriarca interpela directamente o nubente, dizendo-lhe: «Deu-lhe Deus a graça de perdoar as mágoas que sentia. A Igreja também lhe perdoa as que sentiu a seu respeito. E naquilo que, em algum momento deste processo, ela possa ter ferido a justiça, também lhe pede perdão». Dias depois, Felicidade Alves escreve a José Policarpo, agradecendo os especiais cuidados e empenho pessoal do Patriarca em colocar um ponto final no «caso de Belém» e classifica a homilia, então proferida, como «sensacional»[5].
Verifiquei, ao longo da vida, que fora do diálogo não há salvação[6], seja em que domínio for. Notei que o livro de Ana R. Gomes, de outro modo, confirmava esta convicção. Começa com o grave conflito e a ruptura entre Felicidade Alves e o Cardeal Cerejeira. Faltou o diálogo para superar, de forma criativa, esse doloroso conflito.
Ana Gomes termina o seu livro com a reconciliação entre o Cardeal Patriarca de Lisboa, José Policarpo – que fora seu aluno no Seminário dos Olivais – e José da Felicidade Alves. Este vê terminado um processo de revisão do seu processo na Santa Sé e de redução ao estado laical junto do Vaticano. Rectificação que permitiria a realização do seu casamento pela Igreja.
Decorridos que eram quase trinta anos sobre o decreto de suspensão das funções sacerdotais, o decano processo canónico seria revisto e modificado em poucos meses[7].
De facto, fora do diálogo não há salvação.
Π
[1] Cadernos GEDOC (Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentação).
[2] Cf. PEREIRA, Nuno Teotónio, A voz de um profeta: José da Felicidade Alves, in Viragem: revista do Movimento Metanoia, nº 30, jan.-mar. 1999, pp. 3-5.
[3] Cf. Ana R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024, pp.7-8
[4] Ibidem, pp. 195-196
[5] Ibidem, p. 196
[6] Frei Bento Domingues, O.P., Fora do Diálogo não há Salvação, Temas e Debates, 2024
[7] Cf. Ana R. Gomes, Padre Felicidade, o oposicionista praticante, Tinta da China, 2024, p.194
Público, 21 Julho 2024
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