Digamos assim

 

 

 

 

 

 

JOAQUIM SIMÕES


Há três coisas que abomino: a poesia dos poetas,

a escrita dos escritores e a cozinha dos cozinheiros

Mestre Zen desconhecido

 

Na badana de “Escrita e o seu contrário”, de Nicolau Saião, encontramos o seguinte texto de João Garção:

“Neste livro que agora se apresenta, embora na linha de escrita que lhe é habitual o autor efectua um percurso por diversos temas que aprofunda: a memória, a celebração do amor humano e a revolta contra os dogmas que maculam a existência, a busca do conhecimento que é a antecâmara da sabedoria – pontos em que o surrealismo e a Santa Philosophia se irmanam para que seja possível a viagem em todas as direcções que a Poesia verdadeiramente é.”

E ainda este outro, meu,

“Os dias passam ao sabor do amor que se lhes tem. O sabor do passado junta-se ao do presente e, este, àquele com que o presente realiza já o futuro. A vida é, pois, um contínuo banquete, em que os sabores se temperam e nos temperam à medida do amor que damos aos dias que nos cabem. E, a poesia, a matéria de que tudo se faz e em que tudo resulta.

O poema, este pode assumir qualquer das formas e sabores que o poeta – ele próprio, poesia – deu aos seus dias. Com Nicolau Saião, saboreamos os dias por inteiro.”

… ao qual acrescento, agora, o seguinte:

É costume dizer-se que o real não cabe na linguagem, e dar-se como exemplo disso o termo “ser”. De facto, “ser” é um termo de mais do que um significado e, por isso, na aparência, impreciso. Com ele, designamos o que é perene e imutável no seio de todas as transformações, o substantivo com que nos referimos a esse substracto universal; mas também o que, permanecendo, permanece enquanto mudança em si, o dinamismo do ser e não ser em simultâneo, o verbo do movimento.

O mesmo se passa, aliás, com o termo “natureza”, com o qual nos referimos àquilo que constitui a estrutura própria e fundante de algo ou alguém; ao real, igualmente fundante, do que nos rodeia e do qual participamos; e ao processo dinâmico que esse real constitui. Entre Parménides e Heraclito, a discussão nunca teve nem terá fim, na medida em que se trata de lutas entre as abstrações daqueles que, parafraseando Luís XIV com o seu “L’État c’est moi”, afirmam com igual cegueira: “A minha realeza é a realidade”.

Agostinho da Silva chamava a atenção para o perigo que a filosofia pode constituir, na medida em que procura submeter à doxa a realidade, que é para-doxal. É também nesse sentido que a filosofia, na perspectiva de Nietzsche, foi, desde Sócrates-Platão até ele, Zaratustra, o espelho e o factor da decadência do Ocidente, o estiolamento da vida pela sua redução a “empalhamentos” em conceitos universais e respectivos emaranhamentos lógicos.

A folha de uma laranjeira vive não apenas enquanto folha, mas enquanto é de laranjeira; reduzir a realidade à unicidade e igualdade valorativa dos universais é o mesmo que pensá-la ao nível do esqueleto de uma vida defunta. O que mais não é, afinal, do que a tentativa, pelos que a receiam, de tudo e (sobretudo) todos ordenarem à escala da sua “visão iluminada do amanhã”, que inclui uma Eternidade consoladora da sua insegurança, seja ela a de Deus ou da Humanidade ou, até mesmo, a da “Cultura”.

Diremos, então, por tudo isto, que termos como “ser” e “natureza” não só não velam como revelam o carácter para-doxal da realidade; que são não ferramentas linguísticas falhas, mas fundamentais para a compreensão desse carácter. Fernando Pessoa é o mestre exaustivo deste deslindar essencial daquilo a que se chama poesia, através daquilo a que se chama poema; sem ter deixado de o fazer, longe disso, como tantos outros, em torno dos restantes termos com que procuramos cingir o real na sua relação com o dentro e o fora de nós. É neles que se identifica a alquimia com que o uno se assume em múltiplo, o verbo se representa em vida, o átomo se modula em carnes.

Essa relação, feita no corpo que nos liga ao mundo e nos separa dele, não como objecto mas como terreno onde ambos, surgem, irrompem e se constroem, é absorvida em nós por aquilo a que chamamos memória, local de depuração e de atribuição de significado nessa relação. Na memória subjaz o destino e o sentido. É nela que as palavras se revelam, revelando, as sentidas e as pressentidas; é nelas que, ao falarmos com e sobre os outros, nos encontramos no que dos outros fomos, somos e seremos.

É tudo isto que encontramos neste livro de Nicolau Saião. Entramos nele numa dimensão do significativo servido pela e numa memória temperada de alegria, suave ou vigorosa; de dor, com ímpetos de revolta ou apenas murmurada; de reflexão, afirmativa ou silenciosa; de nostalgia, do que nos fica ou do que podemos adivinhar. Mas sempre com a indomável ternura que tudo enquadra na dignidade de quem não finge. E não esquece.