MANUEL RODRIGUES VAZ
«Diderot e a arte de pensar livremente»
Um livro oportuno
Numa altura em que as grandes figuras do século XVIII andam esquecidas (assim como muitos dos seus princípios), esta biografia – Diderot e a arte de pensar livremente, edição da Temas e Debates, 2019 – ajuda de vários modos a ressuscitá-las. Nela encontramos Diderot, um homem de pulso, a gerir toda uma enciclopédia e resistindo a todas as pressões do seu tempo. É um livro de leitura fácil, cheio de peripécias e humor, quer do tempo de Diderot, quer da sua vida pessoal. Interessantes são as relações atribuladas com Jacques Rousseau, homem demasiado sensível, e com Catarina, a grande; assim como o capítulo dedicado às suas mais importantes obras literárias.
Trata-se de uma biografia de Diderot plena de vivacidade, retratando de forma magistral o filósofo profeta que ajudou a construir os alicerces do mundo moderno. Neste livro organizado tematicamente, Andrew S. Curran descreve de forma vívida o relacionamento tormentoso de Diderot com Rousseau, a sua curiosa correspondência com Voltaire, as suas paixões amorosas e as suas opiniões frequentemente iconoclastas sobre a arte, o teatro, a moral, a política e a religião. Porém, o que este livro evidencia de forma brilhante é a maneira como a tumultuosa vida pessoal do escritor se tornou uma componente essencial do seu génio e da sua capacidade para escarnecer de tabus, dogmas e convenções.
Afirmando que «Os filósofos como Diderot eram as estrelas de rock da sua geração», nesta biografia que dedicou ao autor da Enciclopédia, Andrew Curran mostra um homem brilhante, irrequieto e provocador, cujo nome se tornou conhecido das elites cultas do Vaticano a S. Petersburgo. Catarina, a Grande, da Rússia, foi uma leitora fiel de Diderot, e, além de o ter apoiado financeiramente, convidou-o a deslocar-se a à então capital russa para estudar a possibilidade de democratização do Império Russo.
Denis Diderot nasceu no dia 5 de Outubro, em 1713, numa pequena aldeia de província francesa – Langres. O seu falecimento foi em 1784, em Paris. As suas principais influências no ramo foram: Voltaire, Isaac Newton, John Locke e Baruch Espinoza.
Filho de um mestre cuteleiro, cedo os pais perceberam que era dotado de uma inteligência excecional. Estudou num colégio jesuíta com o objetivo de se tornar abade – mas o lugar que ambicionava foi-lhe recusado. O seu espírito inconformista haveria mais tarde de fazer dele um feroz opositor da Igreja, tendo feito uma campanha contra Deus durante toda a sua carreira.
Desde os primórdios dos seus estudos, a sua grande preocupação foi em relação ao homem e à sua natureza. Sem sombra de dúvida, podemos afirmar que ele foi um dos maiores admiradores da vida na sua essência.
E, para comprovar o fenómeno da vida, Denis Diderot nunca se apoiou em bases cristãs ou religiosas de qualquer vertente. Pelo contrário: ateu, ele também foi extremamente materialista, nada o tendo impedido de seguir livremente com as suas próprias crenças. Algumas delas, que servem de base para a interpretação de pensamentos filosóficos, artísticos e/ou de natureza são utilizadas até aos dias atuais.
Entre os anos de 1729 e 1732, Denis Diderot partiu para a sua primeira formação universitária. Em Paris, ganhou o diploma em Artes. Paralelamente, ele tornou-se um grande estudioso de matérias como filosofia, literatura, legislações e, até mesmo, algumas teorias matemáticas. Além disso, foi um dos símbolos da época iluminista e inspirador para o desenvolvimento da Revolução Francesa – principalmente na escolha dos ideais nacionalistas.
No ano de 1745 o filósofo foi, pela primeira vez, contratado para dar a sua contribuição numa enciclopédia inglesa – mesmo que só para desempenhar uma tradução. Pelo jeito, ele desenvolveu o gosto pela coisa, uma vez que a partir de então foi um profissional primordial para o desenvolvimento de inúmeros materiais nesse sentido.
Quando trabalhou com o filósofo Jean Le Rond d’Alembert na organização de uma nova enciclopédia, a conhecida Enciclopédia, Denis Diderot nem sequer imaginava que, anos depois, seria uma das grandes influências pelas cabeças que comandavam a Revolução Francesa. O motivo? A sua essência extremamente materialista e racionalista ao mesmo tempo, propondo de forma instantânea uma separação entre os interesses do Estado e da Igreja. Este maciço dicionário não só trouxera para a ribalta o sacrilégio e o livre pensamento, como espoletara um escândalo que durara décadas e envolvera a Sorbonne, o Parlamento de Paris, os jesuítas, os jansenistas, o rei e o papa. Além disso, ele também se ocupou de assuntos como o combate às crenças negativas (como as superstições, por exemplo) e as próprias manifestações de pensamentos que se estabeleciam no âmbito de inúmeras instituições religiosas.
Encarcerado devido ao seu ateísmo em 1749, Diderot decidiu reservar os melhores escritos para a posteridade – ou seja, para nós. No extraordinário espólio de originais não publicados, Diderot desafia todas as verdades aceites no seu século, da santidade da monarquia à justificação racial do tráfico de escravos e às regras da sexualidade humana.
Conhecido sobretudo como filósofo e autor (com d’Alembert) da Encyclopédie (publicada entre 1750 e 1772), Denis Diderot (1713-1784) foi uma das mais ilustres figuras do Iluminismo. A sua atividade fervilhante tocou muitas áreas: escreveu sobre o colonialismo, imaginou a evolução das espécies antes de Darwin, denunciou a escravatura e fez crítica de arte.
Idolatrado por Catarina, a Grande, da Rússia, adquiriu para ela o núcleo inicial da colecção do que viria a ser o Museu do Hermitage em São Petersburgo, e foi generosamente recompensado. Embora tenha atingido a celebridade em vida, guardou os seus escritos mais pessoais e controversos para serem publicados a título póstumo.
Mas nem na morte encontrou repouso: no inverno de 1793, nove anos depois do seu desaparecimento e durante os desmandos da Revolução, um bando de ladrões de sepulturas profanou o seu túmulo. «Depois de retirarem da cripta o caixão de chumbo de Diderot, os homens limitaram-se a despejar o corpo em decomposição para cima do chão de mármore da igreja», conta Andrew S. Curran.
Entre estes escritos, encontravam-se dois romances muito diferentes, mas igualmente brilhantes. O primeiro, A Religiosa, é uma cativante pseudobiografia de uma freira que sofre inimagináveis maus tratos depois de anunciar que quer abandonar o convento. De vários modos é uma recriação e a denúncia do que tinha acontecido a uma das suas irmãs.
O segundo, Jacques, o Fatalista, é um antirromance inconclusivo, em que Diderot usou a ficção para abordar o problema do livre-arbítrio. Mas havia também grossos livros de apontamentos
de crítica artística revolucionária, uma crónica da raça humana sem intervenção divina, com tonalidade de ficção científica, um tratado político secreto escrito para Catarina, a Grande, uma sátira humorística sobre o absurdo dos costumes sexuais cristãos, passada no Taiti, bem como algumas das mais comovedoras cartas de amor da história da literatura francesa. Quando nos familiarizamos com o âmbito da obra de Diderot ficamos estupefactos: entre outras coisas, o Filósofo sonhou com a selecção natural antes de Darwin, com o complexo de Édipo antes de Freud e com a manipulação genética duzentos anos antes de a ovelha Dolly ter sido planeada.
Estas obras ocultas não surgiram nos meses posteriores à morte de Diderot; foram despontando ao longo de décadas. Alguns dos seus livros perdidos foram publicados durante os anos de declínio da Revolução Francesa; outros apareceram ao longo da Restauração dos Bourbon (1814-30), enquanto ainda outros dos seus escritos emergiram durante o Segundo Império (1852-70). Aquela que foi talvez a adição mais importante ao corpus de Diderot surgiu em 1890, quando um livreiro descobriu uma versão manuscrita completa da obra-prima de Diderot, Le Neveu de Rameau, na banca de um bouquiniste, nas margens do Sena. Neste tumultuoso diálogo filosófico, nunca traduzido em Portugal por razões pouco surpreendentes, o escritor deu corajosamente vida a um inesquecível anti-herói, que exaltava as virtudes do mal e do parasitismo social, ao mesmo tempo que pregava o direito ao prazer desenfreado.
Dizer que o surgimento destes livros perdidos teve efeito nas gerações subsequentes seria dizer pouco. A efusiva crítica artística de Diderot inspirou Stendhal, Balzac e Baudelaire. Émile Zola atribuiu às «vivissecações» que Diderot realizou da sociedade o fundamento do naturalismo que caracterizou os seus romances, bem como os de Balzac. Os teóricos sociais ficaram também fascinados pelo pensamento presciente de Diderot. Karl Marx, que se inspirou profundamente nas reflexões de Diderot sobre a luta de classes, incluiu o escritor na sua lista de autores preferidos.
E Sigmund Freud atribuiu o crédito ao pensador do ancien régime pelo reconhecimento dos desejos psicossexuais inconscientes da infância em Le Neveu de Rameau, muito antes de os seus colegas psicanalistas o terem feito. Embora muitos críticos continuassem a menosprezar o escritor por ser demasiado ateísta, ou demasiado paradoxal, ou demasiado desmedido, Diderot tornou-se apesar disso o escritor preferido da vanguarda do século XIX.
A amplitude total da influência de Diderot, contudo, não foi verdadeiramente conhecida até que um jovem académico alemão, Herbert Dieckmann, localizou o derradeiro esconderijo perdido dos escritos de Diderot. Tendo ouvido rumores de que os conservadores descendentes de Diderot continuariam a possuir alguns dos manuscritos perdidos originalmente dados à filha do escritor, o professor de Harvard obteve finalmente autorização para visitar o castelo da família na Normandia, em 1948.
Depois de ter vencido as suspeitas pós-guerra do curador, que ficou inicialmente desconfiado com a sua pronúncia germânica da língua francesa, Dieckmann acabou por ser guiado até alguns armários no segundo piso do castelo. Ao entrar numa divisão que continha vários armários separados, precipitou-se para o primeiro e escancarou o painel da porta. Esperando, talvez, encontrar uma ou outra obra perdida, foi confrontado com uma enorme pilha dos escritos encadernados de Diderot. Tão atordoado ficou que simplesmente caiu no chão. O derradeiro esconderijo de Diderot, a coleção perdida de manuscritos que dera à sua filha, fora finalmente encontrado.
Denis Diderot nunca usou métodos agressivos para impor as suas crenças, ideias e pensamentos. Entre os principais deles, estão:
- Para Diderot, a ciência deve ser o principal “motor” para o desenvolvimento da sociedade em vários aspectos, sendo ela primordial também para o processo dos seres humanos e demais espécies;
- A política, para ele, só precisa ser aplicada por um motivo: responsabilidade em eliminar, por completo, todas as diferenças sociais – entre raças, idades, géneros e outros. Esse foi um dos seus ideais mais criticados e, certamente, o mais difícil para ser aplicado nas sociedades atuais, uma vez que depende de inúmeros fatores que o filósofo nem sequer considerou nesse período;
- Uma das características mais chamativas e que envolvem a própria personalidade de Denis Diderot é em relação aos seus pensamentos sobre religião. Ao invés de tentar induzir a população a ser contra ela (considerando que ele era ateu), ele sempre deixou claro que a religião pode sim existir, desde que se restrinja unicamente às áreas de formação do caráter e comportamento dos seres humanos;
- Mesmo que ele tenha vivido entre os anos de 1713 e 1784, as suas crenças e pensamentos já envolviam a tecnologia e os bons feitos que ela poderia desenvolver. Sendo assim, Diderot defendia a importância da mesma para a sociedade. Além disso, ele pensava que a tecnologia poderia ser um instrumento para a eliminação das desigualdades sociais;
- As suas principais críticas foram acerca da concentração de poder, tanto no sentido da influência da Igreja, como também do modelo de governo absolutista.
Mas os seus amigos alcunharam-no também de O Filósofo porque ele se tornara o maior defensor do poder emancipador da filosofia. Muito mais do que Voltaire, Diderot era o rosto de uma oposição cada vez mais reivindicadora e cética a todas as ideias recebidas: a personificação de uma era que estava a sujeitar a religião, a política, os costumes coevos e toda uma série de outras noções a uma interrogação fulminante. A sua Enciclopédia resumia a sua missão de uma forma muito sucinta quando dizia que o papel do filósofo era «pisar a seus pés o preconceito, a tradição, a antiguidade, as alianças partilhadas, a autoridade – numa palavra, tudo aquilo que controla o espírito do rebanho comum».
As mais conhecidas entre as suas publicações são: “As Jóias Indiscretas”, “Pensamentos Filosóficos”, “Enciclopédia”, “Carta sobre os cegos para uso dos que enxergam”, “Princípios filosóficos sobre a matéria e o movimento”, “Ensaio sobre a pintura”, “O sobrinho de Rameau”, “Tiago, o Fatalista” e “A Religiosa”.
Cerca de trezentos anos depois do seu nascimento, Diderot tornou-se agora o mais relevante dos filósofos do Iluminismo. Ter-se abstido de publicar (ou de se revelar como seu autor) as suas ideias mais avançadas durante o seu período de vida não foi simplesmente uma questão de evitar a perseguição; escolheu intencionalmente abdicar de uma conversa com os seus contemporâneos para poder estabelecer um diálogo mais frutuoso com as gerações posteriores – em resumo, connosco. A sua sincera esperança era a de que nós, os compreensivos e esclarecidos interlocutores do futuro, fôssemos finalmente capazes de ajuizar acerca dos seus escritos ocultados, escritos que não só questionam as convenções morais, estéticas, políticas e filosóficas do ancien régime, mas também as nossas.
Esta obra é realmente uma biografia espirituosa do filósofo profético e compreensivo que, juntamente com Voltaire e Rousseau, ajudou a construir os fundamentos do mundo moderno. Como diz no final o seu autor, «Ao escrever numa era de sistemas poderosos e sistematização, o pensamento privado de Diderot abriu a filosofia ao irracional, ao marginal, ao monstruoso, ao sexualmente perverso e a outros pontos de vista não conformistas. O seu mais importante legado será, talvez, esta cacofonia de vozes e ideias individuais. Os leitores atuais continuam a ficar espantados com a sua disponibilidade para fornecer uma plataforma ao impensável e ao incómodo e para questionar todas as autoridades herdadas e todas as práticas padronizadas – sejam elas religiosas políticas ou sociais. Como filósofo, Diderot não é um Sócrates nem um Descartes e também nunca pretendeu sê-lo. No entanto, a sua alegre e obstinada busca da verdade fez com que seja o mais cativante defensor, no século XVIII, da arte de pensar livremente.»
Concluindo: Diderot foi, com certeza, o autor mais importante para que hoje o pensamento livre continue a dominar as nossas preocupações com vista a conseguir uma sociedade melhor, mais justa e mais equilibrada, contribuindo da melhor forma para a felicidade das pessoas que deve ser o nosso objectivo último.
RODRIGUES VAZ
Lido no Restaurante O Forno, em Lisboa, em 31 de Janeiro de 2020, no âmbito de um ciclo de palestras promovidas pela Associação Promotora do Livre Pensamento
Manuel Rodrigues Vaz
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