Dia Mundial do Doente e Fisioterapia

LUÍS COELHO


Onze de Fevereiro, Dia Mundial do Doente; 14 de Fevereiro, Dia do Amor. Um “doente” está sempre doente de amor, o seu escrúpulo é uma dor que pede socorro; existe, aqui, uma relação surda com um passado que tece a mácula na obscuridade. Quando ajudado, o “doloso” está a presenciar a relação fantasmática com o agente de uma transformação só aparentemente consentida, esta é uma ligação de amor que se corresponde na medida de um duo ingénuo, paciente da escuridade redentora; atemos, então, o amor próprio do humano, co-incidência incestuosa de fantasmagorias que se penetram na infância revitalizada, consagração do “doente” em “paciente”, cuja culpa se silencia (ou renuncia) pelo vaivém parcamente inesperado de um jogo de compensações que, ademais, adiam o momento genuinamente iniciático.

Permanecer “doente” é adiar o intrínseco exercício de descoberta, é recuar sem que o passado se perfilhe reconstruído, todos somos doentes no sentido em que estacionamos no caminho imperfeito da comunhão e nos deparamos com as forças que agridem o nosso equilíbrio (a doença é um “outro” que nos dói e nos força a aceitar a sua dor, é um movimento de acatamento da paciência alheia), e todos somos pacientes na medida em que sofremos, toleramos, constantemente a viagem de transmudação do “ser” (a Humanidade é um estado de eterna paciência e de crónica insolvência), a permuta incessantemente inesperada, violadora, de um encontro terapêutico, que securiza ou engrandece, com-pesa ou estrutura. A relação “terapêutica” é um amor que se traslada nos níveis dantescos da realidade, é uma ameaça de (de)crescimento, para o paciente “doente” e para o paciente “terapeuta”, e o “doente” é “terapeuta” é “doente”; ambos fazem amor, se tentam “matar” de amor, sem que suceda o coito salvífico, e tudo se faz em silêncio, com o tempo próprio das coisas da natureza.

O terapeuta é o próprio doente relembrando-se de “ser”, a terapia é “auto-amor”, e o amor é uma revelação sem desilusão. O terapeuta perfeito “mata” o paciente já depois de ter sido matado pelo segundo. O “outro” remissor repercute um princípio, se agride, se dói, é porque perde a paciência. A agressão pode implicar dor ou mesmo sublimação, a segunda é uma nova hipótese de equilibração, renovada via de saudade. A “estruturação” é o amor mais pleno, orgasmo indizível de desocultação primeva.

É preciso que haja tempo para que o tempo se esgote, não é possível crescer sem que transcorra o espaço apropriado à comunhão. O “Sistema” é impessoal e cínico, ele conspira para fazer durar o “doente”, para exaurir a “paciência” ao paciente continuamente nesciente de si (mas não nesciente de amar, porque o verdadeiro “doente de amor” não consegue esquecer-se; o vero amado não se distingue do mundo). A Fisioterapia “convencional” cria mais necessidades do que aquelas que exausta, ela compensa mais do que estrutura e ilude mais do que compensa (se bem que a ilusão é identicamente compensação, e esta é uma ilusão de estruturação), pode ser que seja vantajoso iludir, o “doente imaginário” não se queixa tanto do mesmo “Sistema” que o maltrata, pode ser, também, que seja proveitoso compensar, é, talvez, tudo quanto resta. Dificilmente se saberá quando se “estrutura” um “ser”, no, e com o, sentido de uma essência, convém desconfiar de quem diz saber onde começa e acaba o doente/paciente, bastas vezes os que mais certificam são os que mais querem ser certificados, o terapeuta trata-se quando trata, dificilmente “cura” quando não se “cura”. Quem pode saber onde tudo se principia?, “tratar” é, muitas vezes, impor os nossos fantasmas, o preconceito do método, o esqueleto do modelo, por vezes, é mais fácil “encher chouriços”, despachar o “outro” é um modo de nos evitarmos, pode ser que o “outro” se securize com a distância, sempre é um paternalismo.

O “paternalismo” subsiste no amor, como na dialéctica violentadora, mas existe na relação um instante de construção perpetuamente imprevista, como se tudo se fizesse pela primeiríssima vez, decuplicando, assim, a probabilidade de re-solução íntima, primitiva, ou, pelo menos, de compensação prorrogadora, o que, de mais a mais, pode ajudar a prorrogar a salvação de muitos outros, vítimas insatisfatórias de um “Sistema” opressivo. O amor contagia no limiar da erosão, ele vai buscar as suas possibilidades à “crise”, ele é a própria crise recriando a sua história, novel memória em que a paixão receia ser subordinada.

 


Luís Coelho (Portugal). Terapeuta e escritor. Vários livros publicados, sendo que o último se intitula «A Síntese (im)Perfeita. Sobre o tempo, a culpa e o Nada» (2017, Edições Mahatma)