Dezassete de Abril, um assomo de liberdade

 

 

 

 

 

 

ALFREDO SOARES-FERREIRA
Engenheiro UP


A 17 de Abril de 1969, em ambiente de crise académica em Coimbra, o governo de Marcelo Caetano, uma espécie de “primavera”, entendida ao tempo, como a resposta da ditadura fascista às exigências necessárias de uma “modernidade”, vai à Cidade, com o pretexto de inaugurar o edifício da Matemáticas da Universidade.

Portugal no final dos anos sessenta

O ditador Salazar, que se havia dado à tarefa de construir, desde os primórdios dos anos 30, o país mais atrasado da Europa, mas com “contas certas” e regras de sacristia, abençoadas pela hierarquia da igreja católica, acabaria por cair da (abençoada) cadeira, em Agosto do ano anterior. Um ano que daria, no mês de Maio, ao mundo inteiro, um sinal de que os tempos estavam a mudar, quando eclodiriam em Nanterre, as primeiras vozes de liberdade, e da contestação que acabaria por ditar novas regras, sociais, políticas e de costumes.

Depois, a 27 de Setembro de 1968, o “venerando chefe de estado”, como na altura era designado, Tomás de seu nome, vendo que o ditador já não conseguia cumprir a sua função, iria nomear aquele que seria o último presidente do conselho do regime. E que curiosamente se havia demitido de reitor da Universidade de Lisboa, em aparente protesto pelos acontecimentos de 1962, na crise estudantil.

Por essa altura, precisamente nesse mês de Setembro, haveria de ter lugar uma reunião numa República de Coimbra[1],mbem que “Foram cerca de uma dezena e meia, os estudantes que aí discutiriam e aprovaram uma nova estratégia para o movimento estudantil em Coimbra, cujo eixo central passou a ser a luta por uma Universidade Nova[2].

A massa enorme de 9 mil estudantes, iria fazer tremer um regime caduco, mas aparentemente cheio de força bruta, de polícias e de esbirros, todos baptizados por Marcelo, com uma nova roupagem, mas com a mesma vontade intrépida de lutar à sua maneira, pelo “Bem da Nação”: paulada e cassetete, violência e repressão, ignorância e incultura, intolerância e perseguição. A PIDE, por exemplo, passaria a ser DGS, mas com os mesmos comandos, os mesmos métodos e a mesma vocação para a repressão e eliminação de pessoas, se necessário fosse. E algumas vezes, foi mesmo.

 

Aos 17 dias de Abril de 1969

Um dos acontecimentos mais surreais, em período de forte repressão, seria sem sombra de dúvida, o aparato em torno do Edifício das Matemáticas, motivo de inauguração do regime. Que se apresentaria na máxima força, com Tomás, Rui Sanches[3]e Hermano Saraiva[4], numa época em que a contestação estudantil era, contudo, muito mais forte. A força da razão, muito provavelmente.

À chegada da comitiva presidencial, acompanhada pelo reitor Andrade Gouveia, as “meninas das capas”, estendem as ditas, para a passagem do Tomás, enquanto no largo adjacente ao edifício, uma mole imensa se prepara para entrar também, comandada pelo Celso Cruzeiro[5].

E já dentro da sala da cerimónia, depois dos discursos do Tomás e do Hermano, o Presidente Alberto Martins levanta-se e diz a frase que ficará para a História, “Em nome dos Estudantes de Coimbra, peço a palavra”. Como ninguém esperava tal coisa, o Tomás acaba por dizer, (e ficaria também para a História), “Bem, mas agora vai falar o senhor ministro das Obras Públicas”.

Claro que quando o Sanches acaba de vomitar o seu discurso, a comitiva abandonaria intempestiva e abruptamente a sala, debaixo de uma vaia imensa. E cá fora, a vaia aumentou de forma inusitada, com polícias, esbirros e pides, cobertos de uma vergonha imensa e aparentemente incapazes de reagir.

Teria sido aqui que o regime se apercebeu quão perto estava o seu final, embora ainda faltassem 5 anos para tal acontecer, num outro Abril.

E depois do adeus (ao Tomás e C&A)

Nesse mesmo dia, mais para a noite, o nosso Presidente será preso pela PIDE, sucedendo-se as perseguições (mais ou menos violentas) a estudantes e cidadãos. A resposta seria o Luto Académico[6], decretado em sucessivas Assembleias-Gerais.

E finalmente, a 28 de Maio, cerca de 7 mil estudantes, irão reunir aquela que foi porventura uma das maiores Assembleias Magnas da História do movimento estudantil em Portugal, aprovando por uma maioria de quase 80 por cento, a proposta de greve a exames, como forma integrante de prolongamento do já decretado Luto Académico.

E, daí por diante, foram dias gloriosos de luta, de alegria, mas também de enorme sacrifício dos estudantes de Coimbra e das famílias, na medida exacta do que uma greve a exames significa e, das consequências que daí adviriam para muitos, que seriam (e foram) incorporados no serviço militar compulsivamente.

A vontade e a solidariedade, construída em torno de sentimentos adversos à lei da rolha da Universidade Velha, bem como à obstrução da liberdade de pensamento e acção, acabariam por determinar um improvável sucesso na luta estudantil, numa Cidade do interior do País, embora com tradições de peso, a primeira das quais a de ser a primeira Universidade, com mais de 700 anos de história.

À irreverência, que o Maio de 68 teria “emprestado” à Crise Académica, poderia juntar-se o cenário do final dos anos 60, com aguerra colonial em África e a guerra do Vietname, cujos ecos que por cá chegariam, denunciadores dos malefícios do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo, nas suas mais nefastas facetas.

Daí à insubmissão, foi um pequeno passo. A politização crescente de uma parte do movimento estudantil, aliada a uma sucessão de acontecimentos favoráveis, iriam perpassar na sociedade portuguesa, entranhar-se nas forças armadas e iriam contribuir de forma decisiva para o Abril da libertação.


[1]República dos Pyn-Guyns, onde estavam, entre outros, Rui Namorado, Alberto Martins (Presidente da Direcção da AAC) e Décio Sousa (Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da AAC)

[2]Citação da obra “Abril antes de Abril”, de Rui Namorado, pág. 37

[3]Ministro das Obras Públicas

[4]Ministro da Educação, “baptizado” na Academia, como “Hermano I, o Firme”, cognome que lhe ficou por ter anunciado a sua “firmeza” ao País, numa intervenção televisiva.

[5]Membro da Direcção da AAC

[6]O Luto Académico “…é um mecanismo da praxe académica de Coimbraque, como o próprio nome indica se refere a situações de luto e/ou momentosparticularmente negativos para a Academia, tendo sido utilizado como forma singular de protesto já antes de 1969”, in: “Luto Académico, Tradição Coimbrã e Mudanças PolíticasCoimbra 1969-1970/80”, por Carlos Martins