Dez poemas

MARIA GOMES


Nasci  em Angola  a 8 de Junho de 1958. Tenho poemas publicados na Revista DiVersos, e outras antologias em Portugal, e na web. Que a minha biografia seja escrita depois da minha morte, porque  entre a data do meu nascimento e aquela , todos os dias serao meus, tal como escreveu Alberto Caeiro. Maria Gomes


Oração

 

Senhor,

Dai-me a paciência dos rios

a aliança estreita da terra e do mar.

O cerimonial canto das estrelas que ouvi na infância

a voz de meu pai, demasiado humana, arramada aos olhos em fuga

na direção do amor.

 

Dai-me, Senhor  o amor, o extraordinário céu de um só canto

mais alto

o sangue das árvores coroadas

o longo choro dos anjos.

 

Dai-me a paciência dos rios, Senhor, o sal, as asas

das maceradas águas.

 

Ð

 

A madrugada a doer

 

A madrugada a doer, a doer-me muito.
A memória que guarda o teu nome.
Este cantar lúcido das águas.
Tu és belo como esse canto,
esse perfeito tiro ao alvo ao fundo da noite
das fogueiras adormecidas.

Que segredo se oculta onde teu corpo habita?
Quem te nomeia nesse mar tão branco?
O que amas? A orla do rio, ou a raiz deserta?

A madrugada a doer, a doer-me muito.

 

Ð

 

Do meu corpo

 

Quando acendes a noite do meu corpo?

Quando me entregas o mar e o horizonte?

Quando cinzelas a fresca primavera

e fazes um barco

para que eu alcance a imagem do amor?

Ð

 

Na ilha das palavras

 

Diz que me amas, que eu seguirei pelo silêncio que se ergue como uma estrela, muito ao fundo, na felicidade de um amor sem nome.

Diz que me amas, que a palavra é a pureza desse amor que pulsa abandonado.

Diz que sim, que o único consolo é o branco de uma toalha antiga,  o mar onde nos mantemos.

Diz que o amor é isto, uma nesga de luz, a cor sépia, o olhar cego, um sismo nas minhas mãos, o sono merecido.

Diz que sim, diz que me amas porque me escondo no sargaço das palavras, na maresia das palavras, na ilha das palavras.

 

Р

 

O último habitante

 

Onde a noite naufragava era visível a palavra.

Era um país insone.

Entardeciam as mãos,

ensandeciam os dedos esperando os navios,

rente ao peito, entre flores e limos.

Pousavam sobre as águas, as velas, o amor, os dardos,

a cidade eremita…

Ainda por vir, o teu rosto, a pele cerzida

a linha glacial, a dor como se ao sol um corpo estremecesse

e tu fosses o último habitante, agora, vivo na escrita.

 

Ð

 

Minha mãe

 

Minha mãe amava as rosas e os amanheceres perdidos.

A paisagem era um sonho, era um embarcadouro.

Minha mãe lavava a noite no lume afoito dos rios.

 

Ð

 

 Mãe, ó mãe…

 

Mãe, ó mãe, há estátuas de fogo verdadeiro crescendo

nos meus olhos. A lua lembra-me janeiro inundando o mar

e as rosas.

Lembras-te da serenidade da lua?

 

Mãe, ó mãe, é subterrâneo o meu canto,

eu vivo cantando no interior das estrelas de nenhures.

 

Р

 

Monólogo

 

É de neve este mar

E eu habito-o

Perdi as ilhas

Perdi a visão que foi minha

No monólogo infinito da noite

os pássaros cantavam na quase luz nas margens das palavras.

 

Ð

 

Numa flor

Sou o tempo físico

vivo numa flor que desenhei para ti.

 

Р

 

No exílio

 

Saciarei a sede ao cair da folha.

Beberei da fonte

abrirei a terra

porque um céu se esconde

no exílio dos meus olhos.

E no sol que tarda

invocando o nome

de nocturna vaga

colherei um rio

em todo o amor envolto

morrerei à margem

entenderei meu canto

silenciarei meu sonho.