ANA MARIA OLIVEIRA
O espetáculo hipocondríaco da justiça
No mercado das emoções vendem-se todos os papéis
É só escolher e representar
O que perante as circunstâncias nos possibilita o desafio ganhar
Várias falas se baralham
O abrir de dentes do carrasco
A lamúria penosa do coitadinho
A desculpabilização do louco
O risinho do astuto
Que se vai safando nas várias peripécias pelo mundo
O passivo vai-se calando mas é provável que expluda
Sem que ninguém possa impedir o regresso do tempo dos opressos
Pelo obscurantismo persistente dos retardados
Retorna sempre que as raposas retóricas de caninos afiados
Se movem na ganância dos mesmo cenários
Contracenando acomodados a velhos palcos
O protocolo da justiça tem várias máscaras
Múltiplas entidades
Infinitas realidades
Relativas verdades
Subterfúgios engrenagens
Passadiços e esconderijos
Que perfazem pegajosos cortiços
Onde os ferrões se armazenam aqui e ali
Prontos para a ferroada envenenada neste e naquele
Onde os escorregas atingem a velocidade
Do salve-se quem puder e cada um por si
O espetáculo hipocondríaco da justiça
Pinta neuróticos e maníacos bipolares
Homicidas e ladrões
Que permanecem incólumes com perdões
Esta cambada de asnáticos que maltrata e mata
E se julga dono de toda e absoluta certeza
Ignoram que não escapam a uma perfeita limpeza
Imposta por algo maior que é a revolta da própria Natureza
Corpo em cinzas
O grotesco da minha voz apenas se ergue contra o ruído
Rejeitando os estalidos estridentes nos meus ouvidos
Provocando a avalanche de sangramento da minha escrita
Que provém do desconforto asfixiante patético
Semelhante ao peso sobre o meu peito de criaturas toupeiras
Que minam o terreno e abrem buracos sugadores de vida
Enterrando-a bem fundo para depois se alimentarem
Em frações de absolutismo patogénico
O vómito incontido no rasto de tinta da minha caneta
Arrasta as entranhas revoltadas contra o harém
De compra e venda de carne humana em traição cobarde
Rabiscos denunciadores de embusteiros
Que apregoam os sonhos paradisíacos colados na testa
Rotulada de idiota felicidade
Os pés de criança cruzam o tempo no palmilhar dos campos e carreiros
Decidem em modo precoce de quem acabou
De entrar no mundo pelo protesto da rebeldia
E empreendem sem dúvidas a viagem
Que se metamorfoseia em anúncio de libertação
Um pronunciar afirmativo sem receio da franzina autonomia
A víbora que se enrosca no recém-nascido
E o faz soltar o grito de alerta profundo
Transforma-se no acontecer de iniciação
Preparando a inocência para as batalhas do mundo
O meu corpo transformar-se-á em cinzas
E a voz continuará o grito pela libertação
O vómito será destreza de aniquilação dos ditadores com a doença do poder
Os pés humanos calcorrearão as montanhas mais altas
Sentirão o esforço da subida das vertiginosas dunas
E o conhecimento dinâmico captará as transmudações
Das fissuras dos abismos inalcançáveis
Onde a arte e a vida serão unas
Hienas
Afocinham os animais sem perceção das transferências
Guinchando na intimidação dos acabrunhados
Erguem fronteiras onde atraem e aguardam
Que os desprevenidos caiam na ratoeira armadilhada
No arame farpado das convenções machistas
Amaciadoras de reflexos espelhados
Escondem-se as hienas nos mais altos cargos
Escoam-se por aí ignorando a dinâmica dos verbos
São sobreviventes astutas no meio da sociedade humana
Cobardes na atitude medíocre e no argumento apodrecido
Fedem à distância e é imperativo travá-las
Vigiar e anular os seus ímpetos de megalomania
Enfrentá-las!
Improvisam-se no lar comum
Pavoneiam-se hasteando a bandeira do poder
Reprimidos e comprimidos sobre si próprios
São burros de duas palas
Que não veem mais além
Numa cultura arcaica que lhes dá guarida
E são incapazes de sentir empatia por alguém
Enaltecem o jogo da crueldade
Deliram com atos de violência
Consideram-se os melhores e a salvo
Cegos à força incandescente da metamorfose
Podem morder trucidar
E se não tiverem mesmo oposição assassinar
Escalada linguística
O escalador condutor de letras cai do alto do ilimitado
Porque em voo quer alcançar a língua oculta
Esboroada entre os murmúrios da voz embaralhada
Nos cornos da besta esquartejada e inventada
Dança em desequilíbrio o trepador de dialetos
Vigiando a rutura dos elementos
Corta os fios liga a corrente
Sobe e desce a escada
Rumo ao abismo do nada inglório
O emissor não vacilou o recetor se ampliou
Perante o indefinido auditório
A lamúria linguística espreguiçou-se
E amaldiçoou por mensagem obtusa o mundo
A língua ficou farta de gastar saliva
E decidiu-se convicta pela boca calada
Mas no abalroar dos destroços desabafou porca
Saltou de estado em estado mas pelo microcosmo
Era a mesma de cara lavada
Enlouquece a língua e instiga à derrocada
Premindo a tesoura assassina
Entra no esgar das sanguessugas
E transforma-se em lua obscura
Quer pavonear-se pelos altares proféticos herméticos
E metamorfoseia-se em clarividente
O verbo soa e espezinha prevaricador
Entre dentes a língua sorve as trevas do ódio irada
Os tempos entrecruzam-se e a revolta
Acrescenta aos lábios a sonoridade sorridente
A melodia surge criativa batendo palmas sapateando
A língua faz-se camaleão da alegoria cantada
Enquanto díspares grunhidos aparecem
A pobre língua de origem sente-se derrotada
Com agressividade espezinhando surge a polémica
E a outra chora esconde-se alienada
Em código morse intervalada
A língua instável efêmera intermitente
Afunda no poço lamacento e estagnada
Espera o rodopio e a mudança noutra mirada
Magia da vida
Movimenta-se a marreca arqueada acorrentada ao permanecer
Contrariando a beleza ereta sem projetos sem rendilhados sem meta
Estica-se o corpo estilhaça-se o mudo e o mouco
Sempre aquém de um horizonte de mar sem jamais o alcançar
O bailado do toca e foge persiste por entre os fungos
Nem para lá nem para cá do bosque flutuante
Nem ir nem vir do afundo na lama
Nem ter nem ver o voo ondulado sobre o oceano emaranhado
E no desafio infindável dos elementos
O estrondo fez-se luz calor incêndio raio trovão
Empurram-se as paredes derrubam-se as cercas
Eletrificam-se as veredas e os caminheiros sofrem a invasão
Pressente-se o corte o rasgo o impacto
Os dedos gelados pés coxos aguardando o choque do dorso esquartejado
Olhar quebrado arrastado pela distorção da salganhada suspensa
Em estendal agitado pela crença
Engolir em seco sangue-frio espectro
Gargarejos em catarata armadilhada
E a concomitância da língua ferida
Escondida inerte esburacada
Sonhos enforcados passos em tensão
Asfixia adiada no rosto envelhecido submetendo-se ao acordo
Sem reconhecimento sem mensagem nem comunicação
Gruta fendida em garganta inflamada
Patologia em escarro de morte disfarçada
Pulmões sem força cãibra desgraçada
Poça de excrementos sonoridade zangada
Gota de água dispersa em tempestade
No bálsamo da exaltação da chuva renovada
Construtor de quimeras
Pela avidez dos passos da contemporaneidade
Apresenta currículo ultrapassado e gasto
Traz atrelado um baú de sonhos
Para cada cabeça com sua fantasia
Desenha estilos ergue tronos
Estéticas cativadoras de permanências eternas
Mas vende o perene descortinar das alucinações
Na provocação de paraísos
Pantomineiro guionista fantoche artista
Saltitão palhaço malabarista
O construtor de quimeras ergue o seu comando
Nas linhas férreas do enredo retórico
Sorridente lança a rede
Por entre a vibração sísmica do desencanto
Senta-se no balouço na iminência da queda
Ainda assim gesticula aos ingénuos dúbios devaneios
Aspira destila sussurra e transpira
Aborrece o arquiteto da farsa
Escolhe de entre rejeitados os mais propícios à cilada
Anedota transformada em graça
Mina o terreno para o feitiço do engano pleno
Rodopia para um lado e para o outro conforme as melodias
Porque o fardo é real e pesado
E as palavras gastas ingerem-se frias
Enfadonho o tecedor de utopias
Para os que captam a profundidade do mundo
E de mãos gretadas unhas carcomidas
Bocejam as bocas pedindo descanso nas desertas ermidas
De dentes cerrados silenciando a espera o desencanto
Enquanto o fazedor de sonhos e criador de alvoroços
Continua a tecer de brilho efêmero o seu precioso manto
Condutores de informação
A informação abre veredas por entre a selva
Onde as serpentes aguardam a mordidela certeira
Na podridão da carne
Os canais são austeros perigosos e escorregadios
E os veículos descarrilam no percurso
Onde a arquitetura explode em linguagem cósmica
E o meu cérebro faiscando sobre o estado amnésico das palavras
Baralhando sílabas misturando notas musicais
Esperando que o caos se transforme em ordem
Sapateando entusiasmo para que a minha surdez não notem
O carrocel é velho e barulhento
Deslizando nos carris oxidados pela chuva
Onde os corpos carcomidos se revelam
Ansiando o brilho do ouro
Rebentando em campos de exequibilidades
De armazenamento de joias
Tesouros feitos ornamentos onde as mensagens ambíguas
Dão origem ao erguer de braços dos déspotas
E ao levantar e baixar da lâmina afiada do carrasco
E a minha mente criando fogo-de-artifício
Falseando os resultados da experiência
Pintando quadros onde a beleza aparece errática
Como trampolim para o grotesco e medonho
A mensagem atinge o alvo onde o alerta é dado
Mas as aranhas inertes e interesseiras
Apenas tecem a sua teia e permitem
Que a probabilidade dos escravos se transforme
Em espaços de concomitância indecente
E é então que o ditador é permitido e o seu ego lunático
Ergue uma forca poderosa
Onde os egoístas conformados passarão o portal
Renascendo como combativo inovador criativo
Golpeando a flecha no coração da besta
Manipuladora de homens esquartejados na cruz
Finalmente a viabilidade do carrasco
Permaneceu do outro lado na invisibilidade
E à velocidade vertiginosa se fez luz
A força do dilúvio
Abre-se a fenda por onde os elementos cósmicos
Se revolvem misturam deleitam se entrecruzam
Procurando o encaixe perfeito omnipotente eleito
Criando rasgos de lençol campos estratificados
Aguardando a miscelânea o vendaval perfeito
O grito de comando soou por entre os recifes
Ecoa em toda a parte estridente como ser omnipresente
A água borbulha perante as rajadas de eficácia destrutiva
Arrancando o sustento dos homens à terra enfurecida
São prisioneiros do dilúvio infinito e imitando o furor cósmico
Chacinam os irmãos inventando justificações estoqueadas
Pela imbecilidade de uma mente decadente que perde a sintonia
Com o cordão umbilical da ética e a criativa energia
A força do dilúvio enlameia os ossos dos cadáveres à deriva
E deposita-os no fundo do mar do esquecimento ilimitado
O sol encarregar-se-á de aquecer o gérmen
Que emerge os seus caules delicados após a tempestade
À procura de um ancoradouro onde possa repousar
Pois o tempo é uma bolha sempre pronta a rebentar
E as possibilidades do acontecer rejubilam por festejar
Contrato
A liberdade vive calada e surda
Nas entranhas do homem que se vendeu a troco de iguarias
Riqueza podridão de fanatismos e fantasias
A patologia singrou e sangrou os corpos dos criativos
Acorrentaram-se na masmorra mais sombria
E abafando a voz cortaram as mãos
E verteram os sonhos mais gloriosos
No submundo das trevas
Enterraram bem fundo os genes
Das probabilidades em potência
Da vida da celebração
Da ligação fundamental ao cosmos
Onde as moléculas se agitam entre novos seres
Outras vontades renovadas em múltiplos pareceres
O pacto caiu em desgaste
Enriqueceu os poderosos os corruptos
Os materialmente ambiciosos
O contrato social permitiu a descrença na humanidade
Fabricou políticos despóticos
Ditadores dissimulados
Explorou as crianças profanou as mulheres
Chicoteou os indefesos e tornou amarga a existência
De quem possui todo o acesso
À partilha da natureza pela essência
O contrato social tornou-se o bilhete para um campo armadilhado
Onde só o assassino é condecorado
E as toupeiras minam o chão que os inocentes pisam
E aos famintos retiram-lhes o pão
A segurança fez pacto com a utopia
Porque o sentir da esperteza saloia da raposa matreira
Derruba os nobres de coração e enaltece os traiçoeiros atrozes
A sandice é inimiga da justiça quando há um tirano
Que se levanta e manipula uma multidão alienada
Que em estado patológico não tem força para o impedir e não faz nada
Distanciamento do senso comum
Um mecanismo de evasão é fabricado
Pela consciência inquieta ávida de expansão
O átomo em dança agitada com o vazio penetra o muro
Cria espirais de fortalezas onde se escondem as criaturas do futuro
Na Terra as vibrações se cruzam e os gatos
Captam as auras dos humanos adivinhando-lhes os suspiros os afagos
Os gritos a doce contemplação e os sabores amargos
O lado mecanicista da sociedade cativa o homem como sonâmbulo
Sem objetivo nem propósito sem riso nem pranto
Sobrevém o entorpecimento e cada corpo empertigado
É o centro do seu próprio empreendimento
Aonde não há semelhantes irmãos amigos
Apenas marionetas e arquitetas adorando o obtuso pujante
Distorcido inflamado pedante que desvirtua a estirpe
Que atropela goza e maltrata
E que se permitirem a sua paranoia a todos mata
A caminhada pelos socalcos da serrania faz-se em esforço
O teste de coragem e desafio enleia-se nos pés como trepadeiras
Impedindo a pirueta para além das copas das árvores
Onde a luz é meiga o voo espreita e a paisagem flutua noutra dimensão
E a bravura se faz suavidade para além da brutalidade
Para trás fica a matança a linguarice a multidão opinativa
Sem cérebro sem poder crítico
Então num salto quântico surge o planar rasante dos pirilampos mágicos
Que iluminam os gestos humanos embebidos em utopias
São planaltos abertos onde a energia intuitiva rabisca inovadas melodias
Ana Maria Oliveira (Portugal, 1967). Em 1986 finaliza a licenciatura em Filosofia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa. Edita o seu primeiro livro de poesia em 2008 “Grito de liberdade”, através da Corpos Editora. Faz uma edição de autor “Espírito Guerreiro”, o seu segundo livro de poesia, em 2014. Mantem alguns sites onde divulga a sua escrita:
http://www.assinaturaeletromagnética.blogspot.com
http://www.devirquantico.blogspot.pt/