Devaneios do Fim d’Estio

 

 

 

 

 

 

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


1. 

Estátuas de Sal

 

Na orla do Mar, os pescadores esperam à porta das casas. O que esperam os pescadores?

O problema é, como sempre, a ausência de dinheiro. Nas Casas não há técnicos.

Pormenores:

Algumas armações foram recuperadas para comercializar peixe à custa de um forte investimento, mas há mais de uma década que se encontram abandonadas. Não há combustível e o cão está intoxicado pela inalação das lágrimas. O interesse no mercado não é aumentar a facturação, antes pelo contrário, estagnou, cai a pique, inquinado, mais podre que o peixe podre, deixado abandonado ao Sol, para os ratos se, mesmo eles, se dignassem a comê-lo. Na Rota 33 há algumas pessoas a morrer à fome e por falta de higiene. O salitre come-lhes as carnes. Foi-lhes aos ossos. Nas Casas faltam técnicos e, como a previsão é de aguaceiros, há problemas de segurança. Todos os dias faltam os salários. A pobreza é extrema.

Em Albufeira, vinte crianças perderam a viagem para o Interior. Inventam novos frutos-tóxicos, com o tempo que lhes sobra, com a falta de transporte, de ocupação e de oportunidades. O que farão com a profusão de frutos-tóxicos que se amontoam à porta de casa? O cão, já há muito, pereceu, envenenado de lágrimas, de fruta-tóxica, cansado da espera dos pescadores, que permanecem imóveis, ainda, à porta das suas portas, estátuas de sal, tisnados, inertes, pacientes, furtivos. Que esperam, passado tanto tempo, rodeados dos pomos mortais, radioactivos, fitados pelos olhos cegos do cão morto que jaz, ainda fiel, a seus pés?

 

2. 

Da Obra de Flóriánz Gabú

 

No mundo há os temerosos e os audazes. Mas tu não és nenhum deles, não pertences nem a uma nem a outra espécie, antes a um tertio genus, alguém que passa pelo mundo como um fantasma, sem interferir, sem repousar, sem se permitir sequer a mais ténue ligação a um sítio, a uma pessoa ou a um tempo, tão livre quanto um ser humano é capaz de o ser e que faz tudo o que pode para se manter sem laços e autónomo.

Poderias, até, em caso de necessidade, realizar dois inventos em simultâneo, com facilidade, um como pleno cozinheiro de vários estilos culinários divergentes, cuja inspiração se radica em terras e práticas nos antípodas umas das outras e um outro, em tudo diferente — um prodígio técnico — inspirado no que viste nas tuas muitas viagens, tanto, como se veio a saber, em essência, que espantaram os teus contemporâneos, doutos e leigos e que te fizeram incorrer, não poucas vezes, na acusação de heresia, não fora o respaldo e as boas graças que usufruías entre gente poderosa que, entretanto, te agraciara com o seu beneplácito, não foras tu personagem exótico, único como ninguém.

Não o iam abandonar nem esquecer, entregando-o ao julgamento público como nos períodos de tensão em que se combina o desejo e a distância. No fundo, em tanta estranheza, ele esconde-se, longe, num íntimo a que ninguém tem acesso e cuja cifra se perdeu não se sabe como, sofrendo, ademais, de um certo desespero difuso. Na consciência ainda parece o langor de uma gripe ou de uma decisão rápida, de alguém que há muito conhecia quase tudo, fleumático e plácido e que vive sem a correcção de um timorato cristão.

Na sua vida, não tinha nem tempo nem lugar para se deixar entorpecer. Foi o principal tema daquilo que fez e pelo que passou, da paz que não teve, cá e lá. E, tendo ou não razão, isso foi produto das suas escolhas.

No século XIX, por esses dias finisseculares, já se podia estudar a sua obra. Chamava-se Flóriánz Gabú. Era húngaro, do Império, mas sem os tiques imperiais. Ele que nem no exterior — pelos modos e indumentária exótica, mais própria do Oriente — nem no contraste da linguagem escorreita dos seus escritos havia sido considerado uma pessoa do seu tempo.

 

3.

Janus

 

Aquela desdita acompanhava-o há já tanto tempo que não saberia viver sem ela. O que era? O que tinha acontecido? Nada de mais, na verdade. Um facto trivial que, por várias circunstâncias aziagas, tinha aumentando e por outras, ainda mais funestas, tinha permanecido colado à sua vida, uma segunda pele, que seria uma espécie de identidade ou, quanto muito, uma identidade alternativa, se ele o não rejeitasse com quantas forças tinha, isto é, se não resistisse a deixar-se amalgamar, por completo, à extensão identitária que aquela nefasta ocorrência, tão antiga, mas ainda tão presente, poderia implicar. No entanto, esse esforço, que resultava numa luta diária e perene, fazia-o correr o risco de uma certa dissociação de personalidade, funcionando, na plena contradição que só os seres humanos são capazes, como se fosse completamente livre desse incómodo e ajaezado a essa memória penosa, sendo na sua vida corrente, ao mesmo tempo, alegre e triste, livre e condicionado, um homem sem passado e arrastando a memória traumática do que lhe tinha acontecido.

O resíduo doloroso de uma imensa amargura. Não diria, dele próprio, se fosse instado a dizê-lo que, por isso, era feliz ou mísero, se se sentia leve ou se se considerava cingido à terra.

Era como um reflexo, uma memória incómoda, como num entresonho, uma identidade difusa, um anátema interior, quase secreto.

Por vezes, também pensava como seria se se libertasse disso tudo. Se esquecesse ou se a ordem das coisas o deixasse esquecer. Ficaria eufórico? Seria um homem diferente? Seguiria um outro caminho? Homem reconstruído, desigual ao que sempre fora?

 

4.

Luz de Outono

 

Continuavam enamorados. Ao fim de tantos anos e depois de terem passado por tantas vicissitudes mantinham acesso, um no outro, um interesse que era de louvar. À sua volta o mundo tinha mudado, o corpo, o corpo deles tinha mudado. Até o seu espírito se tinha transformado, o fulgor da juventude abandonara-os.

Um dia a ambos ficou provado que estavam velhos. E como estavam enamorados.

Ela caiu — uma queda trivial, mas grave — e ele não abandonou a cabeceira da cama enquanto ela não se restabelecesse, um não iria à força, o outro iria até ao fim. A razão é aplicada pelos outros, não por eles, não agora, a ausência de uma abnegação não era admissível às «etapas da recuperação». Ele teimava junto dela e sofria, por ela e por ele, ela, compreendendo, sofria por ele e por ela e esforçou-se, sabe Deus como, para sair daquela cama, quando um cansaço enorme a invadia, um letargo de morte, já tinha vivido o suficiente e sabia que o futuro seria penoso, não augurava nada de bom, uma queda daquelas, naquela idade.

Na dor começou o «complemento para o jeito de aprender a viver na dor», mas nada disse. Por amor, dispôs-se não só a suportar o sofrimento físico que não mais lhe daria trégua como a recuperar uma jovialidade que, até então, parecia, há muito, esquecida. E, na verdade, por muito difícil que por vezes parecesse, conseguiram, juntos, reinventar uma segunda juventude tardia que durou até à morte de ambos, serena, com poucas semanas de diferença.

 

5.

Dos Miasmas

 

Os miasmas que permeavam todo aquele complexo eram a ponto de o contaminar por completo e começavam, amiúde, ao início da tarde, a gerar os seus efeitos suicidas, ou seja, levavam os infectados à prática de homicídios, raptos e mortes, potenciando a violência entre aquela população de assaltantes de carros, assassinos e doentes.

O envolvimento das duas bombas eléctricas foi alimentado por uma matriz estrutural muito mais segura do que a do velho motor a dois tempos, de combustível, o que mais reconfortava porque não só era um sistema muito mais eficiente para purificar o ar, como não corria o risco de explodir. Apesar de ser tecnologia «fossilizada», a sua natureza «estruturada», conseguiu limpar o ar, lavar aqueles terríveis gases e houve um período de trégua, antes que a natureza venal de toda aquela gente de má índole reconduzisse a situação ao mesmo grau de conflito, violência e perigo que as toxinas tinham provocado.

Afinal, não eram precisos tais gases nefastos para que o Homem se comportasse como o lobo do Homem.

 

6.

Antemanhã

 

Foi essa a primeira vez que ouvi tal série de acontecimentos ser chamada de «epifania» e, sistematicamente, vir ao meu encontro. Depois, segui as conversas sobre o local onde habitava, os traços gerais das nossas vidas, a favor e contra o meu infeliz marido. Eu, mais uma vez, «saíra de mim» porque o mundo é quase sempre assim. É. E, por outro lado, tinha o meu homem a viver em uma casa daquelas pessoas tão prósperas que só nos apetece ir pedir-lhes guarita e um belo naco de pão e não nos dão. Não estamos sozinhos nisso. Mas, ali, onde não se consegue usar de melhor sorte, cheios de frio e palavras vãs e várias ideias diferentes, só nos adianta sermos rijos e eu, naquela altura muito actualmente frágil, devia voltar a ser como era naquela primeira vez em que senti na pele a crueldade do mundo.

Crescer em busca do rio, a vida está sempre perto de um rio, o rio está pela vida e quando ele vem, caudaloso, encontrar-se-á, Deus querendo, o nosso pé. Crescer em busca desse rio ou de outro ou numa rua central com gente poderosa e não desesperada, que dá emprego a pessoas que não conseguem importar-se com mais nada do que aplacar a sua grande fome, porque não podem querer mais.

Esse foi o meu vitorioso Sábado, há já tantos anos, foi esse o meu despertar.

 

7.

A Máquina

 

«Sempre fui daqueles ingénuos que acreditavam que só o corpo importava e que o pensamento não era tudo. Agora, sei que não. Sei que isso é uma vã ilusão porque posso senti-lo. Por isso, quero transmitir a imagem dos Gregos, daquilo corpóreo que, para eles, tinha pouco valor. Que isso fosse sempre o meu paraíso. A questão, antes disso, era — parece-me — o «despejo» dos anciãos indolentes, como os que sentiam vergonha da letargia mental da senilidade e conseguir entender que quem não teve uma quimera, mas grande e absoluta, não passou pela Terra sem uma perspectiva válida da vida. Esse era o meu sentido crítico da sociedade, da educação, da psiquiatria, das artes e de todos o meios de comunicação, em que já ninguém divinizava a Antiguidade. Entretanto, também  vejo que alguma coisa não funciona e isso, à Esquerda, é um desafio político.

Eu falo do debate sobre essa vocação excelente, da procura de uma epifania. Os vencedores deveriam seguir outras ideias. Foram os vencedores que fizeram a realidade do amor, do cérebro e da sensibilidade, em que os homens e mulheres se possuem sem apego, sem ciúme e sem remorso. Depois, se fossem um pouco menos estúpidos, isso faria voltá-los para a leitura e para a matemática. Que bom seria retornar àquela Arcádia dourada d’antanho ou que, provavelmente, nunca existiu, sonho fugaz, ilusão perene de todos os descontentes, de todos os tempos e lugares».

Estas considerações não o impediram de inventar a máquina dimensional de alcançar as Arcádias perdidas em quantos multiversos houvessem, perscrutação demorada, portas abscônditas, mas de não impossível transposição se tivermos o equipamento adequado. E ele conseguiu-o! E para lá passou, encontrando, finalmente, todos aqueles espíritos iluminados que sabiam discorrer sobre os mais refinados assuntos, à sombra de pérgulas olorosas, de frescas fontes, ágapes simples e saborosos.

Enfim, para lá foi e por cá nunca mais ninguém o viu.

 

8.

Ocaso

 

Até os abraços cobertos de lágrimas pelos que tiveram a oportunidade de conhecer a saída trágica da lua-de-mel como perda do seu tesouro mais precioso. Depois, os abraços cobertos de lágrimas por causa de alguém que deixou de estar. Como desiludir-se numas lágrimas, na sua terra, na nossa terra. Uma mão cheia de terra, uma mão cheia de nada.

Por isso, toda a sociedade precisa acautelar-se. Estes acidentes triviais, mas demasiado comuns, não deviam acontecer. Agora, lá está ele, o pescador, à porta de casa, junto ao mar, olhando o ocaso, jovem e sozinho e derrotado e perdido e pensando nela, que se foi tão cedo, tolhida, ela que iria habitar aqui, onde iriam envelhecer juntos, felizes e que agora não está, deixando no seu rasto de ausência uma imensa melancolia, uma solidão inefável e um vazio tão vasto que todo o Universo estrelado que desponta neste ameno entardecer é pequeno para conter o desespero que o invade e que não mais o irá abandonar.


João Pereira de Matos