Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
Na crónica do Domingo passado, referi uma das mais recentes obras do fecundo teólogo checo,Tomáš Halík, com o título A tarde do cristianismo. O tempo da transformação[1]. O autor confessa que recebeu a inspiração para este título da metáfora escolhida por Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica, para descrever a dinâmica de uma vida humana individual, no curso de um dia: manhã, meio-dia e tarde. Procurou aplicar, com algumas inflexões, esta metáfora à história do Cristianismo. Embora a República Checa seja considerada a mais secularizada da Europa, observa que «a secularização não foi afinal o fim da história da religião; não foi, como imaginavam os ideólogos do secularismo, a vitória da luz da razão sobre as trevas da religião. Pelo contrário, foi uma transformação da religião e um passo mais no caminho para uma fé mais madura. Uma das tarefas deste livro é encorajar-nos a aproveitar ao máximo essa oportunidade»[2].
Halík não vive de olhos fechados sobre o estado em que se encontra a Igreja Católica contemporânea, nem faz desta situação uma fatalidade. Verifica que «a exposição pública de um inesperado número de casos de abuso sexual e psicológico abalou a credibilidade da Igreja e suscitou imensas questões acerca de todo o sistema eclesial. A imagem das igrejas fechadas e vazias durante a pandemia de coronavírus foi para mim um profético sinal de alarme: em breve, este poderá muito bem ser o estado permanente da Igreja se ela não passar por uma profunda transformação»[3].
Quando estava a ler este interessantíssimo livro, o Papa Francisco anunciava as novas datas para a realização do Sínodo, com estas palavras: «No dia 10 de outubro do ano passado, foi aberta a primeira fase da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema Por uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação, Missão. Desde então, está a ser realizada a primeira fase do Sínodo nas Igrejas particulares, com a escuta e o discernimento. Os frutos do processo sinodal iniciado são muitos, mas para que eles atinjam a maturidade plena é necessário não ter pressa. Portanto, a fim de ter mais tempo para o discernimento, decidi que esta Assembleia Sinodal será realizada em duas sessões. A primeira de 4 a 29 de Outubro de 2023 e a segunda em Outubro de 2024. Espero que esta decisão possa favorecer a compreensão da sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja e ajude todos a vivê-la como irmãos e irmãs que testemunham a alegria do Evangelho».
Todas as vezes que nestas crónicas, e não só, me referi a este Sínodo, insisti que se devia realçar, não tanto a designação Sínodo dos Bispos, mas o Sínodo de toda a Igreja, pois toda ela deve ser sinodal. A Igreja não é a hierarquia. É o povo cristão que precisa de encontrar as formas mais adequadas para se revitalizar e expandir o Evangelho da alegria e da esperança.
Para iluminar a vida toda, em todas as idades e circunstâncias, deve poder escolher, de forma pacífica, as suas lideranças, masculinas e femininas. A expressão sentir com a Igreja não deve ser confundida com sentir apenas com a hierarquia, pois é também esta que precisa, para realizar a sua missão, de sintonizar com as pulsões e as debilidades das comunidades cristãs.
Sempre me pareceu muito curto o tempo disponível, para aprofundar as transformações necessárias à superação da situação difícil em que nos encontramos. Sem essas transformações, detectadas como necessárias e urgentes nas várias comunidades que se têm reunido para a preparação do Sínodo, não teremos uma Igreja missionária, mas demissionária.
O Congresso Missionário – Fraternidade sem fronteiras[4] baseou-se em dois textos fundamentais: O Documento de Abu Dhabi sobre a Fraternidade Humana, assinado em Fevereiro de 2019 pelo Papa Francisco e o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, e a encíclica Fratelli Tutti.
A missão da Igreja, para se tornar católica, deve procurar o diálogo e a acção com as diversas religiões ao serviço de todos os seres humanos, com religião ou sem religião. E porquê?
Porque Deus não faz acepção de pessoas. São todas as pessoas que fazem parte do seu amor e dos seus cuidados. Quando se fala da fraternidade universal, parece algo impossível. No entanto, desde há 40 mil anos, que os seres humanos são biologicamente iguais. É um dado da natureza. Mas tornar-se irmão é outra coisa, mesmo para os que são filhos dos mesmos pais. Assim, colocar pessoas no mundo não é ser pai nem mãe automaticamente. Têm de adoptar, no amor e no carinho, os seus frutos da natureza. Assim também não se é irmão ou irmã só porque têm os mesmos progenitores. Têm de se adoptar uns aos outros, de se reconhecerem todos na amizade e nos cuidados, respeitando a originalidade de cada um.
A própria Bíblia tem relatos fratricidas: Caim e Abel e José vendido pelos “irmãos”. Foi Françoise Dolto, psicanalista cristã, que chamou a atenção para a realidade: os progenitores, para se tornarem pais, precisam de adoptar os filhos por amor; os irmãos precisam de se adoptar mutuamente. Sem esta prática familiar, corre-se o risco de ressentimentos para a vida inteira.
Conta-se que D. António Ferreira Gomes, um célebre bispo do Porto, teria perguntado a uma pessoa que exaltava uma família exemplar: «mas já fizeram partilhas?».
A grande partilha é, com efeito, a do amor recíproco. Ora, este não é um produto natural, mas uma adopção mútua, ao longo do tempo. Nesse sentido, quando se fala da fraternidade universal, não é de um facto que trata, mas de um bom desejo que se deve realizar, no âmbito das relações de proximidade, num horizonte ilimitado. A fraternidade é um horizonte de trabalho, um horizonte de conversão e reconversão permanentes. De outra forma, corre-se o risco das palavras terminadas em dade que indicam uma abstracção, não um processo concreto. Nós não somos, vamos sendo e, muitas vezes, des-sendo.
Proclama-se, na Missa deste Domingo, que Deus não faz acepção de pessoas[5]. Nós fazemos e representamos a Deus como se também Ele tivesse preferências de etnias, povos, países, continentes e pessoas. Até inventámos a noção ambígua do chamadopovo de Deus e, muitas vezes, transferimos essa ideia de Israel para as próprias Igrejas Cristãs. Quando escuto essa expressão, pergunto: se apenas esses são povo de Deus, de quem são os outros povos? Isto implica, no plano económico, social, político, uma revisão contínua das nossas sociedades. Foi proclamada a universalidade dos direitos humanos, mas esse é um horizonte de transformação para vencer rivalidades. Também aqui, a noção de conversão contínua é fundamental.
É atribuída a Einstein uma frase curiosa: «Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana, mas não estou muito seguro da primeira. Da segunda pode-se observar como nos destruímos só para demonstrar quem pode mais». De facto, esta estupidez continua. Como vencer o desejo de dominação pelo gosto de servir?
Para o conseguir, Jesus não se contentou com os 12 apóstolos. Escolheu 72 discípulos e enviou-os à sua frente a todas as cidades e lugares, onde Ele havia de ir[6].
Notas
[1] Paulinas, 2022
[2] Ib. Pág. 69
[3] Ib. pág. 10
[4] 14-15/10/2022, na UCP-Lisboa
[5] Ben-Sirá 35, 15-22
[6] Lc 10, 1-9