ALEXANDRA VIEIRA DE ALMEIDA
Reflexão e memória em De quando éramos iguais, de Eduardo Sens
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux. Contato: alealmeida76@gmail.com
Ao lermos o livro De quando éramos iguais (Penalux, 2019), de Eduardo Sens, podemos nos reportar a uma importante frase do grande escritor Jorge Luís Borges que disse: “O livro é uma extensão da memória e da imaginação”. Nessa narrativa envolvente, à medida que o narrador-personagem vai avançando na história, as memórias vão se revelando mais nitidamente. Logo no início do livro, temos a força do deslocamento narrativo, pois encontramos um paradoxo linguístico. A relação entre a linguagem, o texto literário, a reflexão sobre si e a realidade vivida pelo narrador-personagem, pois apesar de ser um promotor, vive uma vida de obviedade, um padrão que o introduz no mundo do que a maioria costuma fazer. Mas só que essa obviedade se choca com as intensas reflexões e digressões do promotor que faz uma análise minuciosa sobre sua própria vida.
A narração em primeira pessoa forma o eixo das memórias e lembranças do narrador que são acionadas por um fato impactante em sua vida, ou seja, esse fato é o leitimotiv para que as memórias ocorram num processo de autorreflexão profunda. Ele vai ser o promotor de um processo cujo réu foi seu amigo de infância. Aí, toda a trama se adensa e se perfura de processos mentais, em que as lembranças vão se pautando à medida que se dá o julgamento num tribunal, com suas testemunhas, seus jurados, o advogado, o juiz e até mesmo aqueles que assistem a esse teatro de encenações, como a própria família do assassinado, que era um pai de família e trabalhador.
São intensas as conversas com o leitor, fazendo-nos lembrar das digressões machadianas: “Eu sei que você deve estar pensando que histórias de redenção e de superação, essas dos roteiros batidos de filme americano, já não colam mais”. O enredo é esmiuçado pelo olhar do narrador-personagem que nos segreda os seus mistérios mais escondidos, inclusive um fato que ocorreu na sua infância que o coloca também como reú, sendo, portanto, um espelho daquele que é acusado pelo crime de quem ele é o promotor. Esse recebeu todo o mérito e prêmios, mesmo, segundo ele, não tendo merecido, revelando que as boas ações, na verdade, surgem da não ação e da inatividade, sem se fazer nenhum esforço. Esse é um grande contraponto em sua vida. Ele quer se promover a todo custo e está prestes a conseguir uma promoção logo após o caso de seu amigo de infância, apelidado de Tainho, se resolver. Então, ele entra em colapso. Qual seria mais importante em sua vida: ser levado pela sensibilidade fraternal ou cumprir seu dever conforme o cargo exige? Cabe ao leitor descobrir ao longo do livro.
Além dos processos de reflexão que são levantados pelas poeiras das memórias, há uma intensa força de autoironia em suas palavras, pensando sobre si de forma irônica e crítica. A partir da narrativa, vamos percebendo os vários eus do narrador, e como eles se escondem e se revelam. Temos um tremor na narrativa, o narrador oscila: “Eu era esse cara. Ou quase”. E as memórias residem numa época originária, a infância, justamente numa fase em que surgiu essa bela amizade, em que não havia conflitos e diferenças de classes, apesar de elas ocorrerem na realidade, pois o tempo idílico da infância com sua inocência apaga tudo o que for desigual, revelando uma força primeva e inteiriça, sem repartições. Tainho, o réu, morava numa favela e o promotor tinha a vida de um menino rico. Mas isso não é nada aos olhos das crianças. Só o tempo presente, marcado pela maturidade dos adultos, mostra estas desigualdades sociais.
O narrador-personagem é tomado pela profissão e seu conservadorismo. Apesar de ser um quarentão que vive da mesmice, da rotina e da normalidade, ele é estratégico. Utiliza as artimanhas do ofício para convencer os jurados. Ele quer levar a todos ao local da família do assassinado, a mulher e os filhos. Quer, num processo catártico, que todos sintam a compaixão por essa família sofrida. Com um tom afiado de sua narrativa, Eduardo Sens nos leva ao universo onírico da infância com seus jogos e brincadeiras, como a pipa, o futebol e a funda. A infância é apresentada como um contrapondo à fase adulta, pois é vista como a época da naturalidade, enquanto a vida adulta seria o artifício com sua normalidade e padronização.
Podemos ver a beleza dessa fase de ouro com suas brincadeiras ao ar livre, diferente das crianças de hoje, com seus celulares, computadores e jogos eletrônicos. Uma época rara que não volta mais. Sens enfatiza a partir de seu lirismo em alguns momentos na narrativa esse tempo em que as crianças poderiam andar descalças e sem medo da violência que acomete nossa sociedade atual com intensa força e brutalidade. A leveza da infância prometida é algo encantador nas memórias do narrador-personagem. As descrições desse momento passado são minuciosas, como a descrição da favela pelo promotor. Em meio a vários momentos no julgamento, o promotor vivencia um sonho acordado, que são as suas memórias. Ele as vivencia como devaneios. E, ao longo do livro, ora somos levados às suas lembranças, ora estamos em pleno julgamento, onde o passado e o presente se conjugam, em que o que não mais existe passa a ganhar efeito nos fatos presentes. O sonho e o real se revelam com grande força de enunciação, formando este enredo excepcional que nos prende a cada minuto: “Acordo dos meus devaneios quando noto o plenário silenciar. Volto a mim, tomo um gole d’água. É o juiz quem chega.”
O promotor com vários processos de sucesso nas costas chega a ficar confuso com esse processo atual. Ele titubeia, mas precisa seguir em frente e vencer essa batalha atual. Esse fato repentino o deixa sem ação, mas ele precisa agir. Eis o conflito encenado por esse narrador-personagem. No início, ele pensa em não pegar o caso, mas encontra justificativas para permanecer, pois o poder da meritocracia é mais forte e ele quer vencer mais uma vez, para conseguir a tão sonhada promoção. Apesar de ter sido amigo na infância, ele precisa encontrar um motivo para ter raiva do réu e encontra: “É um crime violento”. Só que eles não eram mais iguais, tudo se modifica, nem as células são as mesmas. Há confrontos, diferenças. Ele é um promotor, o réu, marceneiro. Este fato o faz relembrar da marcenaria de seu Jota, na sua infância. E como estas passagens são cheias de beleza e lirismo: “Mas o que mais me fascinava era o cheiro de madeira virando brinquedo”. As descrições são perfeitas. Há exatidão na narrativa. Temos a memória com suas precisões, apesar de alguns lapsos de esquecimento do promotor, quando chega o momento crucial da sua infância em que ele é posto no banco dos réus, mas que são desvencilhados e clarificados no final do romance, como os leitores verão.
Há a dramaticidade das situações, o drama, que causa tensões na narrativa, como o trágico na vida daquelas famílias pobres. Nós leitores, ouvimos as testemunhas apresentadas no livro, como se fôssemos jurados. O leitor é uma espécie de júri que vai julgar os acontecimentos. E isso é formidável na sua narrativa. O papel do leitor e sua postura crítica diante dos fatos. Com os procedimentos jurídicos, nós, leitores, somos inseridos nesse universo jurídico e temos poder de persuasão também. Outro embate que causa tensão na narrativa é entre o advogado e o promotor. Os argumentos deles são como uma luta no ringue linguístico, pois são as palavras que ganham força aqui. O advogado lança dúvidas nos jurados e o promotor argumenta o contrário enfaticamente. São cadeias de forças que se enfrentam e não se apaziguam. Mesmo que as lembranças o façam tremular diante do processo, ele quer ter todo o poder no julgamento. Mas o livro revela o quanto não podemos controlar nossas memórias. Mas o promotor é um intenso observador do real circundante, tendo um poder de observação impressionante, captando cada gesto, cada minúcia no externo e isso lhe dá força para continuar e não fraquejar mais. Todos os demônios interiores do narrador-personagem vêm à tona.
Eduardo Sens faz uma verdadeira genealogia das idades, indo da infância, passando pela adolescência até chegar à fase adulta. Na fase adulta, temos a visão preconceituosa do promotor com relação aos mais desvalidos, aos mais fracos. Mas ele mesmo não é um fraco? Ele mesmo não se revela no banco dos réus a partir de sua memória seletiva? Ele tem uma percepção aguda de todos os matizes da linguagem de cada um, mas se prende na teia de sua própria linguagem. Ele percebe minuciosamente que cada deslize na fala do outro é motivo para ele atacar e argumentar, mas ele se enovela nos fios de sua própria costura. A própria culpa recai nele, um fato da infância que o acusa. O promotor quer que os jurados vivenciem realisticamente a cena do crime, mas temos o choque entre a solenidade de um tribunal e aquelas pessoas simples que assistem ao julgamento. Um verdadeiro teatro é montado, com sua dramaticidade aguda. Toda a ideia de diferença e dessemelhança é quebrada com a ideia de culpa que recai no narrador-personagem. Assim, ele relembra com mais nitidez à medida que a tensão se desenvolve e aumenta. O que estava bloqueado se desbloqueia, lembrando-se mais claramente das falas do passado. A tensão ocorre lá e aqui, o passado e o presente se espelham.
Portanto, a partir das reflexões e memórias, nós, leitores, penetramos no universo fascinante do livro. Uma obra ímpar que nos faz mergulhar nos abismos da nossa estrutura social, tão desigual e incompleta. O romance nos mostra o quanto devemos nos manter íntegros diante de situações conflituosas e nos revela que a inocência da infância nos mantem num olhar sem divisão.
“De quando éramos iguais”, romance. Autor: Eduardo Sens.
Editora Penalux, 140 págs., R$ 38,00, 2019.
Disponível em:
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