De poesias e de pássaros

ZECA LEMOS


ZECA LEMOS (José Lemos Monteiro Filho), Brasil. Jornalista em formação e escritor. É autor do livro Pequenas Eternidades – Crônicas 2016 e tem um canal no Youtube que leva o seu nome, em que faz resenhas de livros e traz dicas de leitura e escrita: Zeca Lemos .


Bruno Paulino, contista e cronista com livros publicados, estreou no gênero poesia com sua participação no livro Cinco inscrições da mortalidade, publicado pela LuaAzul edições em 2018, em parceria com os amigos poetas Renato Pessoa, Alan Mendonça, Maílson Furtado e Dércio Braúna, esses dois últimos, responsáveis pelos prefácio e posfácio, respectivamente, do livro Ofertório dos pássaros, que inscreve, a partir de agora, seu nome no melhor da produção poética cearense. É difícil falar sem repetir depois dos dois (Maílson Furtado e Dércio Braúna), mas, creio, como Umberto Eco, que “o efeito poético está na capacidade que um texto oferece de continuar a gerar diferentes leituras, sem nunca se consumir de todo”. Vou ousar, então.

O título da obra – Ofertório dos pássaros -, tem na primeira palavra, por analogia, o sentido aa parte da missa em que o padre oferece a Deus o pão e o vinho, supondo, portanto, uma doação, no caso, dos pássaros, que são, simbolicamente, os mensageiros entre o céu e a terra; em algumas culturas, anjos, pela capacidade de voar, por possuírem asas e poderem chegar ao céu, sendo, assim, os emissários dos deuses.

A presença dos pássaros já alude, antecipadamente, à imagem de São Francisco, que pregava para as aves e vivia cercado delas, marcando a espiritualidade do poeta e sua filiação franciscana, afirmada na citação latina que consta em destaque logo no início: Pax et Bonum (Paz e Bem), que é um cumprimento franciscano. Reafirmando essa conotação espiritual, o poema de Frei Tito, logo na abertura, antecipa o fundamento da palavra de Paulino e é luz nesses tempos sombrios que ele conheceu tão bem.

As duas partes em que a obra é dividida invocam uma espécie de rito religioso, que revela o percurso existencial do poeta. A primeira, Homilia sombria dos dias, é inspirada na pregação que explica o texto evangélico durante a missa, numa espécie de ritual litúrgico – que, na missa, é a compilação de ritos dos ofícios divinos das igrejas cristãs, e, no livro, traz uma seleção de 13 poemas que vaticinam seu destino de poeta, filho da solidão. Nesse vaticínio, há um sopro do decadentismo dos poetas Baudelaire e Augusto dos Anjos, sobretudo nos versos de “Pesadelo” (p. 22):

urubus negros, horripilantes,

num céu de chumbo

me entontecem

 

seres rastejantes

na imundice putrefata

me aprisionam ao chão

 

escuridão…

escuridão…

escuridão…

O eu lírico, em seu “apocalítico sertão interior”, assolado pelos sonhos mortos, gritos sem eco, amores não correspondidos e soterrado pela prisão das dores de um “tempo sem pássaros”, ou seja, sem voos e sem esperança, se lança ao Ofertório dos pássaros, segunda parte do livro, em que os poemas começam por fazer alusão às figuras da mãe e da avó, iniciando um percurso de leveza. Para o poeta, a mãe –  fortaleza e sacrário – é o lugar onde se guardam objetos sagrados.

Nessa parte da obra, estão os Cantos para São Francisco, evocando sua simplicidade; para Santa Clara e sua transcendência da dor. Seguem-se preces como a que faz à Mãe Maria, e a quem apela “livra-me de ser grande”, numa segura demonstração de que seu coração menino precisa permanecer no adulto que se fez nele. Há, ainda, uma Pequena prece para quem sonha, onde se lê que “crer também é sabedoria” (p. 40).

A obra inteira é pontuada por referências de leituras, como os romances Verdes abutres da colina, de José Alcides Pinto; Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marquez; Mil léguas submarinas, de Júlio Verne, e clássico da literatura árabe As mil e uma noites; bem como imagens pinçadas, tal o Redemoinho de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, e aos Moinhos de ventos, de Dom Quixote.

Há menções a poetas que certamente lhe deram base, como Vinícius e sua Garota de Ipanema; Drummond e sua Itabira, que se transfigura em sua Quixeramobim. Paulino intertextualiza vários poemas de Drummond e finda: “Quixeramobim é um retrato na parede lá onde eu existo” (p. 46), ou seja, é sua Pasárgada, seu lugar no mundo. Nessa identidade com a terra, não poderia faltar alusão à Iracema, de José de Alencar (p. 53) ou a seu conterrâneo, Antônio Conselheiro, “o beato iluminado”, herói de Canudos, que diz ter ido “ao céu pela mão dos anjos” (p. 56 ). Há ainda referência a Gandhi, pacifista indiano, que derrotou a razão e inspirou a resistência. O poeta é consciente de que “não sabe mensurar a finitude das coisas que partem” (p.51) e por isso sofre, mas, embora como barco à deriva, não desiste de buscar seu horizonte.

Bruno Paulino, como afirma Décio Braúna no posfácio da obra, é “um poeta que espia com irmandade todas as criaturas e criações.” Lendo seus versos, recuperei em meus pensamentos as palavras do poeta e crítico mexicano Octavio Paz (1982, p.15): “a poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Como exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro”. De fato, é por meio da palavra poética que Paulino exorciza as sombras existenciais e ressignifica-as por meio de suas crenças. O itinerário de paz interior começa num sertão que está dentro e não fora dele.

Ofertório dos pássaros expurga demônios, enfrentando-os, pois “a vida é desejo e alguns desenganos” (p. 55), mas finda por ofertar uma alma de passarinho que, felizmente, nos lega esperança, apesar da consciência da tristeza do poema, como a de um currupião engaiolado. Viva a liberdade da vida e da criação!