De Camões a Eliade: como os latinos inventaram o mundo global

 

 

 

 

 

 

ALEXANDRE HONRADO


From Camões to Eliade: how Latinos invented the global world

Abstract: Luís Vaz de Camões stands out as one of the most recognized poets in the world. It elevates the Portuguese language to exceptional levels and, the target of extraordinary accolades, occupies a place in global history. He is translated into almost every language in the world, but above all he is one of the most exquisite ambassadors of the Portuguese language. His life and work are very legendary and there is a mystery around him (where and how was he born; how did he live?). Compared to the Romanian poet Mihai Eminescu, Camões is one of the greatest symbols of Latinity that produced the global feeling of a Humanity as needy as ours.

Keywords: Poetry. Otherness. Humanism.


Resumo: Luís Vaz de Camões sobressai como um dos poetas mais reconhecidos no mundo. Eleva a língua portuguesa a patamares excecionais e, alvo de encómios extraordinários, ocupa um lugar na história global. É traduzido em quase todas as línguas do mundo, mas é sobretudo um dos embaixadores mais requintados da língua portuguesa.

A sua vida e obra têm muito de lendário e cultiva-se o mistério em seu redor (onde e como nasceu, como viveu?). Comparado ao poeta romeno ao poeta romeno Mihai Eminescu, Camões é um dos símbolos maiores da latinidade que produziu o sentir global de uma Humanidade tão carente como é a nossa.

Palavras-chave: Poesia. Alteridade. Humanismo.


“Se o mundo das Ideias é um outro mundo que não este, mas igualmente atual,
então poderemos apreendê-lo, desde já, na condição de executarmos os exercícios
mentais para esse efeito necessários” Platão.

 

Sem Camões, o poeta português, o mundo seria mais infeliz e não compreenderia a dimensão global que a palavra, a mensagem, o verbo, podem ter ao procurar explicar e interpretar com euforia a verdadeira sensibilidade do mundo. Esta frase ajusta-se a outros poetas, admita-se, mas Luís Vaz de Camões, pelo critério e pelo mistério, pelo afeto e pela irreverência, pela aventura e pelas adversidades, sobreviveu ao que foi – um Homem do Renascimento e do atrevimento – ocupando um pedestal da imortalidade que, sobretudo desde o século XIX, tem sido iluminado por focos progressivamente mais potentes. Talvez por isso, Camões suba um degrau mais alto até ao patamar dos eleitos, olhando de cima por exemplo para outro português e poeta que reinventou antes dele o século XVI, Sá de Miranda, dando à poesia para lá da alma um corpo e deste uma bifurcação estonteante, a mente, o espírito, para lá do corpo, a matéria como ponto de partida do espírito rumando ao infinito das sensações e da sensibilidade. “A consciência de si inclui o sentimento de si que existe antes dela”, diria o filósofo (Gil, 2023).

Camões, cidadão do mundo e da mobilidade, um migrante, que atravessou continentes criando lenda – a ponto de não sabermos se o que viveu é a sua poesia ou a poesia é a forma como partilha o que viveu –, um porta-voz do divino que exaltou os deuses e, ao mesmo tempo, sem paradoxos, as exigências de uma Igreja (a católica romana) às voltas com um dos seus momentos históricos mais desafiadores (o nascimento do Protestantismo, a Reforma, a Contrarreforma, as exigências de uma reinvenção). Ao mesmo tempo, um pecador, incapaz de respeitar ditames de homens ou de deuses.

A dimensão poética do Homem aproxima-o do divino. Não porque Deus, qualquer deus – se manifeste mais na Poesia do que na Prosa ou porque seja literária a Sua essência, mas porque a Poesia, como fulcral manifestação e confissão do homem interior, parece aproximar-se mais da Palavra enquanto imitação da mesma: o homem procura o divino que há em si pelo percurso do belo e do essencial, divinizando-se, isto é, produzindo ideais de transcendência, aproximando-se de algo muito acima dos seus desafios quotidianos. Com surpresa, essa exaltação pela palavra é revelada em crentes e não crentes: aos poetas parece corresponder, nas imagens que criam, a frase de S. João “E eis que faço novas todas as coisas”. Porque, nessa aceção, a palavra é relação, procura e o que resulta dessa procura, para exaltação de quem a revela (Honrado, 2018).

 

Sons que o âmago escuta

 

Na literatura há que procurar o som da flauta que a sustém. Esta ideia é fixada, com liberdade, de um texto singular de Annabela Rita, quando discorre sobre lusofonia e literatura, interrogando com acerto se haverá – ou não – cânone(s) lusófonos (Rita, 2015). A imensa conjugação de sons na poesia de Luís Vaz de Camões, expoente da poesia em língua portuguesa, faz dele a flauta, no coro de sopros, eleita entre os pastores do intenso rebanho dos que procuram o deleite nas composições de criação (sim, a poesis grega indica e sinonimiza, logo na origem, a ideia de criação). A escolha é intencional – a flauta! – pois a voz e os instrumentos mais rudimentares, a cana que se deixa percorrer pelo ar soltando lamentos e sorrisos sonoros, os troncos ocos que percutidos rivalizam com a garganta profunda do céu quando nos grita os seus trovões -, e a palavra sem suporte físico, a que se exibe sob a marca da oralidade e da liberdade lançada a todos os ventos e brisas, assume comunhão solene com o poeta e a poesia que produz (e nos seduz). É a fórmula cristalina que mata a sede de viver e a fome dos deuses, que evocamos em todos os bons e maus momentos extremos. É a água dos rios mais íntimos que nos percorrem e alimentam/animam.

Ocorre-nos, por ora, que o som da grande flauta do mundo é, por isso mesmo, sempre entendido pelos rios: se o som das flautas é singularmente breve, o da força dos caudais, e neste entenda-se especialmente o dos rios, pais dos grandes mares, prolonga a criação como se desejasse alcançar a eternidade.

Os poetas tocam (com propriedades ressoantes e com a delicadeza tátil das mãos que escreveram e permanecem, talvez difusas, tocando-nos depois, a nós que sentimos lendo-os). Desconstroem os poetas a natureza (é então que se mimetizam culturalmente) e assim recriam os rios (sendo, em contradição, parte da natureza). São essência de emoção e de espiritualidade, mesmo quando a sua poesia agride os sentidos, provocando-os e tornando-os reativos. Quanto mais um poeta agita o Outro, mais nele se traduz e produz a marca tão elevada da alteridade e das experiências, em ascensão, do que há de melhor no ser humano.

Como disse Milan Kundera: “Por mais que um Stravinsky rejeite a música como expressão de sentimentos, o simples ouvinte não sabe compreendê-la de outro modo. É a maldição da música e o seu lado animal” (Kundera, 2011). E se é essa a maldição, diga-se também, a bênção; se é o seu lado animal, diga-se que assim se cria o racional).

É ofensivo dizer que um rio é apenas um rio, mesmo quando se chama Mekong e quase engole um génio que se perdeu nas suas águas. O mesmo é lícito, se o curso de água dá pelo nome de Tejo e recebe, como um útero pródigo, filhas tágides – as ninfas do Tagus (o Tejo, em latim, o Tagus) – e a quem um poeta pede inspiração para compor a sua obra maior; é insultuoso simplificar, reduzir, assingelar musas e metáforas pois é uma vil negação do pensamento.

“Todo o pensamento começa por um poema”, afirmava Alain (1953), [1]no seu diálogo com Paul Valéry e sobre um poema que este último escreveu em 1917. George Steiner, o “conservador” Steiner, releva esta frase, no seu incontornável A Poesia do Pensamento – do Helenismo a Cenan (Steiner, 2012) e encontramo-la citada às centenas por todos os que lhe encontraram subtil impacto. (Steiner conservador, sim, como guardião de sensibilidades. Recorda-se neste ponto o pensador português Eduardo Lourenço que se referia, a si mesmo, como “um arquivista”).

Quanto a menorizações, o mesmo se aplica ao poeta que, por mais partidas do mundo que revele e conte, nunca será apenas um poeta – e esse resumir é insultuoso. Camões viveu e aventurou-se em Portugal, no Norte e no sul de África, no Oriente. Deu azo a famas e herdámo-lo assim mesmo: famoso e movediço.

Até do século mais sofrido, mais sangrento, mais cunhado pela marca do ódio e dos ferimentos que produz, emana exceções maravilhosas, capazes de novas formatações do sensível que, apesar de todos os confrontos, ocupa parte inigualável no humano. Não terá havido século mais pródigo do que o século XVI, com o humanista Demetrios Chalkokondyles, ou com Shakespeare, Miguel de Cervantes, Leonardo DaVinci, Teresa de Ávila, São João da Cruz, Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões… Mas também de Bernardim Ribeiro, João de Barros, Fernão de Oliveira, e o universo heliocêntrico de Copérnico.Registe-se a breve resenha de Edgar Morin:

No final do século XV europeu, a China dos Ming e a índia mongol são as mais importantes civilizações do Globo. O islão, que continua a sua expansão na Ásia e na África, é a mais ampla religião da Terra. O império otomano, que se expandiu da Ásia para a Europa oriental, após tomar Bizâncio e ameaçar Viena, tornou-se a maior potência da Europa. O império inca e o império azteca reinam nas Américas, e tanto Tenochtitlàn como Cuzco ultrapassam em população, monumentos e esplendores Madrid, Lisboa, Paris, Londres, capitais das jovens e pequenas nações do Oeste europeu. No entanto, a partir de 1492, são essas jovens e pequenas nações que irão lançar-se à conquista do Globo e, através da aventura, da guerra, da morte, suscitar a era planetária.

Depois de Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio reconhece o continente que terá o seu nome. Quase ao mesmo tempo (1498), Vasco da Gama descobre o caminho oriental das índias contornando a África. Em 1521, a volta ao mundo de Magalhães comprova a rotundidade da Terra. Em 1521 e em 1532, Cortês e Pizarro descobrem as formidáveis civilizações pré-colombianas e as destroem quase em seguida (o império azteca em 1522, o império inca em 1533). Na mesma época, Copérnico concebe o sistema que faz girar os planetas, inclusive a Terra, em volta deles mesmo e em volta do Sol.

Eis, portanto, os começos do que chamamos tempos modernos, e que deveria chamar-se era planetária. A era planetária começa com a descoberta de que a Terra não é senão um planeta e com a entrada em comunicação das diversas partes desse planeta. (Morin, 2003, p. 51)

 

Um bom malandro

 

Camões foi, nas palavras de Hélder Macedo “o poeta do imaginário de todos nós que escrevemos, falamos, pensamos e somos em português” (Macedo, 2017). Curiosamente, Camões não escreveu apenas em português, usou formatos como o castelhano, os recursos italianos, reinventou os gregos (a começar por Aristóteles de onde parece ter recebido os ensinamentos da criação de silogismos, procurando com eles, pelo caminho das afirmações prepositivas, chegar a conclusões lógicas). Mas os grandes escritores sentem na língua do sentimento, que não será obrigatoriamente a sua língua natal. Recorde-se neste ponto Vera Linhartova, poetisa, que expatriada (saída da sua Checoslováquia para ser adotada pela França que passaria a ser a sua França) escolheu o francês para se expressar e que diria “o escritor não é prisioneiro de uma única língua”. Por isso, hoje temos Luís Vaz de Camões traduzido em (quase) todo o mundo e é possível ler em chinês, em inglês, em cingalês, em curdo, em polaco as suas obras (ocorre Joseph Conrad que nasceu na Polónia e que escreveu toda a sua obra em inglês, apenas para dar mais um exemplo entre tantos, tantos outros).

Como as nuances dos rios e dos seus percursos e navegações, entre a constatação do mais singelo até às portas do inexprimível e do mais complexo, o percurso dos escritores e sobretudo, entre eles, o dos poetas, delimita do vasto espanto da existência, por vezes incontrolada e incontrolável, a zona mais eficiente da resistência humana.

A poesia é intransigente, pois à margem de todas as noções e realidades, cria um hiato para refúgio de formas de vida capazes de negar a reificação, contrapondo ao materialismo quotidiano o sentimento, que é sempre imaterial e estabelece-se muito para lá da compreensão aspetual pois discorre sobre o que a linguagem permite de mais livre e metafórico.

Prisioneiros de um destino sem sentido, de aparência frágil, equilibrados sobre tantos momentos de estranheza, seria aconselhável que nos orgulhássemos dos poetas, a cada um os seus, e os maiores, de todos nós.

Luís Vaz de Camões é a figura que, imortalizada, rompeu os séculos e legou uma gramática elevada de vivências e sentidos. É também uma voz necessária, cultor e produtor de uma língua que é a quinta, como língua nativa; e a sexta como língua nativa e segunda língua entre as mais afamadas do mundo (encontrando-se em expansão). É também uma língua de partilha e de acolhimento, e da pacificação – até porque a poesia impõe o retraimento do mundo do conflito, dando-lhe alternativas essenciais de emoção.

Helder Macedo ao escrever sobre Camões (Macedo, 2018), fala do imaginário da malandragem, e a língua portuguesa alberga muitos bons malandros, é sabido. Essa afirmação permite-nos refletir que poucos são os autores que dedicam com profundidade e demora as suas obras aos meliantes, aos Zés Pelintras desta vida. Nos romances contemporâneos há certamente Arturo Perez-Reverte e o seu Capitão Alatriste, em aventuras de capa e espada, que nos retornam aos Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas (Pai), ou ao imbatível malandro doce, Don Quixote de La Mancha que combate moinhos de vento na companhia do seu fiel escudeiro, Sancho Pança, realista e sério em todos os contrastes. Quixote terá inspirado (a partir de 1919) o norte-americano Johnston McCulley, a criar a figura de Zorro, um justiceiro que à falta do cenário tórrido e diversificado, das regiões de Mancha, Aragão e Catalunha, inspiradoras de aventuras incomparáveis, aproveitava as obras estabelecidas no Pueblo de Los Angeles durante a era da Califórnia espanhola.

Dos mais sérios autores a abordar esse filão excecional da malandragem, não esqueçamos Eric Hobsbawm, historiador pródigo, inglês de origem judaica, marxista, nascido em Alexandria. Foi um dos mais importantes estudiosos britânicos da história social do século XX. Incluiu nas suas reflexões os movimentos rebeldes, como é o caso do seu Bandidos (Hobsbawm, 2024).

Camões tem em comum com Cervantes, pelo menos o facto de ter sido contemplado pelo mecenato dos poderosos (de fidalgos da corte a cabeças coroadas). Não deixou de pelejar, de se envolver em delitos mais ou menos gravosos, de ser preso, condenado e expulso de Portugal, para cumprir penas, muitas vezes aligeiradas pelas circunstâncias e pelo acaso, em vários pontos do globo. Foi essa diáspora, mesmo que involuntárias, que lhe consagrou capacidades testemunhais do mundo e do vivido. Assistiu a naufrágios, combateu em batalhas duras, conheceu riqueza e pobreza, sensualidade, erotismo, amor e morte. Por mais lendário, o que nos lega é sempre muito ilustrado e arrebatador. Não queremos dizer com isto que seja fácil, nos nossos dias, ler os seus originais, pois o tempo passa e reformula a forma como se escreve, mas também como se pensa, sente, age, reage, herda ou nega o que nos é legado. Mas sentimos como é universal o domínio da lenda camoniana: Luís Vaz, bem-apessoado, feições corretas, corpo meão, mas ginasticado, barba ruiva e palavra muito solta e doce, de temperamento ágil e nem sempre de temperança, bom espadachim, culto e atraente de físico, cultura e atos, terá promovido rixas, motivado paixões, corrido no fio frágil que separa o senso comum do bom comportamento e a receção final em alcova interdita. Camões mulherengo, patife, brigão, ladrão até, incapaz de gerir o seu próprio pecúlio e esfaimado pela magnificência alheia, é um desses malandros que apetece revisitar intelectualmente uma e outra vez.

Outra das atrações que nos leva ao poeta Luís Vaz é o nevoeiro extenso que se encobre: não temos a certeza da data do seu nascimento, pelo que podemos andar todos a comemorar erradamente 2024 como seu 500º aniversário; não sabemos ao certo em que cidade (ou vila, ou mesmo aldeia) nasceu, somando-se reivindicações pouco fundamentadas; não sabemos porque há uma gruta em Macau com o seu nome onde, reza a tradição do imaginário, o poeta se recolhia (sem razão aparente) para escrever. A esta lista podíamos somar algumas linhas, adensando as brumas de uma memória por desbravar. O que lhe agradecemos, apesar disso e por isso mesmo, é a forma única com que nos trouxe uma obra universal, de pendor global, capaz de percorrer as partidas do mundo, dando a esse mundo novas razões para refletir e disfrutar.

Hesitamos ao ler Terry Eagleton, precursor dos Cultural Studies, quando por contradição (é sempre salutar, o contraditório), tenta ser categórico e afirma que “generalizar o significado de um poema não significa tratar o poema como uma alegoria da verdade universal”. Damos connosco a pensar que, felizmente, as exceções estão nos grandes poetas, nos grandes escritores, naqueles que mergulham fundo em si mesmos e depois em nós e que trazem o que dentro dos outros encontraram de mais profundo, arrebatador, estremecido e aterrorizante, certas vezes (ocorre-nos neste ponto as viagens ao interior do seu humano, em rotas e roteiros despiedados e totais, de escritores como António Lobo Antunes, que lê cérebros e sentimentos, para lá da forma como um leitor comum o faz a livros e mensagens).

Tomamos as análises dos textos que lemos procurando uma fórmula matricial. Três vértices nessa fórmula: o que terão de imaginário, os textos lidos; o que remetem para a realidade; que simbologias extraem e nos permitem extrair.

Camões ajuda-nos espontaneamente: fluente como o rio, audível como o ar que atravessa o tronco oco da flauta e solta, de novo ao ar, aquilo que sente; a galeria de símbolos que empilha, uma Babel, que nos conduz ao alto e ao intenso.

 

Latinos globais

 

Fomos confrontados, ao longo da recolha de referências para este artigo apressado, este quase ensaio, com inesperadas referências do leste europeu, normalmente tão pouco analisadas pelos investigadores de língua portuguesa. Isso levou-nos à tentação de escolher um título que chamasse a atenção e elevasse o ego: os latinos, os denominadores comuns das línguas de marca latina, nós que nos reunimos à sombra de Camões, fomos os responsáveis pela proximidade entre os povos, coisa muito mais distinta e integradora que o fantasma poderoso de Descobrimentos ou de Expansões, hoje entendidos na cartografia de época e equilibrados nas heranças que procuramos partilhar pacífica e inteligentemente. As leituras de Camões percebem uma época singular, um conjunto de inovações do mundo que pretendia politicamente o que os povos não precisavam sensatamente. Mas a poesia em que a história – e sobretudo a ilusão e a utopia – é contada, permitem escutar a passagem de rios de comunicação, de miscigenação e afeto, como se o som da flauta encantada nos mostrasse que os humanos são muito mais do que as suas diferenças.

Do fim da Europa, pouco antes de chegar à Moldávia ou à Eurásia, trouxemos alguns apontamentos de um historiador romeno, Nicolae Iorga, e um ensaio incomparável de Mircea Eliade, homem que se dedicou ao estudo das religiões, mas que escreveu sedutoramente sobre Camões. Eliade, apesar de escrever e falar fluentemente em oito línguas, escreveu a sua obra em romeno, a sua língua natal.

De Iorga fica aqui a nota de um livro intenso: O País Latino mais afastado na Europa: Portugal, Bucareste. (Iorga, 1928), referido por Mircea Eliade no Volume I do seu Diário.

Mircea Eliade foi adido cultural em Portugal durante a Grande Guerra. Dele não teremos grandes vestígios ou evocações, a casa onde viveu em Cascais tinha até há pouco tempo uma placa evocativa – na Rua da Saudade, n.º 13; que bela e única palavra é essa, Saudade! – e é estudado, por vezes timidamente nos cursos dedicados às Ciências das Religiões.

A nossa cultura é devedora, porém, aos intelectuais romenos, de Iorga, a Eliade, ou aos membros da família Buescu, com Victor Buescu como patriarca e Maria Helena Carvalhão Buescu, sua mulher, como matriarca – que tantas reflexões fizeram e fazem no nosso país, tornado seu, legando vasta obra académica de interesse inegável.

Dizemos no título deste artigo que os latinos inventaram o mundo global. Os romanos, é claro, com o seu Império, Constantino com a cristianização do mesmo e dos povos colonizados e submetidos ao poder de Roma, os intelectuais, como Camões ou Eminescu que ultrapassaram as características redutoras de uma cultura local (os locais em questão: Portugal e a Roménia), produzindo o Universal, o Global, a comunhão de uma raça única – a raça humana.

Aqueles que se reconhecem na alteridade, no humanismo que a caracteriza, que vivem na certeza da comunhão com o Outro, são seres de renascença, sobrevivem aos naufrágios históricos, regressam das águas convulsas do Mekong em fúria, assobiando na margem como uma flauta capaz de ler a pauta de melodias universais.

Mircea Eliada afirma que Camões trouxe para a cultura universal uma coisa nova: “a transformação em valores universais das geografias e das experiências anteriormente consideradas bárbaras e sem nenhum significado superior” (Eliade, 1997). É, segundo Mircea Eliade, uma revolução no seu sentido estético e moral.

Eliade compara Camões ao poeta romeno Mihai Eminescu (1850-1889), que rotula como “um dos maiores génios líricos da latinidade”. E escreve: “Tal como Camões, Eminescu explorou uma vasta e selvagem terra incógnita e transformou em valores espirituais experiências anteriormente consideradas como desprovidas de significado” (Eliade, 1997):

Até onde vai, não há limites,

nem olhos para conhecer

e o tempo intenta, sempre em vão,

desses vazios renascer.

Mihai Eminescu, Vésper. (Fragmento).

 

Em ambos se escuta – flauta e rio – o triunfo da interculturalidade, pois a poesia tem esse encanto nos seus recantos do sentir, no que estimula e no que produz.

Deixamos este breve ensaio. Voltaremos ao tema, sempre que nos for possível. Em especial porque, acreditando em Mircea Eliade: “o universo mental da latinidade é um universo em expansão, em perpétua transformação”. Como o ser humano, esperamos.

 

Referências bibliográficas

 

EAGLETON, Terry. Como ler um poema. Lisboa: Edições 70, 2024.

ELIADE, Mircea. Camões e Eminescu. Bucareste: Embaixada de Portugal em Bucareste, 1997.

ELIADE, Mircea. Diário Português. Lisboa: Guerra e Paz, 2008.

GIL, José. Morte e Democracia. Lisboa: Relógio d´Água, 2023.

HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Lisboa: Antígona, 2024.

HONRADO, Alexandre. José́ Tolentino Mendonça – Da espiritualidade como ato poético. Lisboa: Universidade Lusófona, 2018.

IORGA, Nicolae. O País Latino mais afastado na Europa: Portugal, Bucareste, 1928.

KUNDERA, Milan. Um Encontro. Alfragide: D. Quixote, 2011.

MACEDO, Helder.  Camões e outros contemporâneos. Edições Presença, 2024.

MORIN, Edgar. Terra-Pátria. Porto Alegre: Editora Sulina, 2003.

RITA, Annabela. Lusofonia e Literatura: haverá́ cânone(s) lusófono (s)?, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2015.

SERRES, Michel. A Grande Narrativa do Humanismo – a história da Humanidade: um conto iniciático. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.

STEINER, George. A Poesia do Pensamento – do Helenismo a Celan. Relógio d´Água, 2012.

 

[1] Alain (1953). Commentaire sur “La Jeune Parc”, Antiqua Libros.