MARIA ESTELA GUEDES
Foto de M. Céu Costa
O vazio de um céu sem hinos é o primeiro livro do jovem escritor moçambicano, David Bene. O título corresponde a um verso de Wallace Stevens e a estrofe completa é a primeira informação que nos aparece, em epígrafe, com tradução em rodapé:
Para nós, a terra é nua e plana.
Não há sombras. A poesia
Mais do que a música há de ocupar
O vazio de um céu sem hinos.
“A terra é plana”, diz o poeta norte-americano, evocando algum alquimista de tempos remotos. Mas quem o repete é um autor nascido mais de um século depois, adulto numa época em que grassa o fascismo, com as suas tiradas anti-científicas, caso do que acontece no Brasil, país onde neste momento viçam os chamados terraplanistas. David Bene é um autor muito motivado pela questão social e política, doutorado em áreas científicas que justamente estudam a Terra, Gea ou Gaia, por isso, sem necessidade de invocar o seu diploma de geólogo, só podemos entender a citação terraplanista de dois modos: como poesia que parte da observação empírica, e como apelo a que se leiam os poemas de um ponto de vista crítico. Na verdade, O vazio de um céu sem hinos, que já no título traz música, contrasta com a mais usual alegria africana, apresentando-se antes como consciência trágica. Daí referências a David Bowie, no seu último álbum, despedida de alguém que vai morrer, mas se sente ressurreto. Lazarus é o vocábulo que aparece num dos poemas, mas é claro que além do milagre de Jesus, também temos a arte pop dos nossos dias, aquela música que, noutros lugares do livro, nos interpela, o que nos leva não só para David Bowie como para Leonard Cohen. Não é de estranhar que a música acompanhe a poesia dos seus próprios dias e inversamente.
a casa cheia dos nossos mortos
de gente e de ossos
ou de ideias mortas
e o não corredor empresta a boca
I AM LAZARUS, COME FROM THE DEAD
e vale a certeza de ser só e dormir
sob o teto entediado do lençol
como o nome dos ângulos da casa
Moçambique tem sido um país em sofrimento há talvez demasiado tempo. Aqui e ali referem-se factos disfóricos da História africana, por parte de um David Bene muito sensível às tragédias, não só de grande porte, como pequenas e que incidem sobre os pequenos. Daí o aparecimento da música final de Leonard Cohen, You want It darker, na qual o cantor se declara à disposição de Deus: “Hineni hineni, /Eis-me aqui, Senhor”.
Hineni, hineni
Elevo-me e os teus calcanhares
São através desta coluna
E os teus sentidos o barulho
O vácuo e a coisa insalubre
O olho da água a ver
Antes de tudo e do mistério
“Hineni, hineni, I’m ready my Lord”, diz Leonard Cohen. O livro de David Bene também se aparenta com uma liturgia, muito motivado por livros e canções sombrios, de espera da morte, e também, acredito, pela esperança na ressurreição. A expressão de disponibilidade “Hineni, hineni”, “Eis-me aqui”, em hebraico, desenvolve-se no poema VII da parte “Antes deste e de todos mistérios”:
Eis-me aqui
entre a argila e o inseto
a dois dedos da prosa
ou da língua e da coruja
sem mácula nem gravidade
A morte atravessa o livro que clama não haver hinos no céu. Mortos como o Fernando, cito:
Nem Aquiles tinha um calcanhar flutuante
abre os teus olhos, madame,
e vê aquele corpo nu
É o Fernando filho da dona Rosa
Conheço-o
Uma bala no crânio deu-lhe asas
boa noite, Fernando
adeus, Fernando
as asas nos calcanhares não lhe serviram de nada
A morte atormenta o espírito do poeta. Moçambique tem sido um país coletivamente sacrificado nas últimas décadas com a guerra da independência, a guerra civil, fome, grandes inundações e as não menos grandes catástrofes de cada um, em consequência direta ou indireta dos males gerais. Algo que exige do povo uma luta homérica, o que leva o poeta a apelar para personagens como Tirésias, Aquiles e outras.
O poeta carrega às costas a memória dos seus mortos. Mortos na estrada, mortos pelo fogo, mortos pela velhice, mortos. Mortos nos braços da destinatária dos poemas, visto que o tom geral deles é de diálogo com Madame. Esta senhora fica sob o manto do mistério, porém não será risco de maior associá-la a uma outra, a do livro Bonsoir, Madame, de Manuel de Castro, em que Madame é a Morte. Se não se ouvem hinos no céu, digamos que os poemas são a música da terra, em louvor dos mortos, como acontece no poema que refere uma canção de Flavour em memória de MC Loph, o rapper nigeriano morto num acidente de estrada, no Benim, e que parece ter chocado muito o poeta:
Iwe, acorda
Sim, não durmas acorda
Sabes o que acontece quando dormes
mete-se a sombra em fuga
David Bene aparece num ponto de fusão de múltiplas culturas e línguas, como um bem sucedido híbrido na evolução da própria Literatura. Pontualmente poliglota, de preferência afro-europeu, também não deve faltar ao poeta uma pincelada de cultura asiática, já que fez doutoramento em Geologia no Japão. À falta de fundamentação mais empírica, remetamos para o poema curto japonês – haiku, tanka e shi – os poemas curtos de David Bene. Vejamos o primeiro da parte intitulada “Engole a flor do fogo”, no qual se chama à colação a cantora Raye, com a canção “Please, don’t touch that”. Não toques em quê? Em geral não queremos que nos toquem nas feridas.
A razão da miséria
Experimenta tudo
Please, don’t touch that e a coisa anda
como o cume da labareda
ou a criança a engolir a flor do fogo
pelo Calaári no inverno
a esmurrar a pluma
e a velhice a rebentar em broto
Num livro que lida de perto com o sagrado, citando diversas vezes a Bíblia, não é de estranhar que também se mencione o Profeta. É natural que uma importante referência espiritual de David Bene seja o islamismo, segunda religião em Moçambique. O poeta empreende uma peregrinação interior em territórios tradicionalmente ligados às religiões de tronco semita, os desertos, povoados por relatos e personagens comuns. É insistente a metáfora dos pés no chão, calçados com sandálias ou descalços, e do perigoso caminho a percorrer. Existe até um poema que alude ao misterioso “caminho de um só pé”, o que tanto evoca certos rituais de iniciação como a tragédia das mutilações causadas pelas minas não detonadas durante a guerra.
“Que ninguém durma” referência a Turandot, eis outra linha de indagação num livro muito rico do ponto de vista semântico e temático, que ninguém durma, pois as estrelas brilham no céu e é preciso alcançá-las com as mãos feitas de esperança. Sem hinos o céu, escreve o poeta, mas tudo canta na terra, numa evidência de que a música atravessa o livro de David Bene e é uma fonte de variada e por isso rica inspiração.
Eis a nova
morrerá a pleurite
e então falará o tempo
DILEGUA, O NOTTE!
TRAMONTATE, STELLE!
abraça-me forte, madame
os corpos chovem
plantemos pedras sobre a língua
DAVID BENE
O vazio de um céu sem hinos
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 2022
Prémio Vasco Graça Moura