CARLOS JORGE FIGUEIREDO JORGE
Carlos Jorge Figueiredo Jorge (Portugal). Departamento de Linguística e Literatura da Universidade de Évora
“Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!”
Sentimento de um Ocidental / Horas Mortas / Cesário Verde
Kin-Fo era um jovem chinês que possuía tudo para ser feliz. Uma reviravolta acontece, o chinês perde sua fortuna e faz o seu amigo, o filósofo Wang, prometer que o matará. Entregando-lhe, acto contínuo, uma carta que o isenta de culpa. Kin-Fo descobre-se rico novamente e desiste de morrer. Agora é que começam as Atribulações d(e um)o chinês na China, para anular o mecanismo posto a funcionar, o qual visava dar assistência à vontade suicida do herói, o que dá origem a peripécias que Jules Verne conta no seu romance. A China era, no século XIX, o palco ideal para colocar as problemáticas da responsabilidade de matar-se (num verdadeiro suicídio por assistência altruísta de um amigo), ou de matar, como faz o Teodoro de Eça, no seu Mandarim, assassinando um “Mandarim do fundo da China”, “decrépito”, “gotoso”, “mais inútil em Pequim e na humanidade, que um seixo na boca de um cão faminto”, acto que soa a verdadeira boa morte, ou eutanásia. Sendo a chinesa uma civilização evoluída, podia ser glosa alegórica da nossa, aparecendo, ao mesmo tempo, exótica, do mesmo modo que a sociedade “Persa/Turca,” tinha sido para os philosophes do século XVIII: podiam-se colocar, nelas, questões que eram perigosas aporias para os nossos sistemas de valores, nomeadamente os das ideologias religiosas, através narrativas exemplares, aonde nos reflectíamos, fingindo que as imagens eram “outros” e não “nós”.
Se recuarmos mais, nas histórias que herdámos como cultura, vemos que o tema nunca foi pacífico. Mesmo quando implicou o corolário do sofrimento. A imolação de Cristo não foi sem dor e, quanto a esse aspecto, o filme de Mel Gibson é bem interessante, e mesmo um passo em e frente na hermenêutica relativa à matéria em causa. E isso porque também é de tomar muito a sério, e com muita atenção, o rumor religioso: os católicos ou outros cristãos, sempre que falam da morte e do sofrimento, quando são honestos prosélitos, e não ex-presidentes ressabiados e ameaçadores; como os corânicos de múltiplas facções, ou os hinduístas quando se revelam verdadeiros crentes. É preciso reconhecer que a grande ciência da morte sempre foi sistematizada pelas religiões e, por isso, devem ser respeitadas como aguçadas ideologias relativas ao finamento, organizadas por expertos.
De modo similar, as religiões menos dependentes dos deuses, ou de um deus singular e omnipotente, têm a morte como grande matéria escatológica no seu ideário, com porta-vozes extremamente oraculares, como Zaroastro ou Buda, que não cessam de lembrar o fim último que é a dissolução da vida, preparando-a durante a existência por modelos de comportamentos regulares e apaziguantes. E, mesmo quando a filosofia começou a modular, com menos intervenção das potestades, um discurso sobre a vida e o seu fim, a figuração da morte esteve sempre presente como lugar das penas últimas, o estado de incompreensão a evitar, ou cujos efeitos deviam ser minimizados. É preciso não esquecer que Swedenborg é contemporâneo dos gigantes do pensamento no século das luzes.
Mas, paralelamente às crenças organizadas em torno da escatologia e dos poderes organizados que a regulam, a fuga à morte ou o modo de com ela lidar nos vórtices da angústia da passagem da vida para lá, tornou-se, desde os primórdios das culturas evoluídas, o profundo palpitar de um sentimento que, da religiosidade resignada deslizou para o canto poético. O seu represente mítico, Orfeu, foi capaz de descer aos infernos e de lá regressar e tentar arrastar a amada pelo poder dos cantos.
Porque é na lírica que a apóstrofe, de um além profeticamente postulado, ou saudosamente evocado, faz ecoar os acordes dos seu termos: “Se lá no assento Etéreo, onde subiste, / Memória desta vida se consente”, tal como diz Camões, é, no fundo, eternizar o espanto, o fascínio que, como diria Freud, tanatos nos merece depois de eros, e postular a incógnita de dimensão cósmica: “¿oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?: escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas linhas” lembra-nos, em Servidões, Herberto Helder.
Acho que a decisão de morrer, ou de ajudar a morrer, dar uma morte necessária ou merecida, é muito da esfera pessoal – intensa, se a tornarmos metafísica:
“Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!”
diz-nos Pessoa.
Em consonância com ele, outros, seus quase contemporâneos, de Heidegger a Sartre passando por Camus, ecoam, em Vergílio Ferreira, por exemplo, o pensar-se para a morte ou o absurdo desta. No seu conjunto a morte é vista como absurda e sem-sentido mas, também, como aquilo que, enquanto fundamento estruturante da existência, dá ao homem o estímulo de se revoltar contra sua própria condição, porque, justamente, é o irracional e o absurdo que impele o homem para a criação de sentidos para a existência[1].
E outros dirão, em sintonia com Ray Bradbury, que “a morte é um acto solitário”, e que o Estado deve ter muito pouco a ver com isso. E, de facto, todas as intervenções que estados, dos mais autoritários aos mais democráticos, tomaram, sobre a morte, não colocam, no meu horizonte, nenhuma garantia, ou confiança, sobre novas leis que das estruturas do poder possam emanar, como legislação, sobre a morte. Esquecendo as decisões das sociedades ditas arcaicas, sobre o abandono ou o piedoso “terminar” dos velhos, ou mesmo a boa morte que na Esparta antiga era dada às crianças nascidas com defeito físico, só conheço, como leis relativas à intervenção dos órgãos estatais, ou a ele apensos, nas execuções letais, a pena de morte, o castigo dos hereges e relapsos, exterminados pelo “braço secular” em piedosa anuência, a purificação étnica praticada pelos nazis e as declarações de guerra. A eutanásia ou a morte solicitada e assistida, segundo as propostas de lei nos estados democráticos modernos, ainda não deu provas de grande excelência. Em contrapartida, tenho todas as reservas acerca das legislações sobre a morte legal, num universo de valores em que o Estado de Israel é reconhecido como estado democrático, mesmo quando justifica o abate indiscriminado de palestinianos por não ter prisões que chegassem para todos os insurrectos que bramavam e protestavam, no interior do território de Gaza, contra as grades que os cercavam.
Muita gente ainda argumenta que, no caso de certas situações terminais, só se está a gastar dinheiro dos contribuintes, mantendo essas pessoas vivas. Outros, cegos pela aceitação acrítica das crenças, acham, a simples ideia de interferir no progresso natural da doença, um crime. Não são poucos, também, os que entendem que pôr termo a um sofrimento, é um acto de piedade…mas logo nos fica sugerido que é difícil estabelecer os limites que justifiquem o golpe de misericórdia. Há crenças, variações dentro das próprias unidades eclesiásticas, que induzem os crentes a recusar que outro sangue se misture com o seu, proscrevendo, rigorosamente, a transfusão. Devem tais argumentos, convicções e crenças ser respeitados e inscritos no manual regulador da lei sobre a legalização da eutanásia e do suicídio? Se foi difícil regular os termos da interrupção voluntária da gravidez, que não tem as labirínticas dificuldades que apresenta a da interrupção voluntária da vida em doentes e sofredores, como vai sair a lei, para estes casos? Quais poderão ser os termos correctos para pôr em referendo?
Os doentes altamente deprimidos poderão ser ouvidos em pé de igualdade com doentes de estirpe mais fisiológica? Um adolescente que não goste do sexo que tem mas também não sabe se quer ser do outro, pode pedir a interrupção da própria vida por se sentir angustiado? Terá algum peso casuístico, nesta matéria, a ideia de que os adolescentes, para já não falar nas crianças, “não sabem o que querem” ou “não têm mesmo quereres”? E a morte das crianças em mau estado, poderá ser ditado por quem? Haverá jurisprudência para tal questão, e juízes especializados?
Todas estas questões são um pouco aporéticas e o seus termos até poderiam parecer jocosos, se não houvesse, nas democracias ocidentais, uma opinião generalizada entre uma intelligentzia saudável e activa, com uma ilustração que nem sempre é intelectual ou profunda mas é informada e esclarecida, a defender a pertinência de legislarmos sobre as acções letais consentíveis. Mas todos sabemos, e essa intelligentsia, de que eu procuro não fazer parte, também o sabe, que o terreno é movediço e perigoso. A abrangência, o alcance, a envergadura, ou qualquer coisa desse género, dessa lei, pode aumentar por uma razão de estado, ou de patriotismo, ou de zelo pelas instituições, ou por austeridade…É que estamos a falar de morte num mundo que, em várias dimensões, tem respeitado pouco o direito à vida.
Certas opiniões acrescentarão que, anterior à preocupação com a morte boa ou suave, deve estar a preocupação com a vida, a qualidade e prolongamento desta até aos limites do possível. Isto pensam os comunistas portugueses, e eu penso isto com eles, porque gramo à brava a vida, mesmo com algum sofrimento e nem sei, se alguma vez me quiser matar, me quererei, de facto, matar. Não é necessário, em meu entender, qualquer autorização para o fazer. Acho que nenhuma lei deve regular a minha morte, a minha alegria, o meu prazer ou o meu sofrimento, porque está inteiramente na minha mão, em nome de tudo isso, dar a vida. De algum modo, a eutanásia ou a morte assistida afiguram-se-me muito dificilmente reguláveis. E acho que, no limite, devem ser desobediências, como o carnaval, como as grandes manifestações de alegria e liberdade. E, por isso, cada um de nós deve ser capaz de assumir as responsabilidades das suas idiossincrasias e das suas rebeliões.
Não penso que as propostas de lei que foram à assembleia sejam defeituosas ou exageradas. Quanto a este ponto concordo inteiramente com a posição de Daniel Oliveira publicado no Expresso Diário, do qual tomei conhecimento através da estatuadesal. Tais propostas são, talvez, prematuras, num país que ainda tem tanto a resolver na valorização da vida e do bem-estar dos seus cidadãos. É notório, igualmente, que o assunto não foi suficientemente debatido e aprofundado de modo amplo, entre os cidadãos. Pessoalmente acho que este é um tema que, antes de ser proposta de lei, deveria ser levado a um referendo. Talvez no resultado se fizesse sentir o “sentimento” mais generalizado entre o povo português.
CJFJ
[1] Uma síntese simples, correcta e esclarecedora desta matéria cujo conteúdo ocupou uma boa parte dos grandes debates filosóficos, ideológicos e políticos, do século XX, encontra-se no endereço que se segue consultado em 2 de Junho de 2018
http://www.eternoretorno.com/sartre-e-heidegger-sobre-a-morte/