MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov
“Melancolia tropical ou a ilha que perdeu o Equador”, de Daniel Blaufuks, é uma exposição de artes plásticas que abre o Festival Literário Textemunhos, no Museu de Lamego. Um tríptico fotográfico de grandes dimensões ocupa uma das paredes da sala, no restante espaço figura uma centena obras criadas com objetos vários e técnicas mistas, nas quais a fotografia em formato Polaroid desempenha a função de atrair imediatamente o olhar. A seguir, o principal objeto da composição é o manuscrito, em estilo de grafito, redigido com marcadores, alguns deles dourado ou prateado, o que me trouxe imediatamente à memória os postais ilustrados executados sobre fotografia e manuscritos com esse tipo de marcador que o Ernesto de Sousa tanto gostava de criar, para mandar pelo correio a amigos e para exposições de arte postal. No meu caso, respondia do mesmo modo, sendo assim convocada para a roda de artistas da mail art. O Ernesto de Sousa, que muita atividade exerceu como crítico de artes plásticas, estimava o Daniel Blaufuks e tinha-o na conta de promessa valiosa, aí por meados dos anos 80. Daí que o tivesse convidado a participar numa iniciativa do grupo VVV (triplo V: o grupo era constituído por ele, Ernesto de Sousa, pelo Fernando Camecelha e por mim), as caixas Pipxou, estreadas salvo erro em 1987 no Museu das Janelas Verdes. Daniel Blaufuks participou, em regime de co-autoria com Marta Wengorovius, sob o nome de “Fuga Proxidente”. É um desenho a carvão, cheio de figuras esfumadas, de tamanho mínimo, dentro de envelopezinho, perfeitamente irmanado com as colagens da exposição no Museu de Lamego, apesar de estas parecerem A4. Anoto o pormenor por me parecer que Daniel Blaufuks associa dois estilos bem diferentes, que reclamam categoria especial, perdoem a ousadia de a classificar como barroco-minimalista.
Outros elementos colados na página são selos do tempo colonial, ou partes de plantas, o que revela interesse do artista não só pela flora de São Tomé como pela Botânica, pois algumas delas quase parecem páginas de herbário. Conversando com a audiência, na inauguração, Daniel Blaufuks revelou que, para ele, esse tipo de colagens são algo como um diário, todos os dias ele cria uma.
O mais importante da exposição, porém, não são os materiais nem as técnicas, sim a preocupação social que norteou o autor, ao ter permanecido um ano, creio, nas ilhas do Golfo da Guiné, que eram, ao tempo da colonização portuguesa, São Tomé, Príncipe, Ano Bom e ilhéu das Rolas. Hoje, Ano Bom faz parte de outro país, a Guiné Equatorial, e mudou de nome: chama-se agora Pagalu. Quanto ao ilhéu das Rolas, conhecido por ser atravessado pela linha do Equador, mencionada por Daniel Blaufuks, merece uma nota: essa linha foi corrigida por Gago Coutinho, mas parece que o geógrafo e oficial da Marinha Portuguesa não conseguiu corrigir o princípio da melancolia que afetou o artista plástico e cineasta, Daniel Blaufuks. Com efeito, interpelado sobre um arquipélago que não conheço de visita, sim de investigação de documentos relativos a Francisco Newton, naturalista que explorou a ilhas do ponto de vista da História Natural (algumas espécies ganharam por isso o seu nome, como Lanius newtoni, entre as Aves), interpelado, dizia, sobre se tinha gostado de viver em São Tomé, Daniel Blaufuks respondeu que sim, mas que as ilhas eram melancólicas, devido à situação geográfica: sempre a mesma média de temperatura, 28º, raros dias de sol, o céu quase sempre nublado, muita chuva e as mesmas doenças de séculos passados, a mais comum e mortífera delas o paludismo, ou malária. Daí que num dos quadros, em manuscrito, apareçam os títulos: “Isto é o Paraíso – Isto não é o Paraíso”.
O resultado da exploração das ilhas, já não por um naturalista da ciência, sim por um amante da Natureza, um artista, não é só o que o olhar contempla, no Museu de Lamego. Envolvido na beleza das imagens, retrata-se um grande esforço no trabalho de compreender a história, a sociedade, as produções naturais, entre as quis avulta o cacau, os males e as venturas de um povo numa ilha quase desabitada (quando os navegantes portugueses a descobriram, havia ali apenas um punhado de angolares) e que muito sofreu, ao longo de séculos, desde a chegada de duas mil crianças judias exportadas pela Inquisição espanhola, das quais restavam setecentas meses depois, passando pela escravatura, pela exploração do colonialismo, até à fundação de um país independente, São Tomé e Príncipe.
Muito há a superar e a conquistar ainda num país com tanta falta, por exemplo de vias e meios de transporte, mas o que sinceramente mais lamento é que o paludismo continue a matar. Dizia Francisco Newton, em finais do século XIX, que, quando os habitantes das ilhas regressavam de férias na metrópole, encontravam a população toda mudada, novas caras ocupavam o lugar das que a morte entretanto levara.
Muito boa exposição, que não será só de imagens, havia que ler a parte escrita dos quadros, pois essa é o diário da investigação, o elo que liga as várias matérias numa obra que se quis global: elo entre artes, letras e ciências.
12 de Outubro de 2023 |