ANTÍMIO DAMIÃO
Antímio Vieira Damião (Portugal). Designer / Autor / Estudante de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa.
Tanto mais que ser ou existir, importa, sobretudo, sentir. O sentir, aliado por sua vez ao pensamento, dá a entender, cabal ou convenientemente, o mundo ao sujeito e a essência do ser humano. Nada nos é indiferente contanto sintamos. Já pensar um sentimento fica aquém da completude supracitada, ou seja, pensar um sentimento não é o mesmo que senti-lo. As variantes de reacção e aceitação entre pensar e sentir diferem. Por outro lado, fingir sentimentos é talento ou invulgaridade – ou talvez ambos. De resto, as coisas são o que são e o que têm de ser. Do mesmo modo, tudo acaba quando menos esperamos ou, supostamente, no sítio e no momento exactos. O tempo, de mais ou de menos, encarrega-se de despachar a encomenda da vida. Por outro lado, de que serve a sabedoria ou o autoconhecimento quando há quem prefira saber da vida dos outros? O possuidor acaba possuído pelo que possui. As posses passam a ser a sua extensão, o seu cunho, bem como a impressão que os outros têm dele. Possuir é preencher a existência com uma ideia de liberdade que o possuidor espera vir a viver por intermédio do ter, mas que, na verdade, nunca será cumprida, pois a realidade apresentada pelo mundo nunca reúne as condições e pretensões idealizadas pelo ser que deseja. De resto, um homem vive no covil que se obriga a construir. Com efeito, a maioria dos seres humanos só está bem em casa, onde tudo se ajusta à sua vontade. Contudo, se o sujeito se isolar ou enclausurar em demasia, perde-se em e a si mesmo no mundo. A haver lar, este define-se no âmbito do espírito e não do corpo. Ao contrário daquele, o corpo é prova inequívoca da finitude psicofísica do sujeito.
Com efeito, durante os verdes anos, a criança não tem controlo absoluto sobre o corpo e desconhece a irreversibilidade do processo de envelhecimento, o que faz com que cada dia seja vivido como se fosse o primeiro e o tempo não sobre para tudo o que se quer fazer. Em suma, a infância troca as voltas ao tempo, o qual, por essa altura, adquire um carácter subjectivo. O mundo infantil preenche-se de mistérios que a criança ignora ou se escusa a descobrir, pois, em primeiro lugar, ela aceita as coisas tal como são e, em segundo, só as questiona quando a incomodam de alguma forma. A criança, até determinada idade, receia ultrapassar a porta de casa, na medida em que os seus tutores lha estabelecem como fronteira última entre a familiaridade doméstica e o grande exterior desconhecido. Porém, ao crescer, a criança sente necessidade de ampliar horizontes e acumular estímulos, de vencer o medo e sair ousadamente e amiúde do seu “porto de abrigo”. Já o adulto, conhecedor empírico e supostamente consciente da realidade ontológica, força, por assim dizer, o aparecimento de novos prazeres por forma a recriar o fascínio das primeiras experiências e descobertas da vida. Para tal, acha-se na necessidade de fazer e ter sempre algo com que se entreter. Ao mesmo tempo, é obrigado a estar na vida e a vivê-la como tal. Quando já não é capaz de a suportar, ou reinventa-se ou autodestrói-se, desiludido com a compreensão do seu fim aporético e com a ideia frustrante de que o mundo continuará indiferente à sua morte. Por outro lado, o sujeito pode rejeitar e distorcer a realidade a seu bel-prazer, na medida em que pode alhear-se ou fechar-se em si mesmo, passando a agir desfasadamente da realidade objectiva, alterando, para isso, a disposição ou o sentido disposicional de si mesmo no mundo. Grosso modo, o sujeito, neste caso, expulsa-se a si mesmo da vida e espalha uma sombra sobre a sua lucidez, acabando por colocar em causa a sua identidade. A pergunta, aqui, é inevitável: quem é ele, afinal? Em que difere a individualidade do sujeito da sua condição primordial de ser sociável?
A maior loucura não será, portanto, a clinicamente diagnosticada, mas a encenação consciente da mesma, ou seja, a do são que se faz passar por louco, que percebe a demência e a forja conscientemente. Não se trata aqui de aperfeiçoar um logro ao ponto de este se tornar indistinguível da verdade, mas de convencer tudo e todos, incluso o próprio impostor, de que a personalidade encenada é de facto a sua própria verdade de ser. Com efeito, quando a mentira é assaz convincente ganha um teor consensual e indistinguível da verdade. Ora, o sujeito-actor desta encenação pode, assim, perder a noção da farsa que encena, de sorte a esquecer quem realmente é, embora julgue que ninguém é melhor que ele em saber nada de si mesmo. Em última análise, finge-se outro para evitar a crueldade e a boçalidade do real, isto é, encarna um papel ou, segundo Jung, cria uma persona que se apresenta aos outros como autêntica sem o ser na totalidade. Por outro lado, tal prática pode funcionar como mecanismo de autodefesa perante as agruras que tempo e mundo provocam no percurso vital do sujeito. O declínio que os conteúdos do tempo e do espaço imprimem ao vigor, à beleza e à pureza do corpo e do espírito faz com que o Homem entenda que deve privilegiar o juízo e a sabedoria em detrimento da manutenção obsessiva dos seus atributos físicos. Muitas vezes, o sujeito adulto carrega consigo um fardo egotista de que não consegue livrar-se e ao qual não consegue atribuir alívio ou lida. Para contrariar este mal-estar, temos a sensação de que a vida nos reserva ou reservará algo de notável, embora desconheçamos qualquer prova ou fundamento inequívoco de tal prognóstico. Esta inferência faz do Homem como que uma espécie de autómato talhado ou pré-programado para o processo vital. Para nos furtarmos a esta tarefa, citamos ou macaqueamos trejeitos e opiniões de celebridades, pensadores e líderes de opinião, ou seja, moldamo-nos como sendo outros de modo a conduzir a nossa vida, ou melhor, deixamos de procurar ser quem somos de verdade.
Há, pois, quem se lance à vida com sobeja elasticidade e pense controlar o que no fundo ignora. Na verdade, vivemos sem saber ao certo quem somos ou qual o intuito das nossas práticas, embora ajamos de modo a demonstrar o contrário, criando, assim, as bases periféricas de uma alienação narcisista que muito se tem observado na sociedade dos nossos dias e em todos os comportamentos anómalos ou desfasados que lhe dizem respeito. O sujeito-actor, com aspirações megalómanas e solipsistas, acaba a agarrar o vazio como a mão a água, ao pretender ter prazeres que o próprio não reconhece como efémeros e nocivos. Por um lado, tal sujeito aparenta ter carisma, siso ou capacidade de liderança, quando, na realidade, não tem nada disso nem é o que julga ser. Por outro lado, pode estranhar-se a si mesmo ou ocultar a sua autenticidade, acabando por se arrepender de não ser fiel ao que é e ao que idealizou de e para si mesmo. Já a criança – per si a suma forma da verdade de ser humana -, ao não saber expressar com clareza o que sente e é, tende a ser deveras livre e a demonstrar o que sente genuinamente. Ao invés, o adulto, após anos de desilusões consideráveis e jogos de intenções das mais variadas índoles, substitui os sentimentos por disposições semelhantes mas desprovidas de verdade. Como resultado, incute progressivamente a si mesmo um medo oculto e retraído da vida, uma falácia que doravante se agravará com o avançar da idade e que o pressionará até ao decesso. Em suma, só em consciência e sentimento o sujeito pode aspirar à verdade de ser.
Por sua vez, o sujeito crente parece alimentar a convicção de que algo bom e transcendente virá resgatá-lo ou beneficiá-lo no fim da vida, mediante, claro está, o carácter virtuoso dos seus actos durante o processo vital. Contudo, enquanto tal não acontece, a vida real passa-lhe ao lado. Será a eternidade um logro que a razão concebe na procura deste real que a luz dá a ver e que o escuro esconde? Se as coisas em si existem realmente, serão passíveis de serem modificadas através da opinião? O exercício de viver é pensamento e acção subordinados à vontade e à necessidade constantes de que algo suceda. Nada no alto espia o que se faz ou deixa de se fazer cá em baixo. A predominância do tédio mostra bem a pequenez do Homem na engrenagem universal. Por outro lado, aceitar a insignificância engrandece-nos. Ainda assim, ninguém quer morrer sem vir a ser recordado. Por outras palavras, somos talhados natural e biologicamente para a vida. Morrer é a infelicidade maior. Valem-nos os poetas, artistas, filósofos e sonhadores que questionam a aceitação simplista do comum e do visível. A vida é e será sempre uma longa e inacabada aventura cujo final desconhecemos. Já a aceitação da morte é a tomada de consciência de que o mundo continuará sem nós. Se há sítio sem vida, não será aqui, decerto. Quando menos, andamos por aí. E o passeio é por vezes demorado, outras vezes, breve. Importa, sim, persistir na procura da nossa verdade e aceitar as coisas como são; procurar o espanto e não passar distraído pela vida. Aliás, a possibilidade de um Além é essencial, seja lá isso onde for. Sobretudo, há que galgar todas as distâncias possíveis e imaginárias. Enquanto certas coisas ficam para trás, outras virão. Tudo passa. Tudo vai e vem. O sol nasce e põe-se, a noite cai e vai-se, os ciclos repetem-se, as causas produzem efeitos, a vida estende-se até não poder mais. De resto, convém aceitar o futuro, que, embora não se saiba ao certo o que fazer com ele, é sobretudo esperança e desejo num presente sempre passado.
Entretanto, Deus, ser metafísico por excelência, surge e está algures, consagrado por intermédio da fé, na medida em que tudo o que dele se conhece obedece peremptoriamente às palavras e às ideias dos homens. Já a Sua palavra tece a trama do mundo como a poesia viva do instante. Deus é hóspede periódico no coração dos homens, testemunha de todos os males, ser impositivo e jurídico. Serão o medo e a fé a guiarem-nos até Ele? Será a inquietação a força motriz da Humanidade? Qual o efeito das orações que Lhe tributamos? Afinal de contas, que passageiros somos nós na viagem da vida? Seremos espectadores de um sonho que só a morte cimenta? Ou será Deus a porta que os homens receiam abrir? Ele é tido como o supremo bem, o derradeiro regaço aos sofredores, o abrigo na tormenta, o destino de todas as peregrinações. Quando muito, é o alívio último. Para Ele será possível estar em todo o lado, medir a eternidade, fazer com que tudo aconteça quando e como quer, enquanto os homens padecem de uma vida absurda, injusta e mortal. Posto isto, tem-se a sensação de que é preferível cultivar a ignorância que a descobrir os segredos intricados do sentido da vida. Seja como for, somos persuadidos pela curiosidade inata de querer saber o porquê de tudo. Não obstante, o mundo em si mesmo suplanta em muito qualquer resposta dada por nós. O equilíbrio e a ordem da Natureza forjam e exibem milagres que a Ciência se esforça por traduzir e interpretar de forma especializada. Ainda que não entendamos o mundo na sua plenitude, tudo acontece com conta, peso e medida, no tempo e no espaço devidos. Como tal, basta olhar em volta. É legítimo crer que nada aconteça por acaso. Pelo contrário, o progresso humano não aceita a casualidade da Natureza. Em sua vez, modifica-a, imiscui-se nela, copia-lhe os fenómenos. Por seu turno, esta prática acentua-se com o cepticismo do Homem para consigo mesmo. Como vem sendo hábito, a Natureza tem sido mudada conforme a necessidade humana. Embora os homens se achem sábios, não conseguiram explicar ainda de onde vieram, o que são de verdade e para onde vão depois de morrerem. Em vez disso, perdem tempo com futilidades. Da exploração se faz fortuna: eis o mote civilizacional. As máscaras, de facto, não revelam a alma do seu portador. Eis-nos na via do declínio. A reinvenção física de um homem de pouco serve perante a eventual grandeza da sua alma. A Ciência domesticou-nos e há instantes em que o dogma científico abraça o mundo e o acondiciona. É disso exemplo a procura do prazer e não da dor, a rectificação de percursos e estudos errados. Somos estranhos para nós mesmos, sonhos de imagens e gestos reais. Por recearmos a realidade, criámos vidas substitutas para definir outra realidade que julgamos melhorada. Em suma, cada vez mais pomos de lado o que realmente somos. Com isso, a obra de Deus morre. O sacerdote, por exemplo, encena a vontade litúrgica de Cristo para gáudio dos devotos. Com as grandes marcas publicitárias passa-se exactamente o mesmo: o marketing da veneração.
O espírito, quando descarnado, remete-se a altas esferas. E não é Deus mas a música que sublima e eleva os homens aos píncaros do Uno Primordial nietzschiano. A alma vai-se, o corpo aligeira-se. “Sursum corda”. Deus está na música, assim como o encanto, o desprendimento, o absoluto, a alma volante no mecanismo perpétuo do Universo, onde tudo se dá segundo a batida marcial do tempo. Por contraste, os homens são coxos na maratona da vida, faúlhas de fogueira na noite, espectadores na caverna platónica. Haja um vislumbre da sempiterna essência do mundo! Nada há para lá da ditadura do tempo. Esta ideia é suficiente para nos aterrorizar. O percurso vital faz-se em terra de sonhos ou em vale de sombras. A mudança dá-se mas tudo fica igual. A verdade parece pertencer a cada homem em particular. Como Deus, ela está no meio de nós. As mãos procuram outras mãos, já que melhor que a verdade só o amor, que será, quando muito, a vontade de atribuir a outro o melhor do ser que idealizamos. Verdade seja dita, o amor complica tudo e não vejo necessidade alguma de explicar aqui o seu porquê.
Em contrapartida, ninguém sabe o que fazer com o tempo. Em potência, só uma cosmovisão entende a natureza do tempo e a súmula dos propósitos universais. O Homem inscreve-se no mundo como a união de corpo e alma em função de eventos fenomenológicos. Cada corpo é parte ínfima de um espaço que o ultrapassa em larga escala. É-se no espaço, pensa-se no tempo, não se é na morte. Estes três princípios aparentemente simples afectam toda a disposição humana. Ao mesmo tempo, definem o nosso acesso à compreensão do mundo, pois são algo de funcional e discutível. Caminhamos por nossa conta e risco e entregamo-nos de livre vontade ao fluxo da vida. Se assim não fosse, morreríamos de ansiedade se antecipássemos o destino em cada passo dado. É certo que quando se morre muito fica por fazer. No entanto, o moribundo, no seu último estertor, soma todos os nadas da vida para nada. Apesar das muitas suposições acerca da transcendência, esta será sempre um mistério, pois se a explicássemos ou entendêssemos deixaria de o ser. Só se vive uma vez ou a vez de todas as vezes; ou então aquela vez em que não sabemos muito bem em qual das vezes acreditar pois às vezes somos levados mais do que uma vez a acreditar nas vezes de sempre e acabamos por aceitar, de uma vez por todas, a vez do costume. Acontece que nada acaba no mundo que conhecemos senão nós. As coisas transformam-se, mudam de sítio e de forma, misturam-se, entrechocam-se, interagem num ciclo de vivências e transformações repercutidas através do tempo e de dimensões que o entendimento humano desconhece e é incapaz de conceber. Não haverá linhas de vida mas uma teia universal cujos filamentos se interligam como impulsos neurológicos através do tempo, como ecos imperecíveis e cíclicos, cuja ressonância se repercute “ad aeternum” no Todo. Como tal, a origem e o fim deverão ser unos. O Homem aparece no curso do Universo, convicto de coisa nenhuma e arrogante ao ponto de se considerar o centro deste, reclamando saber tanto do Cosmos quanto um pensador inepto. Com efeito, o Homem instalou-se confortavelmente num cantinho do Cosmos e mal se dá conta do vendaval que o cerca. E por mais que tente conhecer e intelectualizar a realidade objectiva, sabe que o saber absoluto lhe é vedado. Ainda assim, as previsões existem, bem como estatísticas, especulações, resultados. Apesar de tudo, o saber é, em traços gerais, um acervo de palpites. Pelo contrário, no âmbito das certezas, a ideia de morte é permanente, uma vez que não há mortes transitórias. Olhamos para a vida de forma trágica e suspiramos. Afastamo-nos ou algo nos afasta continuamente do caminho traçado pela nossa verdade. A doce recordação da meninice desfaz-se. É boa prática a conservação da inocência, porquanto mitiga o ultraje e a mentira influentes na idade adulta. A impossibilidade de se ser em pleno espelha-se nos muitos barcos e comboios que partem rumo a paragens onde nunca estaremos. Seria bom, por um dia que fosse, experimentar a ubiquidade. No entanto, para que nos serviria tal poder? Nada acaba para os homens de fé, cujo fim da vida é o começo de outra melhor. Para estes, existem sítios onde beleza, bem, virtude, excelência, paz e amor convergirão em abundância, onde as melhores versões de nós mesmos se darão com versões excelentes de outros. Contudo, não podemos afirmar convictamente que estes aspectos, por si só, perfaçam o equilíbrio fundamental do Universo. Também os seus contrários contam para o perfeito exercício do mesmo.
Os anos passam e levam a verdade livre da criança, para, no ocaso da vida, o idoso desejar voltar ao ponto de partida. Pensando bem, a descrença no divino é como uma estrada para nenhures ou o medo perante uma existência grande de mais; é o exílio do ser. O tempo foge-nos por entre os dedos e não se detém como aquando crianças. Acaso a idade o apressa? Talvez as memórias se desenhem com o traço pessoal de cada um de nós. De outro modo, tende-se a denegrir o corpo. Segundo a razão cartesiana, o sujeito, ao cogitar, ao saber inequivocamente que pensa, passa a existir. Todavia, como aqui se disse, o sujeito também é sentimento, que, bem vistas as coisas, completa a verdade de ser e oferece prazeres físicos às graças espirituais. Os olhos não são chagas mas janelas, foram criados para ver. Como explicar então que certa moral condene o prazer sensorial ou físico que arrouba o espírito por intermédio do corpo? Corpo e alma são inseparáveis na realidade mundana. Esta determinação é tudo menos simples para certas alimárias de douta rectitude que reclamam para si a verdade do sujeito e do mundo. Nunca o erro se acomodou tanto em tantas bocas incapazes de errar. Por mais que as vozes discordantes se manifestem, as proezas dignas de monta sempre pertenceram não às massas mas ao indivíduo enquanto ser diferente e original.
Como pode o Homem, então, confiar em absoluto nas palavras e nos sentidos? Tal dúvida leva muitos a privar com Deus. Antes cismar com a dúvida divina que com coisa nenhuma. Os pensamentos abrem-nos a Deus. De resto, há mais coisas para lá do visível e das páginas mortas dos livros. Se quiser, caro leitor, deixe o que faz e vá até à janela neste preciso momento. Imagine uma seara sobreposta na paisagem vista, ou a melancolia de uma campina ao vento, ou o curso líquido de um riacho, ou mesmo um casebre em ruínas numa vasta planície. De seguida, feche os olhos e suprima a percepção que fez da realidade objectiva. Comprovará assim que as ideias persistem. E imaginá-las requer ensaio e perícia. Para além disso, as ideias obedecem a uma linguagem, que é, no fundo, o limite do pensar. O silêncio do mundo não as faz melhores ou piores. Estamos aqui como cristãos primitivos num coliseu romano: indefesos e entregue às feras. Somos lançados à vida cobertos de sangue, fluidos amnióticos e com um violento despertar. O mundo recebe-nos em dor. A dor preenche a vida toda. Vivemos, inclusive, em falsa prosperidade. Aqui ninguém está a salvo. Entupimo-nos de imagens garridas e sedutoras. Ao mesmo tempo, não se contemplam os fenómenos reais. Por seu lado, as retinas prendem-se a pequenos rectângulos que dão a ver o mundo. O sujeito hodierno é um ser que não é, ou melhor, que tenta ser algo que não é. A individualidade reduz-se aos conteúdos e aplicações de um aparelho digital e portátil. Somos o apêndice artificial que carregamos. A vida reside num alhures virtual.
Aqui dá-se a sempiterna dualidade entre indivíduo e colectivo, o um no todo uno, as muitas dinâmicas de parte a parte, as possibilidades e impossibilidades, as vantagens e desvantagens políticas dos sonhos levados à prática, as diferenças entre querer, fazer e estar feito, entre o imaginado e o produto concreto das ideias de alguém em sociedade. Os alicerces das dinâmicas modernas são dúbios e instáveis, porquanto cada homem, enquanto membro dum colectivo, guarda a visão e apreciação próprias deste e de si mesmo, tornando-se difícil estabelecer um consenso entre ambos, quanto mais não seja no que concerne às origens, causas e efeitos da interacção entre privado e público, sendo esta, também, uma dualidade de complexa determinação. Por outro lado, o espaço de opinião pública ou a assembleia moderna sofreram alterações consideráveis. As redes sociais trouxeram novas formas de abordar os conceitos de indivíduo e de colectivo, esbatendo as fronteiras entre o privado enquanto fenómeno que diz respeito exclusiva e estritamente à liberdade individual do cidadão e o que é partilhado por este na esfera pública, uma vez que o mundo virtual e em rede se imiscui nos mais diversos níveis da vida social, sejam eles burocráticos e administrativos ou do foro íntimo e pessoal. Poder-se-á dizer então que, por um lado, é estranho, senão impossível, conceber uma visão quer platónica, quer comunista do colectivo ideal. Por outro lado, a ideia de um colectivo uno e virtual vai-se instaurando pouco a pouco em sociedade e, muitas vezes, contra a vontade de bastantes indivíduos. Não obstante, as mudanças sucedem-se, o mundo avança, e o papel individual do cidadão dilui-se no espírito e nas práticas de grupo aceites pelo colectivo e estabelecidas como normas de um mundo social e aristotélico, no sentido em que a ideia de colmeia social descrita por Aristóteles se instaura a olhos vistos. No entanto, o devir cíclico da história mostra que cada ordem ou norma desencadeia o seu oposto, ou seja, uma oposição natural ou movimento reagente cuja origem se desconhece, mas que decerto surgirá, única e inteiramente, da ideia e da vontade férreas de um só indivíduo.
No entanto, nada acontece. A resistência parece adormecida. A revolta ou o anarquismo desapareceram. A ordem é aparente. As massas amansaram-se. Há que salvaguardar a vigília de uns enquanto outros dormem. Há coisas que dispensam confissão. O silêncio perde-se no ruído ensurdecedor das cidades. A visão da verdade esbate-se na cegueira das massas. As notícias da comunicação social conspurcam o espírito de quem as acolhe e de quem as vê serem acolhidas. Os valores modernos estão longe da contrição e da consciência, da responsabilidade e da justiça, da virtude e da excelência, do bem e da ética. Hoje em dia, tais valores são utilizados sobretudo por conveniência e oportunismo. Entretanto, por menos valores que testemunhemos, há que crer fervorosamente na existência e no proveito dos mesmos. Afinal de contas, todos nascemos de uma mãe e em condições afins, todos desejamos um tempo mais livre e simples. Uns anseiam pela destruição do mundo, outros esperam a renovação da espécie. Outros, ainda, assistem apáticos à eterna dança de vivos e mortos. Por mais juízo e sabedoria acumulados ao longo de séculos, o abalo da vida é tal que os passos cessam, o cansaço avulta-se, os olhos fecham-se e a alma procura de vez o repouso derradeiro. Em contrapartida, vamos cuspindo o escarro monolítico da civilização: homicídios, fratricídios, genocídios, suicídios… Desde que o mundo é mundo que os holocaustos subsistem. Ao fim e ao cabo, talvez tudo se restrinja à mais pura contingência e tudo acabe um dia. De mais a mais, todas as velas se apagam. Aceitemos, pois, o facto de nada perdermos quando já nada há a perder. A liberdade dar-se-nos-á quando encararmos cada sol-posto como o último. Uma vez extintos os conflitos e sanadas todas as feridas, a morte é necessária para compreendermos o alcance do mistério de ser e de sentir. Para já, cabe-nos a nós a mudança.