IGOR MOROSKI MACHADO (Brasil)
Dito por Elisa Scarpa
DAS CONJUNTURAS VAGANTES DO PLASMA LATINO AMERICANO
Queria ser
uma assombração que vaga o rio de la plata,
a fibra dos meus sonhos cobertas pelo limo
[presença verde que se dispersa]
meus amores recolhidos nas margens famintas
de Buenos Aires à Montevidéu
en la carretera y mis desaliños.
Pluma fresca in mis pelos
lábios fatigados de mascar o lodo
dulzura radioactiva
yo siendo lo martírio de las águas,
ectoplasma quemando niños.
Cabeça de Bolívar condecorando-me a mão
pálida loucura possuindo minha imagem de fantasma latino
onde línguas mortas
ecoassem na minha mente como todas as tribos
dulzura radioactiva
dulzura! dulzura!
flores impacientes nascendo prematuras em meus ouvidos
névoa que se choca na carcaça pantanosa
vagabundo do extrafísico
yo
guardián de las alucinaciones instantáneas
ser
a assombração que desce o la plata
com olhos de corações abortados
a espreita de paixões ribeirinhas
na lua que refresca a noite com seu hálito
sobre minha figura azedando escamas platinadas
dulzura radioactiva
dulce! dulce!
flutuando no estranho hábito de roer troncos com o canino
retratos dilacerados na janela da lembrança que a mim devora
já morto na memória dos meus
apenas meu vulto fedendo em uma ilha suspensa.
XAMÂNICA DO POETA MENOR
Eu ainda choro
assistindo casais de acrobatas
hereges-cadentes
quebrando leis no ar.
E acho, ainda hoje,
que na galeria púrpura da noite
quando grogue
não há coisa mais seduzente
que a luminosa da Coca-Cola.
Eu ainda me exilo em roxo dos meus confrades
se a poesia se enciuma
com seus artifícios e silêncios.
Quem sabe o que me mantêm
é esse abraço curto
na sua plástica
de singelo-divino
como harpa & querubim.
Eu, ainda morro em gotas
sentinela-da-soleira-do-mundo
com minha melopéia mal escrita
e minhas dores mal acabadas.
Querendo inventar
uma palavra-pura
forte e presente
feito uma prece
à Virgem de Guadalupe/
capaz de mover um país
[dínamo-lírico
trem-fonético]
explosão dos tímpanos parindo neo-luas.
Eu, ainda amargo
corto nu a face da lembrança
como se para fazer souvenirs
com colagem de revistas velhas
e me envaideço
com meus rancores
como uma árvore
em sua solitude anciã
se envaidece de seus frutos.
[Shiva zunindo em minhas paixões]
Eu ainda sou
essencial surrealista
montando maré-alta
para corpos à vela.
A espuma dos versos
produzindo colírios
na ótica poética
para visionários-de-rapina.
Canções da Província
à um poeta menor
com seus pecados
providos de caprichos,
nas mesmas temporadas
pervagando o destino
sobre as serpentinas
que brotam do olho.
Eu, frágil
ainda humano
enquanto a vida palmilha
entre o espaço
e o coração.
POLAROID-SENSE
***
Acho
que havia algo em seu rosto
que fazia chover,
pela janela
a cidade ia se espreguiçando entre as coxas
e o sonho dos gatos
bendiziam das antenas
sobre os telhados esverdeados.
Naquela hora
um caminhão tombava na marginal
com o diesel ainda caro
e o café adoçado no rebite.
O espaço da cama
inventando algum segredo
corpulento & caprichoso
como o deserto do Atacama.
Meu olhar de urutau
devaneava luminoso
algum inseto de bobeira na lajota,
todo ócio ruminava criativo o tempo
enquanto as marcas frescas
da tua bundinha mordiscada
conservava nosso silêncio
feito um retrato.
SORTILÉGIOS DA MADRUGADA SOB UM VIDRO MAGO
Sonhos oriundos esculpidos na noite
lascívia gotejada no lastro denso da cidade
onde putas são orbitadas nas rotatórias
a brasa
luzes
postes folheiam o cobre no asfalto
bêbados batizam ruas à suco de bexiga
demônios ronronam gases nas esquinas febris
há corpos assaltando xenon pelas dobras da carne
fervilhando tesão juvenil: doce baba noturna.
Dionísio assina sua onomatopeia nos motores
vozes ondulando o compasso –
as línguas são regidas por uma serpente carnavalesca.
A mecânica da madrugada te drena as têmporas
no lastro denso da cidade
no lastro denso
o caos te costura
amável tormenta dos bobos alegres bêbados
tropicando pés tropicais na valsa dos vencidos.
Musas acesas no cemitério das nossas lembranças – paixões desbotaram no acaso.
Levando nossos zumbis para passear na noite
pela brasa
pelas luzes
das nossas almas chupadas feito caracóis
somos o erro da matrix
somos sim
a sombra porosa de Deus.
DA ESPUMA QUE ESPASMA NÃO SE PREVÊ O DELÍRIO
Penso em nossa tragédia terrena
construída por sentimentos fúteis
& fracos odes,
então aqui
colando querubins em teu semblante
enquanto bebe da cerveja,
lhe confesso,
como quem se despe,
que para ti
me vejo impróprio
feito uma daninha errante
que se hasteia em teu corpo aberto.
Mais que impróprio
eu diria
caso meu devaneio fosse verdade,
pois enquanto te proclamo de amor
& me enveredo profano
na tua punção venosa,
fico a te ferir
à farpas passadas,
e sei que quando aflito
aborreço amargo & em mal tempo
teu ser mulher
que lentamente
descansa
diante de jardins etéreos.
Mas me convalesço nessa hora
em que todo movimento é feitiço,
e numa esquina como essa
por entre mesas de plástico
fica claro a paixão
que teu existir descarrilha,
e assim passa a maturar tuas loções
no meu pobre cotidiano
de ego rudimentar,
onde quase todas as vontades
são acovardadas.
Da tua presença me cabe um mantra
que fundamenta o belo
distante da compreensão
de qualquer supraconsciência,
acredito que podemos subentender
somente as linhas invisíveis
que nos roçam,
e pedir para vingar
nossas certezas líquidas.
Essa simetria íntima:
eu & você
atados no desalinho
do futuro que se esboça.
Por tardes passadas na erva-mate,
querendo prever da vida seus calabouços,
nas miradas
que te invento & te planejo
& cultivo
gentilmente em teu rosto
o tintilar do meu sonho
que não adormece.
DA TRANSA & DOS TRÓPICOS
I
Na meia luz do quarto
arrisco fazer lira em teus cabelos
II
De você: eu, a mariposa amante
III
[umidade-de-nebulosa]
IV
A língua anima os átomos
V
Ainda é difícil sorver da ferida
a imagem
de nós
feito vermes embriagados em carne quente
VI
Passado liberto
agora as montanhas de dorso macio
VII
Braços & fagulhas
VIII
Borramos silhuetas no abstrato
IX
Mais um passo:
desmembra-se o corpo
o universo
amontoado & fractante
já nos basta
NÃO TRAJE DE POEMA O DESABAFO I
Eu queria estar
além dessa bundamolice
de ferida, sal & cachaça;
ser além do verso pobre
da persona tosca de babosa sonata,
desse complexo tumblr
em tons pastéis & o arominha cu do almíscar.
Queria estar fora
do sentido filantrópico dos provérbios orientais,
da formatação linear humana
de síndromes capitais,
bolor de egos & dores mesquinhas.
Todo o aglomerado de insignificações
essa falta de tesão
essa falta de tudo
que é o que nos compõe.
Que não haja floreio no que me rasga
não desejo poesia nenhuma
não quero vidro-fumê em minha retina
construções piegas
ou roteiro de verve britânica,
não existe nada de essencial
foda boa não se faz em seda branca.
Não me dê beleza,
para mim é graça
sabiá preso em arame farpado,
poetas contemplatistas
precisam morrer
com seus consolos de estimação,
tenha certeza da minha galocha de cera
sou de estrutura frágil
ridículo, engajado numa serenidade andina
carcomido de âmago
de estradas traçadas em sonho
e que invisíveis
foram talhadas por minha cartilagem;
Eu não existo
estou paralelo a você
feito de plumas & vontades
que nos devoram num falso-azul
pois a vida é falso-azul
e a linha que vejo em sua mão
não me diz nada.
Queria existir
homem místico & forte
reencarnação de um índio charrua,
mas sou ausente
do que é nobre & rígido,
sou em suma e em contratempo
essa ameba de quarentena.
[Ridículo/
no palco de falecidas brumas]
Não me fale das canções de Caetano
relações assim são clichês
como todo letreiro,
não há arte nisso tudo
em diálogos
em ficções & molduras
nessas palavras.
O ritmo das artérias
o desencanto das tripas
frente aos enredos
a toda história
ao cotidiano
todas as figuras
que fazem do meu viver um desacato.
Eu não suporto
só me agrada
o desenho que fazem as cortiças,
a minha amada
e o que os taoístas veneram
que é em toda sua grandeza
o nada.
LÍRICA-CRÔNICA À GRANEL
A língua tenra abatumada de cerveja
degustava o céu na patologia de seus fios elétricos
& os poucos vivos
que por fora da planície comum
habitam a realidade,
notavam sós
os reis pela cobertura polindo seus marfins.
Me restava o enxofre
tratando a micose ainda fresca
& a bate-estaca
preenchendo o ar monopolizado do porto.
Minha utopia
sendo revelada ao amigo:
um teatro poético
beirando os trilhos
& a cabeça atirada a prêmio.
Diga
em que rua amiga
geme luz a vanguarda?
pois meu olhar
fundo & frágil
como uma bomba suicida
vê
as narrativas se desmanchando.
Baratas arrepiadas
pelos telhados de zinco
sonham esperançosas
com teu corpo decomposto.
Reparo as viúvas no sereno
recolhendo cinzas junto a carne seca
& peço perdão
sei que não brotei baixo no mundo
para que faça elegias
aceito a condição
de poeta menor
me basta assim
queimar sozinho.
Dimensões inchadas
friccionam-se no nosso sexo
& os orgãos são violentados de amor
que vontade de chorar, Deus!
em toda cidade
um gesto dela aceso.
[Todo espírito é fantasia]
nas reservas do meu peito
permanece os temporais.
POEMETO TOSCO SOBRE MEU THEATRUM MUNDI
Pode acontecer d’eu ter a dramaticidade
de um viciado em metadona
& querer outra vez enumerar tuas pintas
& garimpar da tua boca de ninfa
uma flor de amoníaco
& você
prostrada na cabeceira
com os biquinhos em riste
achará graça na minha mania
de deitar no tapete para contar as tábuas do teto
& morrer.
NO ASSOALHO DAS INVENTADAS LEMBRANÇAS II
Piá de ribeira de mundo
desmistificando
dobras & texturas
no olhar que nasce flor.
Céu de nuvem choca,
embrulhado coração de perdiz
entre as folhas que caem
& sobrevivem de secura e abandono
& troteiam suas artérias
pelo verde que a ela enciuma.
O vô masca o fumo
cospe ao pé da capoeira
para bicar as galinhas o pouco sumo
que esquecem
na naturalidade fugida
dos seu pésinhos de terra roxa.
Alguém ao longe
marcado de sol & capim
me chamava
com a voz que ríspida
lembrava a de meu pai
então o dia
se exilou
e resguardado
prosseguiu
pelo eco.
OITAVO ENCONTRO TRIPLOV
Convento de São Domingos, Lisboa, 25.05.2019