Da poesia, do poeta e do balancé

JOAQUIM SIMÕES


Partamos da afirmação de que o poema, de entre todas as formas de interligar palavras em que se exprime a raiz poiética do Todo – e, por consequência, do humano e da sua circunstância – é aquela onde mais nitidamente emerge a situação-limite que a escrita consegue alcançar. E isto porque se a essência do romance no seu todo é, em si mesma, poética, ela apenas aflora ao longo da construção em frases dispersas, nas situações a que correspondam ou justifiquem; enquanto que, girando em contrário, eclodindo num pequeno conjunto pulsante de palavras, numa gradação de intensidade de vibração única, o poema revela, sem mediações, uma ideia poética.

A exemplo do dom da comicidade, próprio de um pequeno número de actores detentores da cirúrgica percepção do vital “tempo do cómico” na forma de articular e traduzir corporalmente um texto, o poeta transporta em si o dom de cingir o tempo em que o poema “acontece”, como dizia Fernando Pessoa. E se é verdade que também o romance “acontece”, ele acontece numa outra modulação, num vibrar de menor rudeza – como o sucessivo troar das descargas eléctricas da mais forte das tempestades é distinto do do rasgão brusco originado por um único raio fulminante e mortífero. Daí que, de maior ou menor agudeza de percepção, haja muito menos poetas do que escritores e ainda menos aqueles que se movimentam em ambas as vertentes sem prejuízo de alguma delas – ninguém que “quer ser poeta” o é; nem escritor, é claro.

Entre os filósofos pré-socráticos, Leucipo e Demócrito abordaram de forma brilhante o problema fulcral da irredutível exclusão mútua do Ser e do Nada, entendendo este não como ausência ou anulação do Ser ou absurdo teórico mas como a parte do próprio Ser que concretiza, em simultâneo, o seu dinamismo e a sua imutabilidade. Para os atomistas, o vazio não é o Não-Ser nem sequer o “esvaziador” do Ser, antes a capacidade deste de se recriar e reinventar ao infinito, permanecendo, em si mesmo, imutável. A suposição quanto à existência do Nada, de um Vazio Absoluto, resulta apenas da nossa posição de entes, tendendo naturalmente, pela própria natureza do processo, a cristalizarmo-nos no momento correspondente à formação temporária que constituímos, logo, a esquecer que somos fases da pulsação do Ser, negando que nos encontramos em permanente mutação. O aparente paradoxo resulta de nos perspectivarmos a partir da imutabilidade, por residir nela a nossa substancial raiz ontológica, ao mesmo tempo que não podemos negar a permanente transformação em que nos encontramos.

É este, afinal, o problema que se encontra igualmente na raiz da velha discussão sobre a prioridade, ontológica e prática, a atribuir à racionalidade ou ao sentimento na nossa busca do real e do seu sentido. Na verdade, quando se diz que “o coração tem razões que a razão desconhece” ou se fala na “fria racionalidade que ignora o sentimento”, encontramo-nos perante a falsa dicotomia que Nietzsche denunciou: porque a “fria racionalidade” é, ela própria, uma paixão: a “paixão da razão”, uma escolha pulsional; porque os impulsos têm razões bem determinadas e secretamente pré-ponderadas.

Sendo nesse jogo entre a racionalidade (agregadora e unificadora do ente) e a emoção e o sentimento (torvelinho caótico e, ao limite, desagregador) que se faz o existir e, por ele e com ele, a escrita, também na escrita e, dentro dela, no súbito “rasgão na névoa” que é o poema, se exprimirá a maior ou menor tendência para a “desordem do sentimento” ou para a “ordenação reflexiva”. Exemplificando, poderíamos dizer que Fernando Pessoa é um poeta da “racionalidade”, da “reflexividade”, e Gomes Leal, um poeta “da emoção e dos sentimentos”. E ainda que, em idêntico sentido, espelhando a existência, a arte – neste caso, a escrita – seria comparável ao balancé com que brincávamos em criança.

A compreensão ou a intuição, mais ou menos conseguidas ou claras, do que ficou dito até agora é o que, afinal, se encontra na base do movimento surrealista que, através de Breton, muito dialogou com um Freud reconhecedor da profundidade e sagacidade do pensamento de Nietzsche. O que o surrealismo propõe é a exposição da ordenação secreta das emoções e dos sentimentos, para que a sua origem clarifique, traga à luz, o respectivo sentido e, logo, o sentido e consequente destino do ente – Dali chamar-lhe-ia “paranoia crítica”. A proposta surrealista constituiu-se como uma espécie de fiel-da-balança – ou balancé da arte em geral. Nesta acepção, o ‘brinquedo’ assenta na autenticidade existencial que expulsa da arte os pobres patifes vendilhões de carreira. O surrealismo procurou e procura a subtileza e a elegância do voo que lhe permita tocar todas as coisas do mundo, proporcionando a superação do que somos pelo que agora ilimitadamente vamos sendo.

O poeta que se lança ao que a proposta surrealista lhe sugere será, contudo, como é natural, tão mais ou menos tendencialmente “reflexivo” ou “caótico” do que qualquer outro que a rejeita. Aqueles providos de “radar” de detecção mais fina, porém, os que conseguem combinar e equilibrar, de um só golpe, a lógica intrínseca às vivências resultantes da multiplicidade e diversidade mundanas e a reflexão superadora em direcção ao seu “outro” para que se encaminha (e no qual também nós estaremos), esses são muito poucos e, em geral, menos visíveis, por exigirem uma atenção mais próxima do “fiel do balancé” do que das extremidades deste.

Com a leveza do bailarino e a acutilância e firmeza do guerreiro; pousando em cada pegada que o tempo das coisas deixou dentro dele; refazendo, num abraço, a coloração integral das recordações; vivificando, de novo, pela ternura do toque, a pele do vivido: em cada sabor, cheiro, som – da casa, da respiração dos campos, das cidades de glórias ou tristezas; chamando por esse “outro si” e por esse “outro nós” à medida da ternura e da aspereza dos caminhos que cada verso lhe faz trilhar, Nicolau Saião é um dos poetas pouco “visíveis” exactamente por ser um dos poetas em que o ideal do equilíbrio entre a emoção, o sentimento e a reflexão mais perto se encontra de se concretizar. Num tempo em que o surrealismo é citado (inevitavelmente?) por uma vulgata que o tornou numa pretensiosa ou rentável mistela de bizarria, não será, todavia, de estranhar o silêncio em torno do nome e da sua obra, que é a de um dos maiores poetas portugueses vivos.

Mas o que tem sido e o que vai sendo o viver desse poeta no país que o não vê? E como vê ele esse país onde alguns, de dentro, e muitos, de fora, o encontram? O livro “Falar com os outros”, recentemente publicado, reunindo as entrevistas dadas ao longo dos anos, é um seu outro acto poético.

Façam favor de o ler.

Porto Salvo, 29 de Setembro de 2019


JOAQUIM SIMÕES