UM CONCEITO DE AUDIOVISUAL INTERATIVO Tem muita gente por ai decretando o fim da história, o fim da epistemologia, o fim do capitalismo, o fim do mundo e, claro, o fim do audiovisual analógico. Nenhuma novidade, afinal algo em nós sempre está se quebrando, desdobrando, escapando, transfundindo. É a própria vida das coisas, das pessoas e das idéias. Em contrapartida, algo está iniciando, reiniciando, surgindo, dando a ver o óbvio invisível. Algo, enquanto se esgota, se esvai, fica mudo, muda! Algo inusitado, no meio do sólido e constituído ― ou aquilo que chamados de real ― abre-lhe uma fresta, e dá a ver o vazio. Um nada que existe. Um vazio problemático porque sua natureza não é semelhante ao contrário de cheio. Um vazio diverso do espaço a ser preenchido. Este algo inusitado chamamos de virtual ― ou design de relações. Algo que difere do real porque não existe como materialidade, porém é substância ativa em potência. Conteúdo que rompe a noção de continente, o virtual é algo que cede espaço para o inteiramente outro. Um modelo de manutenção do semelhante totalmente alheio às regras da perpetuação do idêntico. Deserção de uma natureza por outra. Esta nova natureza que brota do vazio não se trata de imitação, repetição ou cópia de si mesma. O virtual é um espaço aberto no real que implica na autogeração da outridade. Trata-se do espanto diante do inexistente prenhe. Um design de relações como uma espécie de espaço contido no sem/tido. Basta a fresta para este espaço esgueirar-se, fluido, rumo à materialidade. O design virtual, como espaço problemático, isto é, como nó de complexidades que se descortina, implica pelo menos em três questões demasiado humanas. A primeira é a capacidade de dar-se conta do inexistente como algo substancioso ― o Projeto. (Um palito de fósforo já "existia" num tronco de árvore mesmo antes da descoberta do fogo). A segunda é tecer relações capazes de fazer existir o inexistente como algo de fato ― o Processo. (Embora eles "estejam" ali, antes de decidir processar a árvore para dar a ver palitos, eles não estão aqui). Este processamento é uma relação política de comunicação. A terceira é decidir se o inusitado revisto deve ou não existir como perpétuo, isto é atribuir-lhe existência de direito lógico ― o Produto. (O isqueiro, da mesma maneira, está contido no palito, embora a sua materialidade esteja entrelaçada ao consentimento acerca da existência do palito. A decisão acerca da existência do isqueiro, portanto, vincula-se ao já consentido). O campo do virtual configura um inteiramente outro que se dobra e desdobra enquanto se vai decidindo sobre sua existência. Algo sem consistência flagrante, não representável, tampouco interpretável a priori. É um campo de complexidades feito de nós de outridades, espaço dado apenas ao nosso espanto inventivo. O campo do virtual mais se parece com um jogo de relações no qual se julga qual dos jogadores terá a luz para definir padrões de julgamento. O corpo das regras, afinal, é um design (ou projeto) feito da avaliação precária e contingente da comunidade de jogadores (ou processo) que detém o poder de definir as regras da próxima jogada ( o produto). O problema da decidibilidade, portanto, se desloca dos campos da vontade como potência e do desejo como escolha (ou arbítrio) e se aloja no território do design de relações. Coloca-nos os nós da lógica da comunicação como espaço sem corpo, da ética como meios sem veículos, sem vínculos (desvinculados) e, portanto, descortina a comunicação (ou o design de relações) como dimensão estética enquanto projeto sem objeto, ou sem problema científico-metodológico. O design de relações nos remete à elegância das formas que se estabelecem no intrínseco do espaço desenhado pelo movimento trânsfugo. No inter-espaço estabelecido pelos corpos que se deslocam uns em relação aos outros. Abandonados à natureza contingente do espaço relacional, a inteligência transmuta o sólido pelo fluido. Na elegância que constitui este bailado das coisas enquanto seres, as formas fluem sem fôrmas. Enquanto o espaço tenso guarda a qualidade do "mensurável" (produto), o espaço intenso reserva a dimensão do "multiplicável" (processo); o espaço extenso, contudo, descortina a natureza da autogeração da novidade (projeto). Algo que brota das profundezas dele mesmo (como uma mina d'água), não como uma cópia atualizada mas como o inteiramente outro. É no extenso que a outridade se realiza como coisa possível, como quase signo em estado puramente qualitativo. Relações imanentes como atratores de outras ordens desejáveis. O espaço, portanto, se configura como um ponto de mirada. Entretanto, se o foco das nossas preocupações se desloca para a relatividade do espaço intenso, entendido como lugar comunicante, pensar nas imagens como espaço tenso, regrado, então, deslocaria a "coisa" imagem para a "questão" imagem. Isto é, um pensamento que desmaterializa o objeto imagem e materializa numa relação intra-imagens ou num espaço extenso ou espaço projetual. Da mesma maneira, não trataríamos de soluções para as imagens em movimento, mas de entrarmos no jogo do movimento das imagens, nas profundas relações que as imagens físicas estabelecem com a geração de imagens simbólicas e vice-versa. O virtual, no sentido de espaço projetual, pode se caracterizar como uma dimensão de natureza diversa daquela do real. Enquanto o conceito de real tende à materialidade (o lugar como produto) a natureza do virtual tende ao conceito de signo (ao topos como projeto). Se o desígnio dos objetos é mesclarem-se no real, o "des-tino" do virtual é tecer relações. E relações são puras formas sem existência mensurável, contudo sensíveis na sua materialidade fugidia. No paradigma clássico do audiovisual, enquanto a estética deseja o belo, a ética aspira ao justo e a lógica persegue o verdadeiro. No universo virtual, ao contrário, a estética designa a elegância das formas, a ética desenha as relações de comunicação nelas estabelecidas e a lógica dispõem cenários possíveis, topos capazes de sedimentar uma decisão acerca do que venha a ser o real. Assim, a lógica do virtual trata de outra ética e outra estética. Na ética clássica o desígnio é o de ter de escolher entre um "bem" e outro "mal", estabelecendo relações de oposições complementares intrínsecas ao seu projeto. Na ética do virtual trata-se de decidir entre dois "bens", estabelecendo uma rota entre dois caminhos ou (razões) igualmente elegantes, justas ou certas. No virtual a ética da escolha se confunde com a lógica da decidibilidade que, por sua vez, se mescla à estética do drama: a poética de decidir entre dois ou mais bens! As estratégias clássicas de comunicação, pautadas no universo do "real" privilegiam o "fora" (ou o método) como meio para o estabelecimento da autoridade. Elas são articuladas a partir de férrea organização sobre a consistência do fenômeno relacional. As estratégias da comunicação pautadas nos conceitos de espaço virtual, ao contrário das clássicas, se ocupam com o "dentro" (ou com o fenômeno) interrogando-se acerca da possibilidade de se encontrar abordagens originais para compreender o fenômeno, como meio para estabelecer a veracidade para além da autoridade. Enquanto a autoridade designa uma verdade, superando a irritabilidade da dúvida, a veracidade estabelece uma medida para a interrogar-se se tal proposição é digna (portanto elegante) de crédito. Quando se trata de autoridade, discute-se a questão da decidibilidade. Decidir, contudo, não é repetir o consentido. Decidir é escolher entre dois bens: as regras do conhecido ou as regras do desconhecido. Enquanto o audiovisual clássico se pré-ocupa em eleger regras para submeter as imagens aos modelos imagéticos estabelecidos como paradigma, o audiovisual digital (virtual) se ocupa em eleger estratégias capazes de constituírem-se como linguagem. Enquanto o método audiovisual analógico impõem uma coerência às imagens, o método audiovisual digital expõe a qualidade da imagem como linguagem a partir de sua própria organização interna possível, entretanto verossímil porque verídica. Neste aspecto, a imagem virtual (ou linguagem audiovisual digital) pode ser definida como o estado de organização simbólica in vitro da física da luz e do som. Trata-se, portanto, da criação, ou simulação intencional, de um topos iridescente cuja natureza é tatiloscópica! Tanto o som quanto a luz são topos vibráteis, isto é, espaços (e)feitos de movimento hora de partículas, hora de ondas, hora sabe-se lá do quê. A organização, em certo sentido e direção, do espaço vibrátil chama-se linguagem audiovisual. Pode ser definida como o design do topos vibrátil numa determinada ordem simbólica possível. Quando o espaço óptico se transmuta em espaço tático, háptico que, por sua vez, se translada ao espaço relacional da comunicação. Diante do espaço virtual as noções de continente e conteúdo se esvaem num espaço em três ou mais dimensões. No espaço do audiovisual virtual não há lugar ou, pelo menos, nada que possa ser mensurável segundo os princípios clássicos da linguagem. Por outro lado as ferramentas com as quais criamos a linguagem do audiovisual virtual como espaço vibrátil são fundamentadas na geometria euclidiana, na física newtoniana, na perspectiva monocular cartesiana e na topologia ptolomaica como matrizes do pensamento gráfico operando no universo videoográfico da ferramenta bit. Desta forma, a tela do computador audiovisual não é neutra nem pura, pois constitui-se de espaço polimórfico e polifônico. Mestiçada desde a origem, a linguagem atualiza um campo virtual possível por meio de ferramentas e protocolos antigos. A linguagem, convém lembrar, não é autoritária porque nos impede de dizer, ou porque decide por nós, mas porque nos obriga a dizer, de certa forma e em certa medida, aquilo que foi previamente decidido como sendo belo, justo e verdadeiro. Navegar no espaço fluído do virtual significa desistir de usar mapas prontos e inventar, (in)verter... a própria noção de rota |