ROGÉRIO PAULO DA SILVA

A Catarse na Dimensão Purificadora do Ritual 

Introdução 

A catarse aponta para o resultado de uma purificação e libertação de emoções, reacções interiores provocadas por alterações psicológicas durante acontecimentos dramáticos, que levam a mudanças de estados de felicidade para infelicidade, que conflui na iluminação da consciência de quem a experiencia. Neste ensaio demonstra-se que a dimensão do tema da catarse é transversal a factores históricos, culturais e artísticos e particularmente no contexto ritualista através da dimensão dramática e exaltação de emoções. Assenta-se a catarse no palco da tragédia grega, onde a mimesis da realidade se apresenta como abertura a uma correlação de entendimento entre a acção dramática e a libertação de sentimentos por parte da audiência, destacando-se conexões entre a subjectividade das emoções e a sua visualidade através dos desenhos de Charles Le Brun. Será desenvolvida uma reflexão acerca da acção da catarse em rituais de culturas primitivas, assim como cerimónias de iniciação realizadas por ordens de cariz religiosa e mística. Por fim toma-se como exemplo algumas obras artísticas que possibilitarão um entendimento abrangente da arte como forma visual, reveladora de emoções e de tragédias idealizadas. Convoca-se particularmente a performance como uma arte de acção, propulsora de aspectos inerentes ao ritual como forma de catarse colectiva.

 
 

Figuras 1 e 2: Charles Le Brun, Methode pour apprendre à dessiner les passions (1702)

A catarse e a sua dimensão 

A acção libertadora das emoções aponta para uma dimensão de alívio físico e psicológico do sujeito. Embora o corpo físico, seja dado a reacções veiculadas pela mente, ele apodera-se de manifestações circunstanciadas pelos gestos do mundo exterior e reage subjectivamente à experiência de momentos de felicidade e infelicidade. Essa sujeição não controlada é definida, à priori, pelo tipo de alterações psicológicas provocadas durante certos acontecimentos dramáticos, pelos quais as emoções se libertam, gerando ‘uma paixão em relação ao sujeito a quem acontece, e uma acção em relação a quem o provoca’ (DESCARTES, 1984, p. 65).

Na tragédia grega, ao colocar-se a acção dramática no interior da dimensão da mimesis, obtém-se uma relação directa entre o sujeito participante e a representação do mundo pelo estímulo das emoções. Como refere Aristóteles, ‘a tragédia não é a imitação dos homens mas das acções da vida’ (2011, p.49).

Desta forma a linguagem da tragédia exercida no sujeito, fica dotada de uma extensão natural de correlação com o mundo, no acto em que ele a experiencia. Aristóteles trataria essa correlação como uma ‘linguagem embelezada’ (2011, p.47) através da qual os sentimentos de compaixão e de temor, provocariam a purificação das paixões (1). Paixões essas que se tornariam visuais no séc. XVIII pelos desenhos de Charles Le Brun em Methode pour apprendre à dessiner les passions (1702) Figs. 1 e 2.

A par da libertação das emoções como efeito de uma catarse psicológica, Artaud convoca-nos para um espaço representativo em que a dimensão do teatro se assume como um ritual, no qual se representa a verdadeira tragédia da existência humana e não um espaço apresentado ao público como um produto de consumo. Artaud defende um espaço que se define como lugar de confronto, entre o homem e a realidade demolidora da vida, onde será necessário colocar o sujeito perante situações limite e de conflito ‘desencadeando uma crise que só se resolve pela “purificação radical” ’ (QUILICI, 2012, p.43)

A catarse serve-se de um processo de purificação dos sentimentos e, para que se revele, é necessário que assente num principio trágico, numa acção que mude o sentido dos factos. Na Poética de Aristóteles, a ligação dos factos da tragédia, compreende um enredo que determina as várias partes da acção que, tal como ele aponta, ‘é o principio e como que a alma da tragédia’ (2011, p.50) e pela qual os factos terão que se transformar em tragédia e, dessa forma, pertencer a um enredo simples. Para que o efeito de catarse se introduza psicologicamente em toda a assistência e desperte vários tipos de sentimentos - fatalidade, purgação, compaixão, piedade ou terror – será forçoso que a acção decorra não numa mudança de ‘infelicidade para a ventura, mas, pelo contrário, da prosperidade para a desgraça, e não por efeito de perversidade, mas de um erro grave, cometido por alguém’ (ARISTÓTELES, 2011, p.61) e, segundo esse modelo, ter um final triste, levando os personagens à morte ou à loucura, tal como no drama de Sófocles em que Édipo convicto da sua culpa se cega a si próprio Fig.3.

Ao assistirmos a esta cena do Rei Édipo de Sófocles e ao drama que ela contém, conseguimos abstrair-nos dos factos como sendo reais quando assumimos que estamos sentados num espaço de representação. Poderíamos muito bem pensar que toda a acção presenciada pelos nossos olhos, estaria a acontecer na realidade mas, se assim fosse, ‘sentiríamos horror ao invés de trágico assombro’ (2). Na maior parte das vezes as emoções que sentimos ao assistirmos a uma peça ou um filme, são sentimentos análogos aos que se passariam na vida real.

Figura 3: Fotografia de Albert Greiner sr. & Jr. (1875-1905), Rei Édipo cego no drama de Sófocles

Assim, é inevitável que a assistência esteja profundamente ligada ao contexto da acção desse drama Fig. 4, para que as emoções se libertem e daí advenha o processo da catarse. De outro modo não haverá desordem emocional e ‘a experiência será fria e desapaixonada’ (3).
   
 

Figura 4: Fotografia de Thyago Andrade e Enrique Oliveira/Foto Rio News

O Ritual como palco da catarse

 

O modelo do ritual ocupa um importante papel na tradição das culturas primitivas e nas cerimónias de alguns grupos de índole religiosa e mística. O drama usado em certos rituais, tem o propósito de alcançar um particular efeito psicológico a quem nele participa, pois o seu objectivo é o de alterar interiormente níveis de consciência, para que resulte numa experiência iniciática ligada a um novo ciclo de vida, social ou religioso. Em algumas tribos primitivas estes “rituais de passagem” (4) estão ligados a ritos de gravidez, parto, casamentos, puberdade, funerais ou iniciações xamânicas, sendo a maior parte das vezes associados a símbolos, representações e a crenças. A acção que decorre durante estes dramas ritualísticos são provações e testes, muitas vezes estranhos e assustadores, que terão que ser superados na passagem por uma catarse da personalidade do individuo, para que se desenvolva uma outra mais madura e responsável.

Tomemos como exemplo a tribo Sambia da Papua Nova Guiné, em que a iniciação da passagem de rapazes à idade adulta se faz aos sete anos de idade Fig. 5.

Figura 6: Dervixe rodopiante Foto - (www.viagensfotograficas.com)

A dimensão do ritual procura estabelecer uma grandeza simbólica entre forças abstractas exteriores à dimensão humana e o sujeito como descodificador e receptor desse acontecimento. Em algumas ordens de cariz religiosa ou mística, em que a prática do ritual exerce um forte poder de acção psicológica, o sujeito é induzido a entrar em diálogo consigo próprio e reflectir acerca da sua existência dentro da dimensão dramática do mundo material. Durante a cerimónia é sugestionada a sua entrada no mundo profano da matéria, onde o objectivo é confrontar-se com os seus medos e com uma morte simbólica, para que se o seu “ser” se liberte e caminhe em direcção ao mundo espiritual. É perante essa força de conflitos que Artaud nos coloca em certa medida, quando nos fala num palco de representação da “vida” cruel e sofredora, revelando-se como um ‘embate de forças brutas’ (QUILICI, 2012, p.70), não para experienciar algum tipo de perversidades inerentes a algum vício da própria crueldade ‘mas, pelo contrário, de um sentimento distanciado e puro, um verdadeiro movimento do espírito, calcado sobre o gesto da própria vida’ (ARTAUD apud QUILICI, 2012, p.71).

 

A arte como acção purificadora

A arte manifesta-se como um processo cognitivo para o desenvolvimento dos conhecimentos que temos do mundo em que vivemos. As linguagens artísticas ao longo da história têm gerado novos conceitos e abordagens para entrarmos na visualidade do meio que nos rodeia, trazendo novas perspectivas visuais ao foro da criação, libertando emoções e ajustando o sujeito à sua dimensão criadora. Inspirando e produzindo ideais, abrindo portas a novos paradigmas culturais dentro da diversidade dos sistemas da sociedade.

A dimensão artística não tem congregado a arte somente como objecto e espelho de contemplação e deleite dos sentidos, mas também como meio de entendimento estético de novos caminhos e formas de pensamento. Essa extensão, que liga o homem à sua dimensão humanista, convoca directamente o corpo dos sentidos e das emoções de forma a privilegiar novas zonas de investigação teórica das imagens, assentes no acontecimento do drama e da tragédia humana, vinculando-as como testemunho de uma acção purificadora e reveladora da condição humana.

A exaltação do drama e das emoções tem sido uma temática constante ao longo da história de arte, através de obras de artistas tão importantes como “O êxtase de Santa Teresa” de Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) Fig.7, representando a experiência mística de Santa Teresa de Ávila ao deixar-se invadir pelo amor divino como um processo de catarse mística, ou a pintura “Judite decapitando Holofernes” de Caravaggio (1573-1610) Fig.8, representando Judite a decapitar

 
 

Figura 7: Ecstasy of St Theresa (detail), 1652, by Gianlorenzo Bernini.  Cornaro chapel, Santa Maria Della Vittoria church in Rome

o general assírio Holofernes enquanto ele dormia, após o ter seduzido e embebedado. Judite accionara essa decisão para a protecção do seu povo, libertando-o das tropas invasoras sobre as nações judias.

Pode-se constatar que a dimensão da catarse atinge o seu objectivo através da dimensão dramática de um sacrifício ritualista revelado na dimensão da pintura. É nessa suspensão do tempo movida pelo momento da tragédia que o olhar do observador decai sobre a emoção e o terror, resultando num processo de purificação entre o entendimento da narrativa histórica e o contexto da acção dramática.

Figura 8: Judite decapita Holofernes, 1598-1599 by Caravaggio. Galleria Nazionale d'Arte Antica at Palazzo Barberini, Rome

A década de 70 dá início a uma nova forma de expressão artística – a performance. Surgindo como acções e manifestações públicas de ideias e conceitos, como já antes a arte conceptual viria a desenvolver, o artista performer realizava-as perante uma audiência nos mais variados espaços criados especialmente para essas apresentações. A performance, ainda que um pouco marginalizada pelo domínio da História da Arte e também pelo facto de se caracterizar como uma arte com particular incidência na manifestação efémera de ideias e conceitos do artista, era quase sempre dramática e apresentava-se como uma expressão ritualista que ia contra todas as convenções da arte existentes.

A performance compreendia o uso livre das mais variadas disciplinas. O uso de objectos, pintura, literatura, poesia, dança, vídeo ou slides poderiam fazer parte da encenação para que o artista atingisse um diálogo com o público, através da visualidade de conceitos, não exercendo limitações para os seus objectivos.

A linguagem dramática da performance foi usada por vários artistas, os quais interferiam tragicamente com a dimensão do corpo Fig. 9 – nudez, mutilações, agressões, dor – para manifesto social e comunicação simbólica com a audiência, abrindo caminhos para o domínio da exaltação e libertação de sentimentos resultando daí uma catarse colectiva.

Figura 9: Yves Klein’s Untitled Anthropometry (1960)

Tendo como ponto central a reacção psicológica do indivíduo, constituída pelo despertar de sentimentos e emoções, a catarse manifesta-se subjectivamente através de variadas formas de expressões dramáticas, accionados pelo relacionamento do indivíduo com as sociedades e culturas, de acordo com as experiências vividas. Confere-se à dimensão trágica do mundo, a visualidade das emoções associadas à representação de uma mimesis da realidade, factor que coloca o sujeito em confronto com os seus mais profundos sentimentos. Nesse contexto, a vida transforma-se num palco de representações ritualistas dentro da diversidade cultural e social, aproximando o sujeito à necessidade de uma renovação e libertação constante dos sentimentos, como reacção a factores exteriores à sua condição humana. Nesse sentido, a arte tem vindo a afirma-se como um veículo de reflexão e purificação do pensamento, colocando o sujeito como participante activo dessa visualidade, fazendo parte integrante da representação , confrontando-o constantemente com os seus próprios medos e receios.

 

(1) Vide ARISTÓTELES (2011) Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp. 47-48.

(2) cf. GLEITMAN, H., FRIEDLUND, A.J., REISBERG, D. (2003) Psicologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 664 

(3) op.cit., p. 665 

(4) “Ritos de Passagem” são cerimónias que marcam uma mudança de posição social, comunitária ou religiosa do indivíduo no seio de uma comunidade.

(5) http://hypescience.com/10-diferentes-ritos-de-passagem-de-todo-o-mundo/

(6) A dança destes Sufi que giram, pertencentes à ordem de Mevlevi na Turquia, é associada com os termo dervixes, mais conhecidos no Ocidente pela prática das suas performances. Esta cerimónia designada por Sema, é realizada para alcançar o êxtase  religioso (majdhb).

Referências 

Andrade, Thyago e Oliveira, Enrique/Foto Rio News (2012) Imagem [Consult. 2014-04-09]

Disponível em <URL: http://esporte.uol.com.br/futebol/album/2013/02/28/roger-flores-e-deborah-secco.htm#fotoNav=11/>. 

Aristóteles (2011) Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian

Brun, Charles Le (1702) Methode pour apprendre à dessiner les passions [Consult. 2014-04-08]

Disponível em <URL: https://archive.org/details/methodepourappre00lebr/>. 

Caravaggio, Judite decapita Holofernes, 1598-1599 by Caravaggio. Galleria Nazionale d'Arte Antica at Palazzo Barberini, Rome [Consult. 2014-04-21] Disponível em <URL: http://en.wikipedia.org/wiki/Judith_Beheading_Holofernes_(Caravaggio) >. 

Decartes (1984) Discurso do Método, As Paixões da Alma. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora

Dervixes rodopiantes (2012) [Consult. 2014-04-19]

Disponível em <URL: http://www.viagensfotograficas.com/2012/08/03/sema-a-fascinante-cerimonia-dos-dervixes-rodopiantes/>. 

Goldberg, RoseLee (2007) A Arte da Performance – Do Futurismo ao Presente. Lisboa: Orfeu negro

Greiner, Albert, sr. & Jr. (1875-1905) Fotografia de Rei Édipo cego no drama de Sófocles

[Consult. 2014-04-09] Disponível em <URL: http://pt.wikipedia.org/wiki/Trag%C3%A9dia/>. 

Klein, Yves, (1960) Untitled Anthopometry [Consult. 2014-04-22] Disponível em <URL: http://hypescience.com/10-diferentes-ritos-de-passagem-de-todo-o-mundo/>.

Quilici, Cassiano Sydow (2012) Antonin Artaud - Teatro e Ritual. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra

Titiev, Mischa  (2009) Introdução à Antropologia Cultural. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkia

Tribo Sambia, Papua Nova Guiné - ritual de passagem [Consult. 2014-04-19] Disponível em <URL: https://www.pinterest.com/pin/2885187233027997/>. 

Rogério Paulo da Silva (1962, Lisboa). Artista visual e designer gráfico, licenciado em Arte Multimédia pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. O seu trabalho artístico incide na exploração dos conceitos Memória e Tempo inscritos em diálogos visuais e transversais a vários media: o desenho, vídeo e fotografia. Tem realizado e participado em exposições nacionais e internacionais e em congressos e workshops de arte sonora e arte multimédia. Recentemente participou com o projecto de vídeo Postais, integrado na exposição A Linha e o Espaço no MAEDS, Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal; proferiu uma palestra na exposição Em qualquer tempo a memória na Biblioteca da Escola Secundária de Silves no âmbito da V Bienal de Poesia de Silves; e participou com o vídeo Memento (2015) no Congresso da Cidadania, Ruptura e Utopia, Fundação Calouste Gulbenkian e na ProxyACT International Short Film Festival em Londres. 

Site:   http://www.rogeriosilvastudio.com