SOLO A SOLO
Rui Oliveira
(texto do catálogo)

José M. Rodrigues, “Solo”, Sala Maior, Porto, Jan. 2006

“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas,
só faltava uma coisa, salvar a humanidade”.

Ernesto de Sousa (citando Almada Negreiros),
in “A revolução como obra de arte”/“révolution je t’aime encore”, 1978

 

1.
Compreender a vasta e labiríntica obra de José Manuel Rodrigues, implica descobrir-lhe desconcertantes factores de unidade e diversidade, de continuidade e rotura, cuja análise se revelará sempre incompleta.

Chegado a este Solo, o artista apresenta uma série fotográfica recente, na qual transparecem algumas coordenadas essenciais do seu percurso, como os retratos encenados e a captação dos elementos matriciais da natureza.

Porém, ao retomar um sentido experimental do discurso fotográfico através da inversão frontal do registo, próximo da interpelação performativa, o artista parece acrescentar à sua obra uma inquietação sinóptica. E habituados ao seu rigoroso preto e branco em papel baritado, somos agora surpreendidos pela cor digital, que o artista vem explorando nos últimos anos, mas que só esta exposição nos mostra pela primeira vez.

2.
A residir na Holanda entre 1970 e 1993, José M. Rodrigues iniciou-se na fotografia em Amesterdão no princípio dos anos 70. No final da década, enquanto concluía a sua formação em Haia, na School voor de Fotografie, fundou com um grupo de jovens fotógrafos a associação “Perspektief” (1979), estabelecida em Roterdão, tornando-se coordenador de programação da respectiva galeria e um dos responsáveis pela publica-ção da revista com o mesmo nome, ambas marcantes no panorama artístico holandês da década de 1980.

Nesta fase do percurso criativo, considerada fulcral pelo próprio José M. Rodrigues, o seu trabalho experimental, quase compulsivo, aproximou-o da Fotoarte e dos movimentos conceptuais da vanguarda europeia. Artistas-fotógrafos e fotógrafos-artistas, uniam-se numa atitude comum: interceptar a arte com a vida ou, mais radicalmente, transformar o mundo.

Partindo sempre das suas próprias práticas fotográficas, realizou então várias intervenções no domínio do Happening, da Performance, da Instalação, do Diaporama e do Vídeo, em galerias de arte ou no espaço público urbano. Desconstrução, humor, risco, rotura, eram palavras de ordem.

Paralelamente, continuava a fotografar com invulgar intensidade, entre os ensinamentos da fotografia subjectiva de Otto Steinert (1915-1978) e o fascínio pelos clássicos americanos e pela “straight photography”, que lhe ofereciam as noções de rigor e contenção. Por outro lado, as suas pesquisas centravam-se na universalidade do espaço afectivo, habitado por coisas e pessoas próximas, objectos e corpos, incluindo o seu próprio corpo.

3.
Depois de uma exposição “surrealizante”, só para os amigos, em Maio 1982, no seu atelier de Amesterdão, na Noorderstraat (Rua do Norte), começou a preparar a primeira apresentação pública relevante.

Em Eu e o Tempo (Ik tussen de tijd, Galerie Perspektief, Roterdão, 1983), José M. Rodrigues mostrou uma série de obras fotográficas, com colagem e objectos tridimensionais. Para a abertura da exposição, concebeu também a sua primeira performance, utilizando um enorme pano branco que cobria todo o chão da galeria, a partir do seu corpo, sentado ao centro da sala apenas com a cabeça fora do pano, imóvel, enquanto os visitantes circulavam.

Desta mesma exposição, viria a tornar-se emblemático O Nadador revelado (1982), objecto em que uma prova fotográfica mergulhada numa caixa transparente quase cheia de água, mostra o corpo nú de um homem, em bicos de pés, água pelo pescoço, cabeça erguida, parecendo suspender o afogamento, entre o banho de revelação e o oxigénio retido no espaço sobrante da tina.

4.
Colocando-se deliberadamente no centro da acção performativa, por vezes substituindo o seu próprio corpo por auto-retratos, no ciclo de performances Holos (Galerie Makkom, Amesterdão, 1985/86) questionava os mistérios do laboratório, as ambigui-dades da imagem, a magia do acto fotográfico.

Apresentou então, periodicamente ao longo de um ano, uma sequência de quatro trabalhos referentes às estações do ano, fazendo-lhes corresponder os quatro elementos da natureza: Em A Primavera, no equinócio de Março, celebrando a água, utilizou um diaporama com negativos a preto e branco e tomou um duche nu, em tinas de revelação; em A Terra, no solstício de Verão, apresentou uma semi-ampulheta de vidro que ao esvaziar-se ia desocultando um auto-retrato, enquanto a areia caía sobre uma mala de viagem repleta de livros de fotografia; em Suicídio, no equinócio do Outono, lançou fotografias a partir do telhado do edifício da galeria, enquanto no interior se apresentava um vídeo-instalação com a imagem fotográfica de um salto no ar; finalmente, em Espírito do Fogo, no solstício do Inverno, fez arder o recorte em silhueta negra de um auto-retrato.

No ano seguinte, em Transparência Líquida (Vloeibare Doorzichtigheid, Galerie Klove, Amesterdão, 1987), sempre reflectindo sobre a sua vivência de fotógrafo, apresentou uma instalação utilizando grandes planos verticais de vidro, com fotografias captadas numa área de apenas cem metros à volta do atelier. Para esta exposição editou um catálogo/livro de artista com provas de autor.

5.
Entretanto, nas suas breves vindas a Portugal, o artista mantinha-se afastado do movimento que sucedera à Alternativa Zero (Lisboa, 1977) e do círculo próximo de Ernesto de Sousa (1921-1987), ainda que este lhe tenha manifestado apreço pelos projectos de Roterdão e Amesterdão, num encontro entre ambos ocorrido em Lisboa.

Exceptuando as suas primeiras exposições individuais, no Museu de Évora (1981) e nos Encontros de Coimbra (1982), os trabalhos de José M. Rodrigues na Holanda foram praticamente ignorados entre nós, sem qualquer eco nos principais centros urbanos do país. Mesmo a Ether, que iniciara em 1982 a apresentação regular de projectos fotográficos de autores portugueses, não chegou a mostrar esse trabalho em Lisboa, apesar das tentativas de António Sena, que viria a conseguiu incluí-lo em Olho por Olho – Uma História de Fotografia em Portugal, 1839-1992 (Galeria Ether, Lisboa, 1992), a primeira antologia da fotografia portuguesa jamais realizada.

6.
Passadas duas décadas sobre a criação da “Perspektief”, Jorge Calado apresentou a grande retrospectiva Ofertório (Culturgest, Lisboa, 1999), a já histórica exposição de José M. Rodrigues em que foi mostrada pela primeira vez em Portugal a produção experimentalista dos anos 70 e 80, incluindo uma reconstituição parcial de Eu e o Tempo.

Ficara claro, a partir da notável investigação levada a cabo por Jorge Calado, que os anos da audácia nos Países Baixos continham já as principais coordenadas que haviam de marcar a obra posterior. Mas se o fim dos anos 90 veio confirmar a singularidade do trabalho que José M. Rodrigues realizara até então, permanecem por estudar e publicar obras relevantes do período experimental, como livros de artista e vídeos, alguns dos quais continuam inéditos, nomeadamente um vídeo-performance de 1984 dedicado a Ernesto de Sousa.

7.
Apesar de ter enveredado pela fotografia “pura e dura”, decisão acentuada pelo seu sentido de independência e pelo regresso a Portugal em 1993, o artista nunca abandonou inteiramente as suas raízes performativas, questionando apaixonadamente o acto fotográfico através da encenação. Continua a fotografar por detrás das coisas, a representar o outro lado, por vezes o surreal, e sendo ao mesmo tempo senhor e prisi-oneiro de um turbilhão metafórico, continua a viver o deslumbramento do detalhe e a grandeza das coisas simples.

Em Solo, o artista volta uma vez mais ao essencial: o seu próprio corpo de ciclope transfigurado pelo olhar (lírico, límpido, lúcido), perpendicular ao olhar do outro. Os retratados estendidos no chão, cabeça vista de cima, a partir de trás, comportam uma inesperada frontalidade, rodeados de água, pedra, areia, terra, cinza ou erva.

As fotografias em que a água cerca a cabeça, as primeiras que realizou para esta série, embora distantes do humor alegórico de O Nadador revelado, concentram-se ainda na respiração à tona de água e na redenção do corpo através do elemento líquido, sendo esta forma enigmática de encenação que as torna simultaneamente belas e terríveis.

Sempre interessou a José M. Rodrigues o fragmento do corpo na paisagem, ou a paisagem enquanto fragmento e espelho. Mas é inquietante a condição contemporânea desta série de fotografias. Com efeito, ao sermos interpelados pela aparente inversão da cabeça dos retratados, o artista confronta-nos com o seu “ponto-de-vista”, em “plongée” absoluto e, secretamente, com a sua auto-representação.

Rui Oliveira
Lisboa, Janeiro 2006