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GILBERTO GIL
Cultura Digital
e Desenvolvimento
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  Boa tarde a todos.

    Xenófobo. Autoritário. Estalinista. Burocratizante. Centralizador. Leviano. Estatizante. Dirigista. Controlador. Intervencionista. Concentracionista. Chavista. Soviético.

     Desde a quinta-feira da semana passada, jornais, revistas e emissoras de televisão do país amplificaram e multiplicaram esses e outros termos semelhantes para qualificar (ou desqualificar) a proposta de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual.

     A sociedade brasileira foi bombardeada por dezenas de "istas" e "antes", repetidos à exaustão.

     O projeto não veio à tona por seu teor, mas por sua crítica. Vi poucas críticas consistentes, baseadas em leituras atentas do anteprojeto, em conhecimento rigoroso e abrangente da questão.

     Em vez disso, há a estigmatização. Tenho visto um festival de adjetivos, generalizações, visões apriorísticas e opiniões construídas a partir de outras críticas, e não do fato que se critica.

     Houve quem afirmasse, talvez sem se dar conta do grau de violência verbal de sua assertiva, que a proposta deveria ser atirada ao lixo.

     Um jornal, por exemplo, publicou nos últimos dias as opiniões contrárias de dezenas de pessoas, em especial de seus próprios colunistas. No dia em que o Congresso Brasileiro de Cinema, que reúne 54 entidades do setor, inclusive os exibidores, foi ao MinC para manifestar seu apoio à criação da Ancinav, o que fez o jornal? Nada. Simplesmente não publicou a informação de que o cinema brasileiro quer a Ancinav.

     Até hoje, os veículos que atacaram ou publicaram ataques ao anteprojeto simplesmente não concederam ao Ministério da Cultura a oportunidade de apresentá-lo, inclusive para que ele seja criticado pelo que efetivamente é, e não por aquilo que os colunistas e editorialistas acham, ou preferem achar, que ele seja.

     Este fenômeno é muito parecido com o que houve recentemente nos Estados Unidos.

     Primeiro, a tática militar de Bush: bombardeio avassalador no primeiro dia de guerra para mostrar o poderio norte-americano e dizer: não ousem resistir, que vem mais por aí.

     Depois, o consenso, o pensamento único pró-guerra na imprensa norte-americana, tornando verdade o que hoje sabe-se mentira: a existência de armas de destruição em massa no arsenal iraquiano.

     Entre os tantos detratrores, quantos realmente leram os mais de 100 artigos? Quantos já se deram ao trabalho de estudar o assunto, de recolher dados e refletir sobre eles? Quantos procuraram saber o que acontece no resto do mundo em relação ao tema? Quantos tiveram a sabedoria de conversar com quem atua há anos e anos no setor?

     A equipe que redigiu o anteprojeto fez tudo isso. Ao longo de 14 meses, ouvimos e compilamos as propostas do conjunto do setor audiovisual. Estudamos as medidas adotadas por países como a França, o Canadá, a Austrália e a Coréia. Participamos de centenas de debates e reuniões. Estivemos com as emissoras de televisão, os cineastas, os distribuidores, os exibidores. Discutimos com especialistas. Levantamos os dados e consultamos os juristas.

     Desde o princípio, procuramos construir a proposta de modo democrático e participativo. E em nenhum momento fizemos qualquer gesto que possa sugerir imposição. Ao contrário: o anteprojeto foi encaminhado, para debate e deliberação, a uma instância pública de controle social chamada Conselho Superior de Cinema, que reúne nove representantes da sociedade civil e nove ministros. Depois, será enviado ao Congresso.

     Tenho dito (a quem que se dispõe a ouvir, naturalmente) que o governo federal está aberto a todas as críticas, a todas as sugestões, propondo-se, como não poderia deixar de fazer, a receber e analisar todos os pleitos de todos os setores envolvidos e cidadãos preocupados com o tema.

     Eu pergunto a vocês... Como uma proposta elaborada e encaminhada desse modo, e que ainda passará pelo Congresso, pode ser qualificada (ou, repito, desqualificada) como estalinista?

     Eu pergunto a vocês... Quem está demonstrando na prática um apego atávico à democracia e ao estado de direito... E quem está sendo autoritário?

     Por que não vêm a público e dizem: as nossas empresas são contra a proposta, as nossas empresas não querem nenhum tipo de regulação para si, apenas para os outros setores?

     Ontem, por exemplo, um grande jornal de São Paulo estampou em chamada de primeira página: o Ministério da Cultura quer controlar a Internet.

     Ora... Isso ofende a minha inteligência, a minha história, a minha sensibilidade. E a inteligência dos próprios leitores.

     Todos sabem que sou um defensor, e mais do que um defensor, um praticante, um usuário, um divulgador, do software livre, da inclusão digital, das formas mais radicais de exercício da liberdade de pensamento, de expressão e de criação.

     Todos sabem que fui perseguido pela ditadura militar e que minha produção criativa foi controlada e violentada pela censura. Há um ditado popular que diz: quem bate pode até esquecer, mas quem apanha nunca esquece. Pode um perseguido tornar-se perseguidor? Não eu, certamente.

     Quem seria, então, estalinista? Quem me ataca sem ter lido o que estou propondo, e além disso não me dá o direito de responder na mesma medida, no mesmo espaço, no mesmo local, ou eu, que estou aqui, falando com vocês, e me coloco à disposição para tratar do assunto com todo mundo, com as empresas, com as entidades, com os criadores?

     Perdão se tomo o tempo de vocês com isso. Mas esta me parece a ocasião perfeita para compartilhar essas reflexões. A situação kafkiana que estamos vivendo hoje tem tudo a ver com o tema central desta aula, e dos conceitos que inspiram um território de saber e transformação como a Cidade do Conhecimento da USP, como a essência da própria Internet.

     O movimento global de afirmação da cultura digital, que traz as bandeiras do software livre e da inclusão digital, assim como a bandeira da ampliação infinita da circulação de informação e criação, é a mais perfeita antítese das qualificações (ou desqualificações) que mencionei.

     Nada mais anti-xenófoba, anti-autoritária, anti-estalinista, anti-burocratizante, anti-centralizadora, anti-leviana, anti-estatizante, anti-dirigista, anti-controladora, anti-intervencionista, anti-concentracionista, anti-soviética, e por isso mesmo profundamente democrática e transformadora, do que as experiências de software livre, do que os projetos de inclusão digital, do que a própria Internet.

     Aliás, nada mais democrático, transformador e contemporâneo do que a própria proposta de criação da Ancinav e de uma série de medidas legais e institucionais de regulação e desenvolvimento do conjunto do setor audiovisual do Brasil, incluindo a Internet.

     Trata-se de afirmar ou não afirmar a capacidade do Brasil de ser um criador, um produtor e um difusor de conteúdos audiovisuais próprios. De saber se queremos ou não queremos construir a nossa própria imagem, a partir da incrível diversidade cultural e natural deste país. Se queremos ou não criar mais empregos e gerar mais renda através de uma indústria livre, criativa, inteligente, sustentável e limpa.

    Estão claramente confundido regulação com regulamentação e controle. Regulação quer dizer outra coisa.

    A idéia de regulação parte de dois princípios:


1) A sociedade e seus setores estratégicos precisam de algumas regras e de instâncias de mediação que assegurem os seus valores fundamentais (como os direitos humanos), que contribuam para a solução de problemas (como a redução do grau de diversidade cultural ou a oligopolização de um setor econômico), e incentivem o seu desenvolvimento;

2) Para maximizar a eficiência, a abrangência, a democracia e a adequação à realidade dessas regras e instâncias, é preciso que elas sejam flexíveis e dinâmicas, sendo pactuadas e repactuadas, para que contemplem a riqueza, a complexidade, o dinamismo e a velocidade da própria realidade e da própria sociedade, sem se tornarem imposições.

    A sociedade precisa de instrumentos tanto legais quanto legítimos para se defender de todo e qualquer fascismo.

    Falo, por exemplo, do fascismo da exclusão social, do fascismo do obscurantismo, do fascismo da hegemonia de uma cultura, e de seus bens, serviços e valores culturais, sobre as demais culturas que compõem o grande patrimônio comum da humanidade.

    Falo também do fascismo do Estado, do fascismo das grandes corporações e do fascismo da mídia, fascismos igualmente perigosos, igualmente autoritários, igualmente "istas" e "antes", porque amparados num poder desmedido, incomensurável, que se afirma sobre a sociedade e a democracia.

    A propósito, recomendo a todos que assistam ao filme "Eu, Robô", ou melhor, que leiam o texto de Isaac Asimov, e se perguntem se querem aquilo para o mundo, este mundo que é a nossa casa, o nosso lar, a nossa inspiração e também o resultado de nossas aspirações comuns.

    Meu amigo Hermano Vianna escreveu, no prefácio ao livro "Software Livre e Inclusão Digital", publicado pela Editora Conrad no ano passado, o seguinte:

    "A revista Business Week coloca a Rebelião Linux na sua capa, prometendo revelar para seus leitores como um grupo ralé de geeks do software está ameaçando a Microsoft e a Sun, e virando o mundo dos computadores de cabeça para baixo. Nas páginas da revista, aprendemos que a Chrysler, a Sony, a IBM e mesmo o departamento de defesa de Bush já prevêem um futuro de código aberto para seus negócios."

    Hermano então pergunta:

    "Mudou a Business Week? Mudou o capitalismo? Ou essa é mais uma tentativa de cooptação de qualquer movimento que apresente ameaças para a sua dominação global?"

    Em seguida vem a conclusão de Hermano:

    "Seja o que for que as corporações pensam quando ganham dinheiro, ou economizam dinheiro, com o GNU/Linux, uma coisa é certa: esta é a batalha política mais importante que está sendo travada hoje nos campos tecnológicos, econômicos, sociais e culturais. E pode mesmo significar uma mudança de subjetividade que vai ter consequências decisivas até para o conceito de civilização que vamos usar num futuro breve."

    Estou plenamente de acordo com Hermano. E acrescento: o mais interessante de tudo isso é que este movimento surgiu na sociedade, e não nas empresas, nos partidos, nas entidades, nos modos de representação ou de organização tradicionais, o que implica uma mudança estrutural, profunda, não apenas de conteúdo, mas de forma, de processo, que se reflete no que se diz, no que se propõe, e também em como se diz, em como se propõe.

    Tudo tem acontecido de forma descentralizada, fruto do trabalho coletivo de gente que tem interesses, desejos e bagagens culturais diversas, mas que decidiu trabalhar de graça, dando inclusive um novo sentido à palavra trabalho, para que mais e mais pessoas, no mundo inteiro, possam ser donas de seu destino ou ter uma vida melhor, o que significa, nos dias de hoje, inclusão digital.

    Já temos no Brasil uma vasta experiência acumulada no campo do software livre e da inclusão digital, com centenas de projetos, protótipos e até mesmo uma reflexão acadêmica profunda, e esta ampla mobilização de pessoas, de inteligências, de criatividades, desemboca no próprio governo, que abraçou a causa e transformou a cultura digital em uma das suas políticas públicas estratégicas.

    As próprias iniciativas da sociedade, do terceiro setor, dos indivíduos não-governamentais que são vetores do movimento, também encontram-se hoje em um novo patamar, mais amadurecido, mais consistente.

    É com otimismo e alegria que devemos saudar as iniciativas e as experiências de inclusão digital e de adoção do software livre, assim como o debate que se trava sobre os impactos da cultura digital sobre os direitos autorais, com as propostas de novas formas de licenciamento e gestão de conteúdos, a exemplo das creative commons, que abrem perspectivas inteiramente novas, diferentes, oxigenadas, para temas antes prisioneiros das várias formas de ortodoxia analógica.

    O Brasil pode e deve aproveitar este momento favorável, em que mais e mais pessoas se juntam ao movimento, e o próprio governo o incorpora como prioridade, através do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, do Ministério das Comunicações, do Ministério da Ciência e Tecnologia, do próprio Ministério da Cultura, da própria Presidência, para dar passos concretos, objetivos, no sentido da real inclusão digital, que não se confunde com formação de mão-de-obra, mas implica a valorização da cidadania, da capacidade de autodeterminação das pessoas, da dimensão de autonomia e busca de saber e informação.

    A questão do software livre, assim como a da produção e difusão de conteúdos audiovisuais, também é uma questão de soberania coletiva, e portanto nacional. É uma questão cultural por excelência, e por isso tem a ver com o projeto de país que estamos construindo, com a valorização da diversidade cultural, com a cidadania, com a geração de renda e emprego através de indústrias criativas e limpas, e com a nossa autonomia e a nossa capacidade de respeito à diferença, seja enquanto indivíduos, seja enquanto grupos sociais, enquanto sociedade nacional e sociedade global.

    Se tiver coragem, e esta coragem está sendo demonstrada, apesar dos pesares, o Brasil tem a oportunidade de empreender uma grande campanha, um grande movimento nacional de mobilização pró-liberdade digital, tornando-se assim referência mundial na luta pelo software livre. Mais cedo ou mais tarde, todos os governos e todas as sociedades terão de enfrentar as questões que estamos abordando aqui. Nós estamos na frente e isso deve ser motivo de orgulho.

    Precisamos, por exemplo, afirmar o Brasil também como um criador e desenvolvedor de novos programas, de novas formas de licenciamento e gestão de conteúdos, de novos modos de acesso a conteúdos, treinando a nossa criatividade no sentido de criar um pólo produtor emergente de software livre que poderá globalizar, no bom sentido, nossas posturas e nossas conquistas libertárias.

    Gostaria de retomar uma de minhas primeiras falas como ministro, quando disse que o MinC seria o espaço da experimentação de rumos novos, o território da criatividade popular e das linguagens inovadoras, o palco de disponibilidade para a aventura e a ousadia.

    Disse também que novas e velhas tradições, signos locais e globais, linguagens de todos os cantos são bem-vindos a este curto-circuito antropológico. A cultura deve ser pensada neste jogo, nessa dialética permanente entre tradição e invenção, nos cruzamentos entre matrizes muitas vezes milenares e tecnologias de ponta, nas três dimensões básicas de sua existência: a dimensão simbólica, a dimensão de cidadania e inclusão, e a dimensão econômica.

    Atuar em cultura digital concretiza essa filosofia, que abre espaço para redefinir a forma e o conteúdo das políticas culturais, e transforma o Ministério da Cultura em ministério da liberdade, ministério da criatividade, ministério da ousadia, ministério da contemporaneidade. Ministério, enfim, da Cultura Digital e das Indústrias Criativas.

    Cultura digital é um conceito novo. Parte da idéia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte.

    A tecnologia sempre foi instrumento de inclusão social, mas agora isso adquire novo contorno, não mais como incorporação ao mercado, mas como incorporação à cidadania e ao mercado, garantindo acesso à informação e barateando os custos dos meios de produção multimídia através de ferramentas novas que ampliam o potencial criativo do cidadão.

    Somos cidadãos e consumidores, emissores e receptores de saber e informação, seres ao mesmo tempo autônomos e conectados em redes, que são a nova forma de coletividade.

    O avanço da tecnologia digital resultou no fenômeno da convergência das tecnologias, que torna possível, por exemplo, que um telefone celular, em si um "milagre", possa ser, ao mesmo tempo, uma câmara de fotografia e de vídeo, um computador de bolso com acesso à Internet e um receptor e um emissor de televisão. Um telefone celular caminha para ser uma central multimídia. Um cidadão com um celular pode ser um repórter, produtor de um conteúdo que pode ir ao ar a partir do seu telefone celular.

    Os programas de cultura digital visam o uso pleno das novas oportunidades de inclusão digital pelas camadas da população até então excluídas. Trata-se de inclusão cultural, para além da mera alfabetização em informática.

    O Ministério da Cultura está realizando esforços para garantir, em sua política, o reconhecimento estratégico do acesso à cultura digital. Estamos desenvolvendo projetos que oferecem possibilidades de acesso universal à informação e ao conhecimento através do uso pleno das redes telemáticas, como os Pontos de Cultura e a novas bibliotecas do Programa Fome de Livro.

    Além da dimensão de acesso, os projetos pretendem criar condições para a apropriação das tecnologias digitais como ferramentas de produção cultural interativa e colaborativa.

    Vocês certamente sabem, mas não custa destacar: existe uma comunidade, uma cultura compartilhada, de programadores e pensadores, cuja história remonta aos primeiros experimentos de minicomputadores. Os membros dessa cultura deram origem ao termo "hacker". Hackers construíram a Internet. Hackers idealizaram e fazem a World Wide Web.

    A mentalidade hacker não é confinada a esta cultura do hacker-de-software. Há pessoas que aplicam a atitude hacker em outras coisas, como eletrônica, música e nas ciências humanas. Na verdade, pode-se encontrá-la nos níveis mais altos de qualquer ciência ou arte.

    Hackers de software reconhecem esses espíritos aparentados de outros lugares e pessoas, e podem chamá-los de "hackers" também. A natureza hacker é independente da mídia em que o hacker trabalha. Mas a origem do movimento hacker nasce dos hackers de software, e nas tradições da cultura compartilhada, que é a essência filosófica da ética "hacker".

    Existe outro grupo de pessoas que se dizem hackers, mas não são. São pessoas que se divertem invadindo computadores e fraudando o sistema telefônico.

    Hacker de verdade chamam essas pessoas de "crackers". Hackers de verdade consideram os crackers preguiçosos, irresponsáveis, e não muito espertos. A alegação de que ser capaz de quebrar sistemas de segurança torna alguém um "hacker" é o equivalente a dizer que fazer ligação direta em carros torna alguém um engenheiro automobilístico.

    A diferença básica é esta: hackers constróem coisas, crackers destróem coisas. Hackers resolvem problemas e compartilham saber e informação. Acreditam na liberdade e na ajuda mútua voluntária, tanto que é quase um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar as soluções, para que outros possam resolver novos problemas.

    Retomo aqui as quatro liberdades preconizadas pela filosofia GNU/Linux:


- Liberdade 0: a liberdade de executar um programa para qualquer finalidade.
- Liberdade 1: a liberdade de estudar um programa, e adaptá-lo a novas necessidades.
- Liberdade 2: a liberdade de redistribuir cópias e assim ajudar os vizinhos e parceiros.
- Liberdade 3: a liberdade de melhorar os programas e compartilhar as inovações com a comunidade.

    Eu, Gilberto Gil, cidadão brasileiro e cidadão do mundo, Ministro da Cultura do Brasil, trabalho na música, no ministério e em todas as dimensões de minha existência, sob a inspiração da ética hacker, e preocupado com as questões que o meu mundo e o meu tempo me colocam, como a questão da inclusão digital, a questão do software livre e a questão da regulação e do desenvolvimento da produção e da difusão de conteúdos audiovisuais, por qualquer meio, para qualquer fim.

    Mesmo diante de incompreensões passageiras, próprias das inovações, próprias das atitudes e das proposições que são não à frente de seu tempo, mas contemporâneas, sintonizadas com o tempo, eu e o Ministério da Cultura manteremos o nosso compromisso público com os assuntos que nós, e muitos cidadãos brasileiros, consideramos estratégicos e definidores de como é o nosso presente e de como será o nosso futuro.

    E seguiremos este caminho, sempre prontos a transformá-lo enquanto caminhamos, sempre prontos a debater, negociar, mudar e mediar tudo que fizermos, porque assim é a vida numa democracia, assim é a vida em sociedade, desde que o mundo é mundo, e assim deve ser a política.

    Ainda que os meios culturais estejam entre os mais afetados por tudo o que a tecnologia tem proporcionado nos últimos anos, as políticas para a área cultural não conseguem nem de perto acompanhar esse movimento.

    Hoje, por exemplo, a produção audiovisual já vive uma realidade digital inexorável. O mesmo vale para produção musical, por exemplo. No mundo digital, a reprodução, o plágio, a reciclagem de idéias e obras, a gestão dos direitos, tudo isso se confunde e ao mesmo tempo alimenta novos ciclos criativos. E não existe, até hoje, uma resposta regulatória à altura. É por essa razão que a área de políticas culturais existe dentro do MinC, e que estamos tentando fazer o que estamos tentando fazer.

    O digital responde a uma mudança de paradigmas maior, a uma mudança cultural muito ampla. Rede, conexão e compartilhamento são características desse novo momento em várias áreas, e não apenas na tecnologia de comunicação.

    O artista genial, como o cientista genial, são exemplos extremos da potência de transformação do ato criador e inventivo do indivíduo. São intervenções que surpreendem os analistas da sociedade, subvertem seus modelos econômicos, políticos ou históricos e introduzem, para usar seus termos, "variáveis exógenas" sem as quais os zigue-zagues da saga humana tornam-se incompreensíveis.

    É no universo da cultura, afinal, que vamos encontrar os elementos estratégicos para entender o movimento das sociedades, para requalificar as relações entre as pessoas, para o crescimento e o lugar, no tempo e no espaço, de cada um de nós, e também para projetar novas utopias. Falo aqui da cultura não apenas como o conjunto das expressões artísticas, mas como todo o patrimônio material e simbólico das sociedades, grupos sociais e indivíduos, e suas múltiplas expressões; da cultura como simbologia, como cidadania e como economia.

    E a cultura digital potencializa tudo isso, apontando para um grau de desenvolvimento inédito para a humanidade.

    Quando se fala em cultura e desenvolvimento, portanto, a pressuposição mais importante é a de que o próprio desenvolvimento é um conceito que se forma dentro de determinado ambiente cultural, e que se modifica ao longo do tempo, sendo, portanto, necessariamente cultural. "Decifra-me ou te devoro", diria a esfíngie imaginária da cultura para um economista ou um político. Se não levarmos em conta a cultura ao pensar os projetos de desenvolvimento, corremos o risco de perder de vista a estrela-guia, atarefados que estaremos com as pedras do caminho. Assim como o desenvolvimento é cultural, a cultura é uma, talvez a principal, de suas dimensões, fornecendo régua e compasso a seus propulsores.

    Cultura e desenvolvimento são conceitos e processos necessariamente interligados e compartilhados. Não podemos conceber desenvolvimento que não seja cultural. E não devemos conceber desenvolvimento que não seja compartilhado.

    Compartilhado por Norte e Sul, por incluídos e excluídos, por centros e periferias. Até para que essas palavras percam um dia o seu sentido sociológico atual. Compartilhado também, enquanto responsabilidade, por governos e sociedades, instituições e indivíduos.

    A Declaração Universal dos Direitos do Homem define claramente os direitos culturais como parte dos direitos humanos fundamentais, dos quais somos zeladores. Também inclui o direito ao desenvolvimento.

    Isso significa o reconhecimento global de que cada sociedade, grupo social e indivíduo tem um patrimônio cultural singular, que reflete um sistema de valores e um modo de viver próprio, a partir do qual se dá a sua identidade.

    Significa também o reconhecimento de que as identidades culturais existem no diálogo com as demais, e dependem desse diálogo para sobreviver. Significa o reconhecimento de que a promoção da identidade e da diversidade cultural e do convívio tolerante entre sociedades, grupos sociais e indivíduos é vital para a democracia e está entre os deveres básicos dos governos. Significa, ainda, o reconhecimento de que a cultura é, ao mesmo tempo, uma das dimensões do desenvolvimento humano, seu ponto de partida e de chegada. Significa, finalmente, que o crescimento econômico e o comércio devem ser cultural e ambientalmente sustentáveis.

    As indústrias criativas representam hoje, não apenas para o Brasil, mas para muitos países em desenvolvimento, o coração de suas chances de sucesso na globalização.

    Muitos se espantam quando lêem nas publicações da ONU que o valor global de mercado das indústrias criativas alcançará o montante de 1 trilhão e 300 bilhões de dólares ainda em 2005.

    A indústria da música, do audiovisual, do design, das publicações, da web, do software, da fotografia, dos variados conteúdos culturais, da diversão, enfim, torna-se vital em vários países emergentes, que passam a ser produtores, e não apenas consumidores, dos bens simbólicos e materiais criativos.

    O grande economista Celso Furtado, ex-ministro da Cultura do Brasil, dizia que desenvolvimento requer invenção e se constitui em ação cultural. Todas as inovações são elementos culturais. Todo o conhecimento, que é a chave da economia contemporânea, capaz de transformar processos e agregar valor a mercadorias, reinventando seus usos e costumes, é também cultural.

    A preocupação com a inclusão digital, por exemplo, é algo que está sempre no nosso horizonte de ação. No MinC vemos a Internet como um paradigma a ser perseguido na questão da compreensão da cultura digital; a banda larga como uma política pública a ser implementada e, em última instância, a interatividade como condição necessária para todas as atividades culturais.

    Tudo isso se traduz, por exemplo, na criação de estúdios multimídia pelo Brasil, que é a unidade zero do ponto de vista cultural da inclusão digital e que é um programa desse ministério.

    Também se traduz no debate sobre o uso do Fust, o Fundo de Universalização das Telecomunicações, que tem mais de R$ 3 bilhões para programas de inclusão digital e que até hoje não teve nem um centavo aplicado em programa algum, devido a entraves regulatórios.

    Temos conversas já avançadas com o Ministério das Comunicações e com a Anatel nesse sentido. A nova visão da realidade digital é que o centro do mundo deixa de ser geográfico. A globalização digital é includente. E os recursos do Fust devem ser usados para a inclusão digital cidadã.

    Outro desafio diante da inexorável realidade digital é o problema da propriedade intelectual. Na condição de artista, sinto na pele as vantagens e desvantagens de criar em um mundo em que a cópia, a clonagem e a recriação são tão simples, facilitadas pelas tecnologias digitais.

    Meus discos são encontrados a R$ 5 em qualquer esquina, ou sem custo adicional na Internet. O lado bom disso é a difusão sem fronteiras e a possibilidade de trabalhos criativos que recriam a obra original. O lado ruim é que alguém, que não o artista ou a cadeia econômica, pode estar ganhando muito dinheiro, para não mencionar os agravantes relacionados à criminalidade que uma indústria clandestina pode ocasionar.

    O desafio é pensar como resolver a questão autoral sem que isso atrapalhe o processo de compartilhamento, troca e evolução artística associado aos meios digitais.

    Como a indústria de música ou, cada vez mais, a do audiovisual, vai sobreviver à luz da realidade digital? O avanço da distribuição de bens intelectuais pelos meios digitais é inexorável. Além disso, não se fala apenas em cópia, mas em clonagem, já que não há perda de qualidade. Considerar isso um atraso é estar circunscrito do ponto de vista comercial a uma linguagem analógica. O lado positivo disso tudo é a universalidade, a possibilidade das coisas serem conhecidas e tocadas sem fronteiras.

    A questão é como as pessoas e empresas vão viver nessa nova realidade. É algo que ainda precisamos pensar muito e para o qual não há respostas prontas. Mas há caminhos, como as creative commons, criadas por Lawrence Lessig, grande advogado norte-americano da Universidade de Stanford, que percebeu o problema dos direitos autorais.

    A motivação de Lessig vem do movimento quase irracional que se vê nos EUA de empresas que tentam, por exemplo, patentear seqüências genéticas que estão dentro de todos os seres humanos ou de pessoas que processam filmes porque apareceu, no fundo de uma cena, uma roupa que pode ter sido inspirada em uma peça de sua autoria.

    Ou a própria indústria fonográfica, que processa senhoras de 60 anos porque baixaram sem autorização uma música de Doris Day.

    A proteção autoral de hoje é absolutamente restritiva. No modelo creative commons, que o Ministério da Cultura apóia plenamente, você, como criador, tem a possibilidade de liberar alguns direitos, ou todos, sobre sua obra, além de gerir os licenciamentos que empreende.

    Este é apenas um exemplo do que estamos pensando e fazendo neste momento, seja na nossa pequena sala de hackers, seja no conjunto do MinC e no próprio governo, porque tudo isso é uma preocupação de governo, uma prioridade do governo Lula e da minha gestão.

    Muito obrigado pela oportunidade de abordar esses assuntos aqui na USP. Em breve, aliás, estaremos assinando um convênio com a Cidade do Conhecimento que nos permitirá aprofundar nosso envolvimento e os resultados das nossas ações. Espero ter outras oportunidades de apresentar projetos como o da criação da Ancinav, ou de criação dos Pontos de Cultura, ou as nossas posições sobre a relação indissociável entre cultura e desenvolvimento.

    O economista Ignacy Sachs tem dito que, entre todos os desperdícios, o mais grave é o da vida humana, pois irrecuperável: ela não se estoca, ela flui. Falo, especialmente, do desperdício da subjetividade humana. É importante que possamos reorientar o sentido de nossas ações e políticas, na sociedade civil e no Estado, na direção de potencializar o processo de desenvolvimento não só do que a literatura marxista chamou de "forças produtivas", mas também do próprio indivíduo, de sua inteligência, de sua criatividade, de sua sensibilidade, de suas capacidades e de suas possibilidades de vida em sociedade.

    Uma universidade preocupada com o tema do desenvolvimento pode contribuir decididamente neste processo ao se ocupar da dimensão econômica da cultura e da dimensão cultural da economia. A produção do conhecimento, de um conhecimento abrangente, complexo, capaz de lidar com a multiplicidade, a fragmentação e as incongruências do real, é o fundamento para se alcançar um novo patamar, para a gestação de um projeto de nação que incorpore tanto o planejamento tradicional quanto a gestão por fluxo, a gestão das demandas, o imponderável, as surpresas, aquilo que Cartola chamaria de "as voltas que a vida dá", muitas vezes intangíveis, muitas vezes implanejáveis, mas fundamentais.

    Aliás, no momento em que a dimensão cultural alcança o reconhecimento de seu lugar estratégico no desenvolvimento, as relações entre o Ministério da Cultura e a universidade, com os seus órgãos de implementação e aperfeiçoamento, devem ser fortalecidas. Precisamos avaliar o lugar que o estudo da cultura tem ocupado no âmbito da formação graduada e pós-graduada.

    É hora de a pesquisa científica acerca da cultura conquistar novos vôos, ganhar maior consistência, rigor e autonomia. É preciso pensar a universidade também como um "locus" da cultura, seja das expressões artísticas, seja da difusão, ou reflexão, ou da preservação.

    O Ministério da Cultura já tomou algumas iniciativas nessa direção. No âmbito da elaboração do Plano Nacional de Pós-graduação, enviamos para a CAPES um conjunto de incentivos à criação de cursos especificamente voltados para a cultura, na sua transdisciplinaridade essencial e inescapável. Estamos também em contato com os pró-reitores de extensão das universidades federais para dinamizar a circulação cultural e intensificar o seu conhecimento pela vasta rede da extensão universitária brasileira, compreendendo a capacidade de reverberação das universidades para as comunidades em que estão inseridas.

    Sem dúvida, sabemos que a contribuição da universidade não passa só pela reflexão, mas também pelo desenvolvimento de novas tecnologias, que hoje estão na ponta do que pode ser percebido como uma revolução culturalista. Não mais aquela de Mao, que reeducava o literato para saber lavrar a terra, mas uma que desperta no lavrador o seu potencial criativo e imaginativo, ainda que para lavrar a terra, ou para falar dela, e de si, para os que se dispuserem a ouvir.

    As tecnologias digitais potencializam esse movimento, ao democratizar a circulação da informação. Do ponto de vista ambiental, reduzem o papel dos meios físicos de armazenamento, transporte e difusão de conteúdos, sem sobrecarregar o meio ambiente. Através de programas como a inclusão digital, uma política pública de cultura contemporânea pode ser não apenas compensatória ou inclusiva no sentido tradicional, mas geradora de empregos, renda e felicidade, e, portanto, de um desenvolvimento que, este sim, mereceria dois adjetivos sincronizados: sustentado e positivo.

    Este sentido afirmativo deve ser instituído não através de regulamentações, mas de regulações, sempre atentas ao contexto, sempre flexíveis, dinâmicas, que resultem da intensa e constante negociação entre os agentes econômicos, os poderes públicos e os grupos sociais.

    Antes de finalizar, gostaria de voltar rapidamente ao tema que provocou todos aqueles "ismos" e "antes" a que me referi.

    O setor audiovisual tem um impacto econômico significativo no Brasil e no mundo. As receitas obtidas pela exibição de filmes, venda de vídeos e dvds, inserções publicitárias em televisão aberta e fechada, assinaturas de televisão fechada e produção audiovisual no país somam cerca de R$ 15 bilhões, ou 1% do PIB brasileiro. O potencial, porém, é muito maior.

    A globalização torna fundamental, sob o ponto de vista cultural, econômico e geopolítico, que o Brasil tenha uma vitalidade e uma diversidade ainda maior como produtor, consumidor e exportador de conteúdo audiovisual. Por isso, o país precisa de uma agência abrangente, capaz de estruturar e desenvolver democraticamente o setor, maximizando seu potencial.

    A proposta da Ancinav parte do princípio de que é necessário separar o tratamento legal e institucional que se dá às redes físicas e às plataformas tecnológicas, de um lado, e às atividades de produção e difusão de conteúdo audiovisual, de outro, estabelecendo que a nova agência tenha um papel complementar ao hoje exercido pela Anatel.

    O debate que se trava hoje deve aperfeiçoar a proposta de criação de uma agência para estimular o conjunto do audiovisual brasileiro. Também evidencia a importância estratégica do setor, que pode se transformar, através de uma parceria entre o governo, os criadores e os agentes econômicos, em uma indústria dinâmica, sustentável, plural e inclusiva.

    A minuta do anteprojeto de criação da Ancinav continua aberta às contribuições de todos os setores e cidadãos interessados na questão do audiovisual. A versão final será debatida e aprovada pelo Conselho Superior de Cinema, a partir das sugestões objetivas encaminhadas nos próximos 60 dias, e depois enviada ao Congresso, para novo debate.

    Nós estamos praticando a democracia. E convidamos todos a participar.

    Boa noite. Muito obrigado.

 
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Aula Magna proferida pelo ministro Gilberto Gil na USP
SÃO PAULO, 10 DE AGOSTO DE 2004