Procurar textos
 
 

 

 

 







Francisco Soares
...
Verney: exemplo de uma concepção historicamente marcada (1)
.

Luis António Verney, no « Verdadeiro Método de Estudar» , segue uma definição imitativa, nomeadamente ao afirmar que "a poesia é uma viva descrição das coisas que nela se tratam". Fidelino de Figueiredo lembra, na « História da Critica Literária em Portugal» , que estávamos perante "a fórmula do velho António Ferreira" (2) e fala também de Horácio (3). No que diz respeito ao classicismo da definição, ela confirma portanto a genealogia aristotélica. Isso era típico do seu tempo e das ideias que perfilhou (4). Esse tempo teve os respectivos tratadistas e com razão Fidelino fala da poética de Boileau (5) e do Cavaleiro de Oliveira (6).

A imagem da "viva descrição" deve-se a uma perspectiva aparentemente empobrecedora, mas por igual coetânea: "a Poesia é uma retórica mais florida". É preciso dizer que "florida" não remete, mesmo em Verney, só para mais figuras de estilo, mas para a causa desse aumento, que vinha da imitação da vivacidade expressiva e da intensidade do sentimento. Neste ponto, não se afastava tanto quanto parecia do "furor" das musas, anos depois o do génio - só que o via pelo aspecto palpável e frio. A sua visão de poesia e de género mostra-nos aliás um horizonte teórico oscilante, a dualidade problemática de um discurso voltado ainda para a crítica ao fim do período barroco e já apontando, na discussão sobre o "engenho", argumentos que mais tarde servirão para resistir aos impulsos românticos, ou para com eles se confundirem, nomeadamente os que se prendem com a necessária subordinação do "conceito engenhoso" à "verdade". O que o romantismo vem mudar é muitas vezes o rol de conceitos básicos designados por substantivos abstractos como «natureza», «autêntico», «verdade». A verdade neo-clássica era iluminada pela voz clara da razão e sentida como autêntica. Não coincidia só com a vivência interior. Em vez de autêntica podemos dizer aliás real, melhor, imitativa da natureza humana ou não-humana. Uma vez que o mundo estava organizado, a obra reflectiria, na sua arquitectura, a ordem natural das coisas. Havia na arte uma função de ilustrar tanto quanto de imitar.

É por isso que Verney repara no aspecto construtivo do texto e verbera as "ridicularias" barrocas, onde faltaria o senso das boas lições de retórica. Tal senso fazia falta ao nível macro mas também micro-textual. Apesar da visão florida, ele denuncia como artificiais e forçadas as imagens do vocabulário poético anterior, nomeadamente no que diz respeito a figuras do velho paganismo, sobretudo aplicadas a assuntos corriqueiros. Nisso antecipa a sensibilidade romântica, inicialmente alérgica ao mofo, ao bolor e ao bafio do barroco requentado. O objectivo comum prende-se com a noção de autenticidade poética. Contrariamente à barroca e à romântica, a sua regula-se, para atingir o real, pela razão esclarecida e pelo bom senso. Está próxima de "uma realidade observada cientificamente" (a naturalista, por exemplo defendida por Júlio Lourenço Pinto) (7). Por motivos diferentes ela, tal como a romântica, ridiculariza tudo o que não for sentido como real - daí a exclusão de mitos e figuras que já só tinham existência literária, que eram letra morta de uma língua que, por isso, devia morrer também. Só o conceito de realidade muda.

Pelos mesmos motivos, o engenho é verdadeiro e bom (verdadeiro pela verosimilhança e bom pela semelhança das ideias), se não se basear na semelhança de palavras, sílabas e letras (8). Tal semelhança romperia a ligação com a realidade, a natureza, tal como teorizadas pela enciclopédia iluminista e só tinha, também ela, existência literária. Tive oportunidade de verificar que, pelo menos em comunidades literárias como a de Angola do século XIX, tais preceitos não foram respeitados por poetas românticos ou ultra-românticos (9). Entre eles encontrei também práticas de charada incluídas em poemas. Para além das explicações históricas e circunstanciais, dominadas pelo cruzamento entre o barroco luso-brasileiro e as tradições bantos, a emergência desse tipo de práticas mostra que os românticos lusófonos estiveram menos afastados delas do que os neo-clássicos. Ainda assim, a poética do romantismo rejeitou explicitamente, em nome da autenticidade expressiva, todas as engenhocas barrocas, incluindo as meta-literárias. É o meramente literário (excepção feita a Novalis) que os afasta, junto com Verney, das práticas anteriores em nome do real e do actual. O que o romantismo veio trazer de novo foi essa visão da poesia e da história literária que transformou a conceituação dos seus termos-chave (10). No caso português, pelo menos, a transformação conviveu com o decalque substancial do "esquema elaborado pelos árcades sobre a evolução da nossa poesia desde o final do século XVI" (11).

A aliança entre a retórica neo-clássica e a arte é, no entanto, um dos factores que distanciam a poética romântica do « Verdadeiro Método de Estudar» . Ela só não torna balofa a arte por causa da já citada subjugação do engenho ao juízo. Feita para criticar o poeta barroco e bacoco, essa fórmula era justamente a receita que se iria antepor à romântica, onde haveria "furor" mas não "gravidade", nem "juízo" para aplicar o engenho (a capacidade de criar imagens) "onde deve" (12). Entre barrocos e românticos, apesar da rejeição do barroco pelo romântico, havia um desequilíbrio, uma irracionalidade, que afugentavam o racionalismo de Verney.

O juízo tem uma tripla função nesta fórmula racionalista:

1.ª) serve para aplicar correctamente as "ideias semelhantes e agradáveis" (as desagradáveis ficavam para os românticos - e no entanto para Bocage também);

2.ª) serve para conjugar o conceitos de semelhança (que estava na base das metáforas) e de verosimilhança (o parecer verdade, em que ela é tão importante quanto os nossos condicionamentos culturais e, portanto, quanto o leitor);

3.ª) serve para regular, pela correspondência das imagens com uma visão iluminista da natureza, essa conjugação dos dois conceitos, de modo a produzir imagens belas e credíveis ao mesmo tempo.

O bom engenho, para além de controlado assim pelo juízo, é definido numa rigorosa equidistância em relação ao "engenhoso" barroco e ao "genial" romântico: ele sabe regular a invenção, a aproximação e a comunicação das imagens, dando vida às ideias correctas mais do que aos truques da linguagem. O mau engenho (na verdade o falso engenho) consistiria em copiar mecanismos, instrumentos e ideias dos outros - havendo ainda um terceiro tipo de engenho, o misto. Mas mesmo aqui, no seio desta equidistância, pela defesa da importância das ideias (dos conteúdos) face à elocução, ainda que num relacionamento sempre condicionado pelos conceitos de semelhança e verosimilhança, e pela crítica à mera reprodução de achados alheios (apesar da imitação dos bons modelos), o discurso de Verney estabelece mais algumas pontes com as teorias românticas posteriores.

Na classificação dos géneros o neoclassicismo parece esmagador. Desde logo pela distinção entre poemas dramáticos e narrativos, onde retoma a diferença entre epopeia e drama de Aristóteles, que integra e supera a de Platão: no dramático temos acção viva, no narrativo o discurso apresenta-se sozinho, sem acção viva (Aristóteles diria que o dramático se realiza "mediante as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas" (13). Isso devia levar a uma denominação diferente, entre modo mimético ou dramático e modo discursivo, se não estivéssemos no século XVIII e se o desenvolvimento do raciocínio não fosse barrado pela diferença entre imitação de acções e de estados de alma.

No dramático entram a comédia e a tragédia (14), e no narrativo (que tanto é o de Platão quanto o de Aristóteles) é feita a separação pelos contextos comunicacionais ("poesias que se cantam" [odes, hinos, cantigas], "as que se lêem" [doutrinais, como os poemas de Lucrécio e a Física de Epicuro; históricas e oratórias] e os "panegyricos" ou género demonstrativo ["epitalámios", "epicénios" ou "apoteoses", todos cantos de louvor - o primeiro aos que se casam, o segundo a "outros", o terceiro aos deuses]).

O tipo de classificação e os exemplos, é fácil de ver que estão marcados pela cultura greco-latina de forma decisiva e com o formato que o neo-classicismo lhe dava, muitos séculos depois das lições de Platão, Aristóteles e Horácio. A esse propósito vale a pena comparar a genologia desenhada por Verney, a régua e esquadro como o Terreiro do Paço, com a de Cândido Lusitano (Francisco José Freire), que Fidelino de Figueiredo comenta com entusiasmo.

A classificação de Freire é também a da tríade romântica e ainda a dos modos platónicos, não ignorados por Aristóteles: dramática ou representativa seria a obra em que o autor "se occulta", introduzindo outras personagens; lírica seria aquela em que só fala o autor (fica, portanto, no lugar do modo narrativo simples de Platão); épica , se as duas modalidades enunciativas se apresentam juntas. O critério distintivo não é bem o mesmo de Verney, porque mais próximo das modalidades platónicas e da conversão de uma delas à lírica. A sua genologia aponta mais, por isso, o passado e ao mesmo tempo o futuro. O próprio Fidelino compara o quadro genológico de Cândido Lusitano com o de Lacombe, que teria seguido "o mesmo critério", remetendo-se em nota para a « Introduction à l'Histoire Littéraire», de 1898 (15). A comparação repete-se em A « Crítica Literária como Ciência» (com nota a citar a p. 43 da « História da Crítica Literária em Portugal» ) onde Lacombe é comentado em pormenor (16).

Fidelino de Figueiredo é precoce também, dado o seu sentido crítico. Antecipando em várias décadas a crítica de Genette , aponta a Francisco José Freire o não ter percebido que "os antigos e os poetas e críticos da Renascença nunca quizeram significar com o termo poesia épica o processo duplo, ora dramático ou dialogado, ora de narração pelo poeta; olhavam principalmente aos caractéres impressivos, grande e elevada acção, ser obra para se ler e não para se vêr representada" (17). Pelo que Fidelino propõe a terminologia de literatura subjectiva, dramática e mista para esses modos, num esboço que será ampliado em « A Crítica Literária como Ciência» (18), visando ultrapassar a "restrição de" o romantismo, com a sua "confusão de géneros", ter tornado obsoleta a classificação. Sendo embora essa a restrição, a resposta que lhe dá aproxima-o da classificação de Verney. A genologia exposta em « A Crítica Literária como Ciência» constrói, portanto, um diálogo profícuo com as de Verney e de Freire, mas, por acaso ou não, mais com a de Verney - o que vamos ainda ver melhor.

.
.

(1) Fonte: « Verdadeiro Método de Estudar» , v.'s II e III, cartas 5ª, 6ª, 7ª e 8ª.

(2) Op. cit., p. 63.

(3) Op. cit., p. 64.

(4) V. Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa , Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1971, pp. 142-160.

(5) Id., ib..

(6) Op. cit., p. 63.

(7) Margarida Vieira Mendes, «O Conceito de Poesia na 2.ª Metade do Século XIX.» (v. abaixo), pp. 69 e 81.

(8) O que romperia a ligação com a realidade, a natureza, tal como teorizadas pela enciclopédia iluminista.

(9) Em « Quicôla: Estudo », Évora, Pendor, 1988.

(10) V. Aguiar e Silva, op. cit., p. 160

(11) Aguiar e Silva, op. cit., p. 166. V. igualmente as pp. 167-174.

(12) « Verdadeiro Método de Estudar », ed. cit., p. 131. O jogo de palavras citadas inclui termos de Cavaleiro de Oliveira ("furor" e "juízo", este comum a Verney).

(13) Poética, trad., pref., intr., com. e apêndices de Eudoro de Sousa, 5.ª ed., Lisboa, IN-CM, 1998, p. 106.

(14) Fidelino de Figueiredo acrescenta-lhes o "mixto", que é a tragicomédia.

(15) Paris, Hachette, 1898.

(16) Ed. cit., p. 24.

(17) Op. cit., pp. 74-75.

(18) pp. 25 e 26.