FRANCISCO SOARES A morte dos poetas Colagem com poemas de Maria Sarmento |
Quando tu partiste. Lavaste as tuas calças pretas Como nunca tinhas feito; Passaste as cinco camisas Para poderes vir buscar as outras Como nunca tinhas feito;
Nunca mais vieste buscar as camisas… Nem trazer a metade que roubaste à lua.
II Agora que sequei Podes regar o pó dos dias Com a tua passada Como antes eu regava as rosas: Como o vidro dos outros nos desconhece!
Fecho com cuidado maternal o grito Dentro das persianas; Ato à roda dos cabelos da noite Uma franja de riso no negro do céu: Peço à noite, a dos gestos sossegados, A serva humilde, Que leve nos cabelos a poeira de luz Que ilumina a janela do outro lado.
Ainda sou eu, mesmo que o dia raie E eu não me veja de outra cor que as rosas Brancas dos mármores e dos lírios. Como se branca morrendo eu me não visse Da cor dos lagos que me reflectem dormindo Quando a lua é barco fugido do negro dos céus. Eu sou um navegante de palavras... Dou ao mar o rumor do vento falso, Falho todas as rotas, acerto a tempestade E, por querer perder-me, achei surpresa Quando me vi parada olhando o longe. Chamei por mim como numa montanha O eco segue a voz que ali não houve E o silêncio é espesso como o abismo Onde me deito todas as noites da viagem Que o tempo engole porque o filho é dele. E a lua, no seu ventre liso e frio, Chama à terra firme a sombra do navio Onde outrora julguei ter embarcado. Não fui eu que cheguei chorando, Era outra a nau e a voz era emprestada. Chamei por mim, de novo, e de novo O vento frio fustigou a minha voz E abriu no mar uma falsa clareira, Um breve errar de luz.
III Que agonia, a lenta espera Por uma imagem que resolva o dia! Que incerteza nas vozes e nos risos e nas lágrimas... Que estranheza de ser me invade e narra, enfim. A história de um vazio contra o vazio que há no dia. O tempo explica, empurra, arrasta a contingência De ser a anónima expressão de muitos rios parados, A história que nunca foi porque não tinha que ser. E contudo, ser humano e sadio como as bestas, Transbordou do céu nesta paisagem de chumbo Com o olhar perdido Com que o poema dá às pombas a brancura, Ao céu o movimento de asas soltas.
Olho os astros e o meu olhar de terra Faz sementeira de asas no polimento escuro. Que palavra de voo ágil e leveza eterna, Mapa sem escala na inexistência das viagens, Dará no chão do céu reflexos de poema? Não dês à sílaba ca´da na palavra como gota de água Senão o sopro que enfola as bandeiras e as ondas. Fá-los voar, esses rumores secretos e profundos. Abre as vogais frente aos navios, o cais É um perfil de vento para as gaivotas, de longe… Atira as sibilantes para a montanha, vê-as cair no mar A pingar a voz da saudade num movimento de alma, Num poema infinito, renascido a cada ditongo de mel e astros, De azul e espuma, de flocos de tristeza. Guarda no côncavo da mão a concha misteriosa E, se um deus tem sede, Que beba dessa mão as lágrimas que não choro.
IV Quem me trouxera um licor de ambrósia Para sorver do ar este pano de vento Que se me prende ao rosto, Que me persegue em finisterra, finistempo, véu. Somos do ar quando seguimos Pelo branco dos olhos o rumor das aves. O nosso corpo é leve como a nossa vontade De respirar a pausa no intervalo da voz, A flor sem flor que adormeceu sem astros, A flor sem ramos arrancada e nua Sem amanhã para as mãos. Um nada rodeado de nada Para arder em silêncio.
Vem, ágil pomba negra da noite, Cobrir com a tua grande asa A memória Por onde a nossa inquietação andou perdida Como em palco deserto. Só desta vez, só uma vez, ainda, Colhe essas rosas de saudade. Coloca na jarra os caules com tamanhos desiguais E dispõe, assim, de mim, em memória, Em cada laço que faço.
V Em cada laço que faço Perfaço o traço, Baço o dia lasso Que atiro do terraço Ao espaço. Faço laçografias Solto o sonoro laço. Em cada espaço de dias
Uma folha aponta ao norte, A mais pequena e frágil; Para o sul vira a rosa vermelha, A de sangue e de vida; A outra, branca e triste, Atira-a para o mar Onde Ofélia Anda perdida ainda. Que dessas rosas, tantas, Que a jarra contém Possa ficar a mais viçosa, A rosa do amor, A que nunca morre E só em saudade se colhe.
VI Bebo uma lágrima quente e o sal que me sabe Desagua no mar o desejo de distância. Por dentro do mar é onde deve estar Quem assim se entrega ao acaso das marés. Só para ouvir o rumor antiquíssimo Dei por ganha a viagem e o naufrágio. Perdida, nunca estive tão perto de saber Que nunca é a mesma água. Ouvimos outro som quando julgamos Atravessar as pontes com outros barcos em baixo E outras viagens por dentro da nossa viagem – E por não o sabermos é que vamos na amurada Como um embrulho ali deixado pelos deuses.
Mas que sopro invisível se liberta Da ideia de vento que o telhado abriga Para deitar o sonho antes da hora?... Como andavas perdida, entre quintais, Ó vinha da tristeza, ó canto chão! Ó melodia adormecida nos meus ouvidos! Ó mão que afaga, ó colo que se oferece, Ó noite equilibrista Na luz quente de um circo de lona, Numa campânula, numa bolha de água morna A querer fugir pela janela. Devolve-me ao meu país do mar E deixa-me dormir no coração das ondas Que os poetas também morrem, Mas morrem mais devagar do que nós.
A morte dos poetas É qualquer coisa que continua a ser árvore Mesmo sem a raiz ou para além dela. A morte do poeta começa muito antes Da noite e do dia da nossa mesma morte. A morte dos poetas é uma ficção nossa Como a vida é uma ficção de poetas.
(colagem com versos de Maria Sarmento) |