O resto da
estória já conhecemos: é a memória da humanidade e a sua identidade
também. Mas não só: ao firmar, numa cisão inicial, a identidade e a origem
dos homens e do mundo, afirma-se a cisão inicial no que era uno desde o
início também. Os filósofos cristãos e muitos heréticos e de credos
diversos conhecem o problema: como pode haver queda e mal se Deus é
infinitamente e infinitamente bom? O problema do mal, da origem do mal, é
o problema da saudade e da nostalgia, é o problema do homem e da mulher, é
o problema da alma e do corpo, de Deus e do Diabo.
O infinito só cria em si próprio, esse é
o pressuposto comum. Se houver outro para além dele, em algum ponto na
geometria da mente somos obrigados a encontrar uma fronteira, uma
finisterra para o infinito e caímos no paradoxo. Dito religiosamente:
abrimos os olhos para o mistério.
Ora esse outro existe: somos nós. Existe
e a sua existência constitui o primeiro paradoxo identitário. Podemos,
portanto, recriar os patriarcas: eis o mistério da identidade, que é
também o mistério da fé. Não conseguimos pensá-la sem que de um fiquem
dois e sem que esses dois se diferenciem logo um do outro como Adão e Eva
ou Deus e Adão. O mesmo, o idêntico, sendo aquele que se define como igual
ao outro, portanto imitação do outro, feito à sua imagem e semelhança, é
logo imagem e semelhança. Há uma diferença básica, substancial: a da
origem e da cópia, mesmo quando cópia viva. Uma diferença com que nos
deparamos hoje quando nos dizem que o homem pode vir a reproduzir-se
mecanicamente, fora dos meios tradicionais característicos da espécie. Do
que imitou virá sempre, então, uma diferença, porque se imita o que está
vivo e o que está vivo muda e muda variamente. Se a imitação não muda é
ultrapassada pelo que foi imitado. Se muda é só depois de ver a mudança na
origem e, portanto, quando muda já na origem se dará qualquer outra
mudança. A partir do instante em que a duplicação, o simulacro, o
idêntico, a imagem se concebem ganham natureza e definição diferente,
própria. Podemos por isso dizer que a identidade como algo igual a si
próprio ou igual a outrem, logicamente, não existe.
Num dos seus poemas mais conhecidos, M.
António escreveu: "ninguém se ri como nós". Quer dizer que somos
definidos, nesse momento, "nós", pelo riso aberto, solto, franco. Ao
ouvirmos isto lembramo-nos certamente de uma gargalhada que exemplifica o
traço identitário. Ouvimo-la ressoar na engrandecida memória da infância.
Depois dormimos descansados pensando: é isso, somos mesmo assim, somo os
mesmos, que riem dessa maneira. Mas o mesmo é outro e o poeta começa o
verso seguinte completando a frase: "nos ríamos". Ele transporta a frase
de um verso para outro e, no seu conjunto, o que temos é: "ninguém se ri
como nós nos ríamos".
Reparem bem: quer dizer que já não rimos
assim. Portanto, a nossa identidade fica definida por uma característica
passada. Nós somos os que ríamos assim. Se já não o fazemos, estamos
parecidos com os que nunca o fizeram pelo menos nisso. A diferença que nos
define ficou lá atrás. Pela memória comum nos definimos então. Mas isso
implica, logicamente, que não somos como nos definimos e, portanto, esse
passado que nos define já é menos operativo para a nossa definição actual.
E uma vez que a memória também é dinâmica, vamos constantemente reformular
o nosso património comum; quem não acompanhar a mudança é que vai perder,
isolar, a identidade colectiva, reproduzindo a cisão entre a origem e a
cópia. A memória que identificará os nossos filhos, a sua memória comum,
já não será idêntica à nossa e no entanto eles vão reclamar-se, muitas
vezes, da mesma identidade que nós. Eis o mistério do mesmo: ele é
diferente de si próprio.
Continuando com a poesia angolana é
interessante reler, nesta perspectiva, o famoso verso de Agostinho Neto:
às nossas lavras havemos de voltar. A tudo o que nos definiu, havemos de
voltar. Mas a quais lavras? As de milho? Essas são nossas só a partir de
uma certa altura, porque antes não havia milho ali. Éramos angolanos antes
do milho ou somos depois do milho? E quem volta? A memória sem dúvida, a
memória que nos identifica. Mas, quando voltamos, quando Agostinho Neto
regressa a Luanda para assumir o controlo da independência, ele ainda é o
mesmo? Passando a outro povo e outra identidade lusófona: segundo Fernando
Pessoa, o português não é uma nau que foi à Índia e não voltou? Os
portugueses de hoje são os mesmos de há 500 anos? Estes, que aceitam o
nome "tugas", que enchem de bandeiras nacionais as janelas para vitoriar
uma equipa dirigida por um brasileiro? São os mesmos que embarcaram com
Vasco da Gama naquele tempo? Sem greves? Sem escândalos? Sem satélites? Já
com o retorno das ondas no sangue? Sem saberem para onde vão? E mais, são
os mesmos de que falava Camões?
Nem quando reencarnamos somos os mesmos.
Por isso às vezes é difícil perceber o espírito que nos anima e reunir
traços identitários, ou seja, repetidos ao longo de toda a nossa história.
Alda Lara escreveu: "e apesar de tudo
ainda sou a mesma". Mário António escreveu também: "sou, concerteza, o
mesmo". Porquê, no entanto, estas expressões: "apesar de tudo", "concerteza"?
O uso que fazemos da língua também conhece o problema da identidade e a
língua progride na diferença sem que deixe de se julgar a mesma. "Apesar
de tudo" quer dizer, nesses versos, que a pessoa se mantém fiel à memória
comum apesar de já ter outra, a memória do que se passou desde que partiu;
"concerteza", no verso de Mário António, quer dizer "talvez", porque a
linguagem realmente muda tanto que hoje, muitas vezes, dizemos
"concerteza" e "certamente" quando alguma dúvida nos enruga a testa e
cinge os olhos. Assim é a língua e por isso numa língua entram todas as
identidades e dela nascem outras línguas sempre, ao passo que outras vão
morrendo. Como as pessoas.
Wittgenstein criou a imagem das
semelhanças de família. Em que medida cada membro de uma família tem a
identidade dela, ou seja, em que medida essa identidade se revê em todos
os membros da família, vem deles? Pode alguém ter o nariz do pai, o olhar
do avô, o sorriso da mãe, o andar do tio, não passar de retalhos de
antepassados e ser ainda gente? Vai levar anos até que o reconheçam a ele
como próprio. Que o reconheçam. Mas a identidade é mesmo assim.
Reconhecendo algumas semelhanças identificamos o rebento com a família. E
as diferenças, não fazem parte da sua personalidade? Fazendo, não passam a
integrar o património identitário da família? Como, pois, podemos pensar a
identidade sem pensar a diferença que a dinamiza e acrescenta? A
identidade de um povo é feita procurando pontos comuns entre os vários
povos que o formam. Semelhanças familiares. Uns vão pela cor, outros pela
genealogia, outros por uma luta comum no passado, outros porque já nos
conheciam os pais, outros ainda porque a gente se ri daquela maneira. ora,
como a das pessoas, a identidade de uma nação é feita sobre semelhanças
entre as suas várias gerações. Mas, de cada vez que a definimos, ela já
começou a ser outra porque é essa a principal condição da sua
sobrevivência, que haja sempre mais uma geração por considerar. A
semelhança entre a primeira e a última geração pode já não ser nenhuma. O
conjunto de características que define cada geração nacional, nessa
configuração de conjunto, nunca se repete em outra geração. Esse mesmo
conjunto só pode ser deduzido após a morte da geração, porque ela vai
mudando ao longo da sua existência e das suas interacções. Porque o
simulacro não é o próprio e o próprio está sempre a mudar, está vivo.
Basta que haja algumas coisas parecidas entre duas gerações no mesmo lugar
e dizemos que somos os mesmos. Mas, da geração nova que envelhece para a
seguinte haverá mais diferenças, dessa para a outra mais, por aí fora, até
que todas as semelhanças entre as duas primeiras gerações foram já
substituídas. No entanto, nós dizemos: somos, concerteza, os mesmos.
Apesar de tudo ainda somos os mesmos.
Quando se discutia muito a natureza ou
definição da literatura, houve naturalmente quem se lembrasse disto. A
literatura define-se por semelhanças de família. Mas o problema da
literatura quando a queremos definir é um problema de identificação, de
identidade. Ou não conseguimos defini-la, porque nos apercebemos da sua
infinita variedade, ou, quando a conseguimos definir, ela já mudou. Por
exemplos: quando se tornou consensual que a literatura era imitação,
apareceu o génio romântico e o espelho quebrou-se. Quando a visão
romântica da literatura se tornou consensual ou quase, apareceu o romance
de tese e o espelho colou-se momentaneamente. Podíamos continuar na
dialéctica das gerações e dos espelhos, mas a conclusão a tirar é esta:
quando se define, aquilo que se definiu já tem que ser redefinido.
A literatura trabalha assim. Desde logo
porque o escritor tem que ser original. A autoria é um sinal de diferença,
de propriedade, um sinal distinto. Porém, quando um escritor se torna
igual a si próprio torna-se um chato e, como ler um livro dele é o mesmo
que ler todos, na verdade vamos deixando de o ler. Podemos coleccionar-lhe
os livros na estante mas não os lemos. A condição do escritor é, portanto,
essa: ou muda, ou morre.
O trabalho poético é todo ele baseado
numa constante mudança, é uma constante experimentação da possibilidade de
mudar a linguagem e a língua, mesmo quando se lhe chama "correcção", ou se
diz que "fala e escreve correctamente". A poesia codifica e descodifica.
Lança um enigma e logo a seguir dá-nos condições para o resolvermos,
portanto, para que ele deixe de ser o que é. A descodificação, por sua
vez, confrontada com uma releitura ou com a leitura de outra pessoa, ora
recodifica, ora suscita novo enigma e vai transferindo assim o carácter
enigmático da poesia. A linguagem poética está sempre a levar uma coisa
inesperada para o lugar de outra esperada. Ao mesmo tempo está sempre a
identificar-se com o indizível, porque precisa de mudar a língua para
dizer o que quer, portanto, quer dizer algo não dito ainda, não
"conseguido". Se a linguagem é metafórica pela sua própria função e
definição, a poética é duas vezes metafórica. A poesia traz ao idêntico,
ao simulacro, ao já metaforizado por uma língua, a efervescência, a
intranquilidade, a promiscuidade, a religação ao outro e pelo outro - que
entretanto mudou. Nesse constante revirar ela sabe também que o outro,
diferente e mudado, somos nós, é uma imagem de nós. Somos, concerteza, os
mesmos. A identidade e a literatura constituem-se na descoberta constante
de semelhanças e diferenças que se transformam. E mais: elas nunca são
percebidas como foram pensadas. O poema que o leitor imagina dificilmente
será o poema que o autor imaginou. Daí que muitos escritores fiquem
surpresos com interpretações inéditas das suas próprias obras. Mas não têm
que ficar. Então não sabem o que fizeram? Não sabem que deixaram lá uns
buracos para a gente remexer? Porque é da natureza das obras que a sua
identidade se ajuste à do leitor e seja, portanto, aberta. A função das
artes num processo identitário é, portanto, não só a de dizerem como nós
nos ríamos, mas também que já não rimos assim e deixar, em cima disso
tudo, um sugestivo sorriso. Por um irrisório sorriso, nenhuma literatura é
canónica. No ensino pode haver cânones literários e se calhar fazem falta.
Mas na poesia o cânone é a cristalização, é a morte, é o simulacro que
vamos desmentir com vivacidade e surpresa nos olhos verbais. Por isso
também, ela não pode ser ensinada se não ensinarmos os alunos a desmontar
os cânones. A desmentir as leis. A desmembrar os esqueletos na anatomia
das almas.
É de ver como funcionou a literatura
canónica em relação ao cânone identitário angolano. Vou dar dois exemplos
apenas. Depois de nos mostrar, de forma convincente, que o herói não muda,
ao mesmo tempo nos definindo claramente o herói, o que ele devia defender,
como devia agir, enfim, depois de criar o cânone do herói nacional típico
da luta urbana contra o colonialismo, Luandino Vieira escreve Nós, os
do Makulusso e João Vêncio: os seus amores. Nessas obras nem
sei bem se ainda há heróis. Há modelos de inspiração mas não modelos
éticos. Há protagonistas e o que se explora é a sua complexidade, as
contradições, razões e sem razões de cada um. Já não há heróis. Apesar de
tudo somo nós, os do Makulusso, mas afinal até nós, aqui desse bairro,
somos complicados. Segundo exemplo: depois de canonizar uma utopia
angolana fixando-a no Mayombe, com respectivo código de conduta
para adolescentes em As Aventuras de Ngunga, e respectivo
anacronismo histórico eem A Revolta da Casa dos Ídolos,
Pepetela escreve A Geração da Utopia e desmonta o mito contando
como ele se perdeu... ou se revelou mítico. Mas a geração é, concerteza, a
mesma. A da utopia que não foi nem será.
Por fim, o discurso que até agora
sustentou a minha identidade enquanto enunciador vai terminar. Serei,
concerteza, o mesmo, ainda que mudo. Ou seja: outro. Somos aqueles que
mudam. Agora, depois do que disse, peço umas palavras emprestadas a Carlos
Ferreira e despeço-me: "que história queres que te conte?" |