Manuel Almeida e Sousa |
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A MAÇÃ DE ERIS - POEMA
DRAMÁTICO DE MANUEL ALMEIDA E SOUSA |
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I os sacos de plástico riem e as navalhas espreguiçam-se no leite derramado. o espaço escurece para dar entrada a páris que avança até à boca de cena. senta-se. abre um jornal. lê. do fundo surge éris (a deusa da discórdia) que avança suavemente sobre dois bancos de cozinha. enquanto caminha dirá com a sua voz enrouquecida pelas noites perdidas com o deus da guerra: - acorda-me com os esconjuros da noite perdida. bebe-me debaixo dos cortinados. despeja a raiva nua que transportas no teu balde. eu sou éris a deusa. uma tonelada de linho é a minha moeda porque eu sou o décimo planeta do sistema solar e numa ogiva perfeita gira dysnómia minha filha quando próximo de páris acaricia-o e oferece-lhe uma maçã (o pomo da discórdia). páris segura o fruto. a mão treme. ao fundo (à direita) ulisses. do outro lado uma marioneta. estão frente-a-frente quando ulisses dedilha o seu discurso: - miro e remiro o vapor da migração florestal oh!... copulam os frascos dos condimentos sim... o almoço é sempre um sonho de Da Vinci. aquele vulto que se ergue à minha frente é o meu corpo o meu corpo de madeira e dentro dele entrarei em tróia e vingarei a morte de aquiles!... bombeio como sempre a cauda do teu vestido de baile. ulisses aproxima-se da marioneta. com ela desenha um largo passo de dança. a cena demora. muito. e para a ilustrar deveremos ouvir vozes próximas da demência. só então ulisses pintará a cara de preto com uma trincha e dirá: - sentemo-nos no vão da porta com os olhos postos no teu sono. ah!... esta é a raiva que despes para catapultar a subsistência? |
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II páris e éris mantêm-se em cena. éris desliza para o fundo. páris prende o seu olhar à maçã. ri. do bolso do seu casaco tira uma pequena imagem de afrodite. oferece-lhe o fruto: - bela és bela ésss bela ésssss bela ésssssss bela ésssssssss bela beeeeeeeeeeeela como sempre. nós e todos os troianos construiremos um novo império numa bota nós e todos os... e todos nós sai. um relógio faz-se ouvir: tloc tloc tloc tloc tloc tloc segue-se a gargalhada de éris e o toque das trombetas. na penumbra e ao fundo, podemos ver éris e ulisses. dirá ulisses: - que serei eu sem orelhas? responde éris: - serás simples e honesto. formoso e duvidoso de todo o tinteiro portador dos teus sorrisos. ulisses (depois de muito pensar) dirá: - nenhum de nós deve seguir o outro... caminhemos juntos até ao destino encosta acima e no topo... estaremos aptos para escorregar. assim começa o fim da guerra de tróia. |
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III Sentada sobre o parapeito com os pés suspensos - por cima da multidão, éris. parece observar os sonhos do mundo. com a mutação de luz evaporar-se-à rapidamente. uma projecção de paisagens interiores, cemitérios e depósitos de telas nunca antes pintadas nem vistas. entrementes a voz da deusa faz-se sentir: - tudo o que me descreveste, não reconheço. empresta-me os teus olhos para decorar aquela moldura descascada e muitas vezes olvidada... empresta-me empresta-me... é aqui que o minotauro se liberta do seu labirinto indecifrável e, entra em cena. na sua solidão reconhece por trás da máscara de um espectador um asterion. num segundo golpe de vista descobre europa. europa, inclina a face para o sol distorcido, levanta-se com as mãos em concha ao redor da boca para gritar: - os nossos filhos!... asterion!... onde estão os nossos filhos?! o minotauro sai de cena derretendo-se em lágrimas e, o espectador vem ao palco: - ela estacionou sobre o parapeito atrás do tempo que passa nas escadarias busca respostas e justifica a revoada de aves em tumulto só depois emergem as sete longas badaladas semicerrou os olhos para avistar as primeiras horas as que admiram suspiros tão longos quanto os que brotam dos redemoinhos de vento que agitam silêncios e cabelos brancos - O que sabem vocês? – grita europa - O que sabem vocês? – repete enfática. confusa salta do parapeito para o chão e assustada, a paisagem, perde pouco a pouco a cor. os pássaros cansados, numa sequência desconhecida, não deixam espaço livre para apoiar as mãos. chilreiam apenas. a voz de éris acompanha a sua entrada: - o vento forte bateu à porta estou desorientada vou gritar:... disparem os botões da camisa! pois... as espadas são tão absurdas quanto apressadas e os carros na rua permanecem esquecidos do sinal aberto meu amor!... (para o espectador) quando passo pela tua porta dormes de mansinho sonhas com uns prados frescos como se fosse já domingo ah!... como te amo... com a fatalidade de uma folha, a última a cair da árvore, éris inicia a retirada do palco e, com um ligeiro movimento do pescoço, vira a cabeça em direcção à marioneta de ulisses. mantém as distâncias - olha apenas o tempo suficiente para se certificar de que os seus olhos não a enganam. exibe aquele olhar penetrante que nos surpreendeu logo no primeiro retrato. |
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