A marçaria do gado estorcegado

José-Luís Ferreira

De raiz alentejana, oriundo de Almodôvar, Rako – que expõe desde 1964 e se inicia na criatividade gráfica como cartoonista (no jornal de humor «o Miau») – sediar-se-ia na Figueira da Foz, dez anos mais tarde.

Leccionou Artes Visuais, tendo realizado, paralelamente à exploração experimental da pintura, trabalho gráfico-publicitário e de cartazista, em propaganda governamental de função político-social (no pós-25 de Abril).

Com apreciável rigor técnico e compositivo, a pintura de Rako assume-se caractereologicamente definida por uma fidelização estrutural – actualmente, porventura, mitigada – ao sacralismo geométrico que norteia a dinâmica abstraccionista de Fernando Lanhas e Nadir Afonso, de Waldemar Dacosta e Tom (Thomaz de Mello), uns emergentes da morfologia arquitectónica, outros da organização e da gestão do espaço em plano gráfico.

Algures (entre Novembro de 2002 e Janeiro de 2003), Rako surgia curricularmente apresentado como um «artista com vivência entre as culturas Africana e Europeia que lhe enriqueceram o leque de opções artísticas e os horizontes da cor, do traço e da forma» (1), podendo, eventualmente, considerar-se serem suficientes essas vago-profundas raízes para o entendimento da sua obra, com projecção (mais ou menos especulativa) no actual estádio da sua imparável evolução.

Compreendido como […] «um artista urbano» – e analisado como fautor (actor e autor) de – «um mundo de presentificação das funções místicas do pensamento» (2)[…], Rako transpõe, hoje, as fronteiras duma fixação dependente da linguagem hermética do abstraccionismo geométrico e faz o percurso da aventura, no domínio ruptural do paisagismo lírico, pesquisando a morfogénese da sua paixão inata pelo arte do pictórico, comunical e intimista.

Instintivo, bergsonianamente intuitivo e racional, ou, citando: […] «coerente e lógico, diria mesmo neológico, na sua incessante preocupação da redundância plástica tornada corrente e evidente. Incita ao pluralismo singular e particular, fugindo do estatuto de ordinário e de vacuidade» (3), a sua criatividade plástica adquire um estatuto de privilégio na maturidade e, abandonando preocupações de perfeccionismo e meticulosidade, liberta-se e voa, ronda o revivalismo do expressionismo primordial e arrasta-nos, consigo, para o objectualismo da pintura pura (ou bruta) com a notável força da intransigência, na eloquência da afirmação sólida, forte e suficiente.

Não apenas dos petits mondes clamorosos do mediatismo crítico das metrópoles culturais sobressaem artistas eleitos para a representação da nossa contemporaneidade, na memória caleidoscópica do visionarismo ou dos avatares da arte histórica!

Nós – os que nascemos e retornámos (tarde ou cedo) a esta ponta ocidental da eterna decadência europeia – nem sempre (…nem nunca!) nos apercebemos da profundidade e dimensão do trabalho desenvolvido pela investigação criativa dos artistas autóctones, nossos compatriotas. A bastardia congénita da nossa mundivivência lusitana corta-nos, amiúde, a raiz, do pensamento, generaliza e subestima a limpidez da nossa apreciação, na bruma átona do desprezível provincianismo a que o pensamento crítico viciadamente adere.

O espaço físico que, virtualmente, concita a dimensão da obra de Rako – aqui e agora – exposta, distancia-nos do seu percurso, da sua amplitude e da sua anterioridade, consumida no struggle for life dos anos da sobrevivência, mas não impedirá de um juízo admirativo, nem o observador sensível, nem o connaisseur sábio e experiente, o coleccionador e o investidor insubmissos ao racionamento cultural, imposto pela ditadura (im)popular da mediocridade!

Muitos aspectos da porfiada pesquisa estética e técnica do pintor, podem – para a maioria dos visitantes – ser invisível, no âmbito desta mostra, onde não se perceberá que ele «tem explorado a assemblage, a collage, as raspagens de tinta e de máscaras, para obter outras semânticas, mormente geométricas, utilizando como suporte o pano cru, ou apropriando-se da lona para aquisição matérica (de massa corpórea). No fundo, as suas obras são mixed media, baseadas na experi-mentalidade .» (4).

Se a ambiguidade imagética é um potencial enriquecedor do visível (5), se os conteúdos de silêncio poético conferem eloquência à mensagem estética (6) e se uma autenticidade empática essencial flúi da obra plástica (7) (do pictural, neste caso), estes três pontos fundamentais intercomplementam a definição – num plano de veracidade – de o observador criticamente exigente se encontrar na presença de um acto criativo consumado.

Não enjeito que este último parágrafo inteiro possa ser uma receita. Podem, contra ele, lançar-me uma OPA, ou requerer uma «providência cautelar» mas é, porém e definitivamente, assim, que entendo (bem-acompanhadamente) a obra do Rako.

 

José-Luis Ferreira

 

(1) in «o Vinho é uma Arte» Livro-álbum/Catálogo da Exposição ed. Luís Pato

(2) Galvão-Lucas, arq. Manuel Luís (ESSE Coimbra)

(3) Chuva-Vasco (RAKO – Gal. Minerva, Coimbra)

(4) Chuva-Vasco (inédito)

(5) segundo Pierre Francastel e René Huyghe

(6) segundo André Malraux

(7) segundo Wilhelm Worringer

 
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