Ray Birdwhistell – antropólogo Americano que também esteve em contacto
directo com a dança contemporânea e que especializou-se em movimentos humanos e
comunicação não verbal – lançava, em 1952, um pequeno e intrigante livro –
Introduction to Kinesics.
Birdwhistell chamou de kinesics, cinésica em Português, a comunicação corporal
automática, aquilo que comunicamos com o movimento dos nossos corpos sem
nos darmos conta.
Movimentos das pálpebras, músculos faciais, pequenas e rápidas expressões,
posições do corpo em movimento, braços, peito, ligeira curvatura do pescoço, mãos. Birdwhistell dizia: «não nos comunicamos, participamos da comunicação».
Munido de gravadores ele chegou a fazer um estudo estatístico sobre o tempo
médio que, durante o dia, usamos para comunicarmos com palavras e chegou a uma
surpreendente conclusão: se eliminarmos o silêncio das conversas, a maior parte das
pessoas não falará mais de doze minutos por dia – todo o resto é comunicação não
verbal.
Ele foi ainda mais longe e demonstrou que apenas 35% daquilo a que chamou
de significado social de uma conversa corresponderia às palavras faladas.
Dividiu a comunicação corporal em verdadeiros quantas, unidades discretas
que chamou de kinemes, ou simplesmente cines em Português, como uma referência
aos fonemas.
Se fosse possível codificar esses cines, teríamos uma linguagem escrita para o
corpo.
Em 1966, inspirado em Birdwhistell, William Condon deu início ao estudo do
movimento corporal das pessoas através de uma exaustiva análise quadro a quadro de
filmes de 16mm.
Condon descobriu que as pessoas ficam, de uma ou de outra forma, sincronizadas
quando estão conversando ou quando estão envolvidas numa mesma actividade.
Logo, Edward Hall viria, ele também, realizar investigações nesse sentido.
Numa das experiências, duas pessoas são conectadas a electroencefalógrafos e
as ondas cerebrais são comparadas.
A experiência mostrou que, quando duas pessoas conversam, as suas emissões
de ondas cerebrais tornam-se iguais, como se se tratasse de um único cérebro.
Basta, entretanto, que uma terceira pessoa interfira – que entre no ambiente –
para que as ondas tornem-se diferentes.
Esse fenómeno faz-nos perceber algo interessante: aquilo a que chamamos de
inteligência e linguagem, seja ela verbal ou não verbal, não são coisas que estão
rigorosamente em nós.
Mais que isso, aquilo que nós somos está entre nós.
A história das palavras ilumina, muitas vezes, a história das ideias – como Herbert
Read e Lewis Thomas não cansavam-se de defender.
E o Indo Europeu – um complexo de línguas pré-históricas extinto há milhares
de anos – encontra-se nos limites do nosso salto ao passado.
A palavra inteligência lança as suas mais remotas raízes ao termo Indo Europeu
*leg, que significava colher, escolher mas que também apontava para uma ideia de
semelhança.
Passou ao Grego como legein, que indica plenamente a ideia de semelhança.
Transformou-se no Latim legere, que – partindo das ideias de colher, escolher,
tornar-se parecido, significa ler. Uma das origens da palavra religião é exactamente essa.
Quando lemos, muitas vezes automaticamente, sem perceber, fazemos exactamente
aquelas operações: colhemos, escolhemos e lidamos com relações de similaridade
ou de contiguidade, que são espécies de semelhanças.
É da raiz Grega legein que surgiu a ideia de logos – que implicava a noção de
semelhança e de escolha, mas também de comunicação.
Ao longo dos séculos, alguns pensadores tomaram o logos como a expressão da
palavra, da comunicação verbal por excelência; mas outros, como Heráclito, Tales,
Anaximandro ou Pitágoras tinham o logos como a ordem das coisas, o que, naturalmente,
implica a linguagem, mas não somente a linguagem verbal.
Uma ideia próxima, num certo sentido, daquilo que entendemos por dharma,
mas acentuando a questão da comunicação.
E se o logos é a ordem das coisas – e ordem nada mais é que o princípio de
diferenciação – ele não pode existir sem comunicação que, por sua vez, não teria
sentido sem a ideia de semelhança.
A palavra inteligência, tal como o termo intelecto, surge da fusão de inter e de
legere.
Ao mergulharmos nas searas do termo Latino inter, iremos alcançar a raiz Indo
Europeia *en, que significava dentro e que passou às expressões Latinas in e inter,
esta última indicando dentro dos dois, dentro de ambas as partes.
Assim, tanto a palavra intelecto como inteligência significam etimologicamente
não uma leitura para dentro, mas uma escolha, um traço de similaridade que é comum às partes envolvidas.
Algo que nunca está apenas num lado.
Curiosamente, a palavra relógio também possui uma profunda relação com aquela
antiga partícula pré-histórica *leg – indicando o acto de escolher e de semelhança.
Associada ao termo Latino re, que marca o movimento para trás, tornou-se relógio.
Isto é, a marcação do tempo nada mais é do que a escolha de elementos que
indicam algo que ficou para trás, que já passou.
Por outro lado, a palavra linguagem vem de língua, desse órgão muscular que
temos na boca. Mas, se o termo linguagem está directamente associada ao nosso
corpo, a um órgão físico, tal não acontece com a palavra voz, que lançando-se ao Indo
Europeu *vac indica tanto a ideia de comunicação como a da divindade.
Deus e comunicação.
Por isso – num certo sentido – é uma contradição dizer linguagem não verbal.
E aí está a indicação de como é antiga a soberania da linguagem verbal sobre
outras formas de linguagem, ainda que uma tal soberania aconteça por convenção e
seja questionável, como mostrou-nos Ray Birdwhistell.
Tratamos de comunicação, que surgiu de outro termo pré-histórico: *mei, que
indicava a ideia de troca, algo que passa de um a outro lado, que está no processo de
transição, no meio.
É daquela antiga expressão Indo Europeia que nasce a palavra município: um
lugar onde as pessoas estão activamente trocando bens de todas as naturezas, materiais
e imateriais.
Associada ao Latim com, que significa a ideia de conjunto, de união, temos o
conceito de comunicação.
Novamente, trata-se de algo que não está departamentalizado num único lugar.
Embora muitas pessoas não percebam, nós elaboramos originalmente as noções
de inteligência e de comunicação como coisas que não nos pertencem, como
elementos que fazem parte de um processo, que são, de facto, um processo entre nós.
Portanto, não chega a ser surpreendente identificarmos uma natureza de sincronização
na inteligência e na linguagem, tomada no seu espectro mais amplo.
Apenas a diferença, o conflito, gera a consciência – mas a diferença traz em si,
inevitavelmente, a ideia de igualdade e ela, a de semelhança.
Só pode haver diferença naquilo que, de alguma forma, possui identidade –
caso contrário não trataríamos de diferenças, mas de coisas não comparáveis, coisas
pertencentes a categorias ou dimensões sem possibilidade de associação de qualquer
tipo.
Por isso, quando imaginamos seres extraterrestres – e a Guerra dos Mundos de
Orwell é um claro exemplo – tratamos de algo que já conhecemos.
Por isso, Platão defendia que tudo o que descobrimos já conhecemos a priori,
antecipando – de certa forma – um conceito que viria a ser estabelecido por Kant
cerca de dois mil anos mais tarde.
Também por isso, o desfecho da Guerra dos Mundos que George Orwell desenha
chega a ser surpreendente, pois é óbvio mas não se trata directamente do nosso
mundo sensível e, portanto, é algo inesperado.
Aspiramos, no Universo, a nós mesmos – sem nos darmos conta disso.
E esse recurso cognitivo pertence ao domínio da auto-similaridade, dos fractais,
da simetria.
Assim, estamos sincronizados.
Mas, qual será a natureza dessa sincronização?
Por que acontece essa sincronização?
Num primeiro momento, somos imediatamente levados a imaginar tratar-se de
um desenho lógico inerente a qualquer comunicação – e seguramente assim acontece.
A questão essencial aqui é a da escala.
Por que em nossa escala a comunicação é algo tão dinâmico – a ponto de tornar
o que vulgarmente chamamos de cultura, também no seu sentido mais amplo – espécie
de zeitgeist, de ambiente total – algo tão tipicamente humano?
Em termos gerais, podemos considerar a inteligência como que permeando tudo
e tomar toda a matéria como formas de memória – de um mineral a uma floresta.
Tudo é algum tipo de memória.
Mas, distinguimos essa memória total de uma outra, que indica um metabolismo
acelerado das ideias, a escala humana.
E nessa escala acelerada que somos nós, a interacção intelectual com pedras,
água ou com vegetais soa como algo sem sentido.
Tratamos, assim, desta escala específica.
Em 1996, na Universidade de Parma, em Itália, Giacomo Rizzolatti, Vittorio
Gallese e Leonardo Fogassi – três importantes neurocientistas – descobriram um novo
tipo de neurónio em nossos cérebros ao qual deram o nome de células-espelho.
Durante uma experiência que visava compreender melhor o funcionamento
cognitivo dos macacos, sendo que um deles tinha a sua actividade neuronal continuamente
monitorada, Fogassi apanhou, por acaso, uma uva. Eles observaram, estupefactos,
que a ao observar Fogassi apanhando a fruta, a actividade neuronal do macaco foi
a mesma que tinham registado quando o animal apanhara, ele próprio, uma uva.
Imediatamente perguntaram-se qual a razão pela qual a simples observação de
uma acção tinha produzido o mesmo resultado, ao nível de complexos sinápticos, que
tinha sido gerado pela acção.
Descobriram que também os humanos possuem aquelas células neuronais a que
chamaram de espelhos.
Esses neurónios não apenas disparam quando um estímulo visual acontece, mas
também quando recebemos estímulos de outra natureza, mesmo através do olfacto, do
tacto ou da audição. Por isso, choramos facilmente quando vemos alguém a chorar.
Para Vittorio Gallese, «a observação da acção provoca, no observador, a activação
automática do mesmo mecanismo neuronal que é disparado pela execução da
acção».
Muito do teatro fundamenta-se nesse fenómeno.
Experimentamos coisas que não conhecemos através de um processo de
espelhamento.
O mais impressionante é o facto de um tal espelhamento não depender obrigatoriamente
da nossa memória, daquilo que já experimentamos antes.
Se alguém faz um movimento corporal complexo, por exemplo, algo que nunca
experienciamos antes, os nossos neurónios-espelho identificam todo o nosso sistema
corporal, os nossos mecanismos proprioceptivos, e tendemos a imitar, inconscientemente,
aquilo que observamos, que ouvimos ou que percebemos de alguma forma. Movemos as nossas pálpebras, músculos faciais ou dedos, por exemplo, em
ritmos paralelos ao de quem está próximo de nós.
Isso faz-nos ficar parecidos com pessoas com quem convivemos durante algum
tempo, ou nos faz mudar quando penetramos mais profundamente em sociedades diferentes
– algumas pessoas mais facilmente que outras.
Acredita-se que as crianças autistas possuam uma deficiência no conjunto de
neurónios-espelho, tornando-as menos capazes de actividades que impliquem a imitação
facial, vocal ou mesmo simbólica.
Essa fascinante descoberta levanta uma série de intrigantes questões.
Os princípios de educação no Ocidente, por exemplo, fundamentados na punição
e na recompensa, passam a ser questionados.
Tudo passa a ser contaminação.
Não dependendo directamente da nossa memória – pelo menos daquilo que
compreendemos como memória de curto e de longo prazo – como uma imagem, um
som, um paladar ou um perfume pode desencadear um complexo cognitivo não codificado
e até então conscientemente desconhecido?
Mesmo a simples observação visual de duas pessoas tocando-se activa complexos
de neurónios-espelho no observador, responsáveis pelo tacto, fazendo com que,
de uma certa forma, ele possa sentir aquilo que está vendo.
Esse é o fenómeno explorado pela literatura erótica, por exemplo.
No caso do macaco e da experiência de Fogassi, o animal tinha anteriormente
experimentado a acção de pegar a uva, mas os neurónios-espelho estão activos para
toda a imitação.
Eles constituem muito da base daquilo a que chamamos de aprendizado – e
quando aprendemos algo, ainda não o conhecemos.
Uma criança com pouco tempo de vida que vê a mãe fazer um movimento
específico, imita-o sem conhecer a sua função.
Ou seja, a visão de uma acção desencadeia um processo motor sem instrução.
A origem do conhecimento passa a ser compreendida como algo de natureza
essencialmente teleonómica e não mais teleológica.
O princípio da teleonomia implica, por sua vez, a ideia da existência enquanto
algo partilhado – o que leva-nos novamente às brilhantes ideias de Stephanne Lupasco.
Experimentamos isso, todos os dias, com aquilo a que chamamos de simpatia –
palavra que surgiu do Grego pathos que indica a ideia de experiência humana, psicológica,
somado a sym, que aponta para a noção de anterioridade, tornando a simpatia
no conceito de uma sensação de experiência comum já vivida, mas algo imediato,
como uma espécie de déjà vu.
Ou mesmo com a empatia, que etimologicamente indica uma experiência humana
interior e partilhada.
É fascinante imaginar, por exemplo, que os nossos cérebros estão, de alguma
forma, sincronizados neste exacto instante – e que tal também acontece com a escrita,
com a imagem e o som dos sistemas de telecomunicação, sem passar directamente por
um mútuo e directo contacto sensorial.
Mas, há ainda mais uma intrigante pista – as palavras imagem e imitação possuem
a mesma raiz, o radical im, de origem obscura, desconhecida.
Não apenas, tratamos de neurónios-espelho, do Latim speculum que surge do
Indo Europeu *spek, que significava contemplação visual, observação atenta.
Embora outras faculdades sensoriais evidenciem o desencadeamento da actividade
dos neurónios-espelho, tudo parece convergir para a visão.
Em termos lógicos todo o espelhamento, mesmo aquele referente a uma linha
diacrónica, uma linha de tempo, acontece enquanto acção completa, isto é, enquanto
uma totalidade.
Essa é a natureza primeira da visão, a sístase, tudo abordado num único lance.
Não há espelhamento sem a ideia de visão – e não há visão sem sístase.
Mais do que isso, os estudos desenvolvidos por Gallese, Fogassi e Rizzolatti
mostram que o fenómeno dos neurónios-espelho «possibilitam ao observador usar os
seus próprios recursos para penetrar experimentalmente no mundo do outro, através
de um processo directo e automático de simulação».
Mas, penso que não será o caso de tratar-se de um processo de simulação, nem
mesmo de algo como uma penetração no mundo do outro, como sugerem Gallese,
Fogassi e Rizzolatti.
De facto, a ideia de simulação implica a de conjunto e não de diacronia, de
linha de acontecimentos no tempo.
A palavra simulação surge do Indo Europeu *sem, que indicava a ideia de unidade
num determinado conjunto. Daí, ainda, o termo similaridade.
Simulação está directamente relacionada à ideia de visão.
Todavia, simulação implica numa clara diferença entre um primeiro e um segundo,
num processo de mimese, de imitação – e esta, a de um processo teleológico,
direccional, da acção intencional.
Considerando, ainda, a existência de um fabuloso labirinto de espelhos, não há
lugar para a ideia de penetração num mundo do outro senão pelas vias da ilusão da
contiguidade.
Contiguidade – surgindo da predicação: isto é aquilo.
Metáfora.
Aqui torna-se evidente a defesa de Charles Sanders Peirce segundo a qual a
metáfora pertence a uma categoria de relações mais complexa e, portanto, mais degenerada.
Por outro lado, as relações de similaridade serão mais directas e características
de um ponto de vista científico.
Por essa via, a similaridade estaria mais para a partilha e para a noção de contaminação,
que para a convencional noção de imitação, de algo que copia outro algo.
Embora Gallese, Fogassi e Rizzolatti insistam numa natureza imitativa desse
sistema neuronal, a mimese aconteceria aqui antes como algo não-teleológico, nãodireccional,
não-intencional e a-individual – tendo a partícula a como espécie de
negação inclusiva.
Não lidamos com mundos individuais que operam – de uma forma quase
mercantilista – com outros mundos; mas sim com um dinâmico universo de partilhas,
de expansões combinatórias, de diversas naturezas, onde os nossos mundos individuais
são subtil e efemeramente projectados como verdadeiras abstracções.
Mas, há dois outros intrigantes e fundamentais factores desencadeados pela
descoberta dos neurónios-espelho.
Um deles é a questão da previsão – e novamente aqui tomamos emprestado um
termo caro à faculdade visual.
Ao estabelecermos um labirinto neuronal especular, realizamos um universo
de previsões.
Isto é, as montagens estão lá, dinamicamente, mesmo antes da consciência de
uma determinada acção. Entretanto, trata-se de previsão sem intenção.
Depois, há a questão da desencarnação – passamos a compreender boa parte
do sistema cognitivo como pertencente a um universo virtual, enquanto plena
potencialidade, formalizado por aquele labirinto informacional de natureza especular.
O que traz-nos à mente, uma vez mais, a célebre e sensacional afirmação de
Marcel Proust, através das suas maravilhosas viagens oníricas, segundo a qual aquilo
que conhecemos não nos pertence.
Não estamos mais em posse absoluta dos nossos corpos, como nos fez acreditar
o mundo da literatura.
Quando tomamos o rádio, o telefone ou a televisão como próteses sensoriais –
para referir apenas três meios – o fazemos como parte desse processo de desencarnação
e previsão.
Essa condição de desencarnação – sabermos sem corpos – em boa parte nada
mais é que uma projecção, em termos lógicos, do processo caracterizado pelos
neurónios-espelho, algo que está intimamente relacionado à questão da identidade.
Toda a violência é apenas uma busca do resgate da identidade – condição
sistémica que é desenhada por uma determinada escala daquelas relações.
Quando alteramos a escala, alteramos igualmente o sentido da identidade – e,
naturalmente, também o sentido da violência.
A questão da identidade é algo que envolve toda a história do ser humano.
Ao questionarmos a desencarnação sensorial, o princípio da escala, a identidade,
a imitação e os princípios cognitivos, surge-nos outra hipótese não menos fascinante:
o provável surgimento de uma explosão de neurónios-espelho há cerca de sessenta
mil anos, como a origem da emergência do ser humano como o conhecemos.
Por que, ao que tudo indica, apenas há cerca de sessenta mil anos emerge o ser
humano tal como o conhecemos, se há cerca de duzentos mil anos, pelo menos, o seu
organismo já tinha as mesmas características actuais?
No final de 2005, o neurologista Vilayanur Ramachandran avançou com a hipótese
de que aquilo que terá produzido o surgimento do ser humano, tal como o conhecemos
hoje, somente há cerca de sessenta mil anos, sendo que todo o seu organismo já
estava aparentemente desenvolvido há muito mais tempo, terá sido o aparecimento
dos neurónios-espelho.
Ele chamou a esse acontecimento o Big Bang da evolução humana, o que terá
tornado possível aquilo que convencionamos como linguagem, no seu sentido mais
alargado, verbal e não verbal.
Na verdade, seguramente, a melhor hipótese sobre o que terá provocado essa
explosão humana, seria uma mutação na escala da presença dos neurónios-espelho.
Tal como foi demonstrado por Gallese, Fogassi e Rizzolatti, outros animais
também possuem esse tipo de neurónios.
Num universo de relações especulares, de natureza exponencial, uma aparentemente
pequena mudança pode gerar uma radical metamorfose.
Implicando a previsão, descobriríamos aí as raízes – certamente das mais remotas
– daquilo a que chamamos de predicação, as origens mais longínquas da escrita,
da representação pictográfica, da revelação humana.
Tudo não mais como representação, mas enquanto processo.
Assim, o modelo dos neurónios-espelho revela o mundo da estética como o
mundo da acção.
Não importa o que fazemos, ou como fazemos, a interacção é um elemento
essencial na cognição.
Podemos estar a observar algo, um movimento, uma acção, e estaremos a agir
sincronicamente.
E, num aparente paradoxo, tudo é construção, todo o tempo.
Quando vemos uma pessoa triste, sentimos, de alguma forma essa tristeza.
Não raramente dizemos que somos contaminados por aquela tristeza.
Quando observamos duas pessoas tocarem-se, sentimos em nós o tocar.
E aqui, surge novamente a antiga questão – o sentir através de algo que não é a
coisa em si.
Tal como quando assistimos a um filme de cinema ou quando lemos um livro.
Esse caminho – que nos leva directamente ao cinema, ao rádio, ao livro e, mais
que tudo, à obra de arte – apresenta-nos mais um fascinante enigma: os neurónios-espelho
mimetizam as acções do corpo, mas seriam eles especializados e restritos
àquelas acções?
Estariam eles isolados da experiência sensorial e cognitiva que conhecemos
como estética, no seu sentido mais profundo?
Ou seja, seria o universo estético um fenómeno de segunda instância e, portanto,
degenerado?
Quando Mondrian abstraiu as imagens da árvore e do seu atelier, gerando, entre
outras, a sua fabulosa Vitoria-Boogie-Woogie, estaria ele isolando-se do fenómeno
dos neurónios-espelho – como que constituindo, de facto, um universo essencialmente
constituído por relações simbólicas?
O que significa dizer – estaria o mundo da abstracção confinado a um universo
que não abrange aquelas células ditas miméticas?
A resposta parece estar na própria questão.
A palavra abstracto parece ter sido usada pela primeira vez por Boécio no ano
de 1361. Ela surge da fusão de abs e tractus. A partícula Latina abs surge do Indo
Europeu *ap, que indicava a origem da coisa, e tractus surge do Latim trahere, que
significa trazer.
O Latim trahere também indicava o acto de ordenhar.
Assim, o termo abstracto significa, etimologicamente, trazer a origem da coisa.
A origem da coisa é aquilo que ela tem de mais essencial, os seus traços fundamentais
e primeiros.
Uma abstracção nada mais é que a figuração essencial de alguma coisa, sublimação.
Mesmo quando Pollock criava as suas obras, elas não eram destituídas de uma
ordem, de um princípio de diferenciação – e esse é esse princípio que nos fascina, que
torna os seus quadros inconfundíveis, embora qualquer pessoa possa jogar displicentemente
tinta sobre uma superfície.
Quando lidamos com abstracção, lidamos com o que há de mais concreto na
percepção e na cognição.
Agora, é interessante voltarmos aos neurónios-espelho, e questionarmos as
implicações mais alargadas da sua existência.
Tal como imaginarmos sobre quando acontece a imitação, em termos não intencionais,
para além daquilo que diz respeito directamente aos nossos corpos.
Quando entramos num espaço, como um edifício por exemplo, penetramos num
complexo lógico de dados sensoriais das mais diversas naturezas.
Somos formados por aquele espaço, por aquele universo lógico – tendo a lógica
como os princípios de estruturação do pensamento.
Tudo aquilo que chamamos de ambiente é informação.
Navegamos em complexas estruturas informacionais que somos nós, indivíduos
e colectivo, ser e não ser.
A descoberta dos neurónios-espelho coloca-nos face a um intrigante cenário.
O ambiente, como campos informacionais que formam a mente, que estruturam
o inconsciente, serão permanentemente construídos e alterados não apenas pelos nossos
sistemas de memória, quer estejamos tratando do hipotálamo, do papel ou de
computadores, mas por um complexo de espelhos sensoriais reflectindo-se contínua e
mutuamente.
Por isso, a cultura funciona como um verdadeiro organismo vivo.
Seguindo os passos de Freud, a cultura – tomada no seu sentido mais amplo – é
um poderoso instrumento de crítica e oposição aos desígnios da Natureza.
Isto é, para além das implicações de uma causalidade directa, de uma causalidade
local – como as leis da gravidade, por exemplo – imergimos permanentemente
num complexo de campos, linhas, luzes, cores, sons e todo o tipo de sensações que
formam um ambiente.
Dentro e fora, num mesmo tempo.
Todavia, se não tivéssemos um outro instrumento como elemento de permanente
desconstrução da cultura, viveríamos submetidos a imutáveis leis e regras.
Esse elemento de desconstrução da cultura, na sua face generativa, é aquilo que
conhecemos como arte.
Mas, operando num sistema de labirinto especular, não intencional, qual seria o
verdadeiro papel da arte?
Marshall McLuhan defendia que «o enorme vazio entre o equipamento humano
natural e a sua tecnologia tem tornado-se maior e maior… o papel do artista é o de
preencher esse vazio através de retornos e modificações do aparato perceptual que
nos torna aptos a sobreviver num ambiente rapidamente modificado».
Todavia, se assim fosse, o papel do artista seria o de estar inevitavelmente lançado
ao passado, àquilo que falta entre o nosso aparato sensorial e o ambiente em
permanente desenvolvimento.
E aqui, cabem duas breves considerações. Em primeiro lugar, ao contrário do que ocorre com os meios técnicos, a arte não
obedece a princípios de selecção natural.
Mesmo sendo uma crítica da cultura, a arte pertence ao universo das relações
de qualidade. Não cabe, numa obra de arte, a ideia de melhoramento através da tentativa
e do erro, nem mesmo nela é possível o princípio da refutabilidade.
Quando tal princípio é possível, não mais trata-se de arte, e sim de cultura e de
entretenimento.
Depois, na desconstrução da cultura, e com ela a da própria técnica, incorporando-a nos seus estágios mais avançados, a arte agrega novos elementos lançando-se
ao desconhecido – não actuando como o crime, que simplifica as relações e degenera
o meio.
Isto é, a arte não é um exercício de habilidade, mas uma desconstrução ao nível
cognitivo, sensorial.
Por isso, ela significa Iluminação, descoberta.
A existência dos neurónios-espelho mostra como aquilo que somos está entre
nós.
No processo desse tipo de neurónios não há antes ou depois, nem mesmo algo
a que poderíamos chamar de balanço entre duas partes diferentes, mas um único sistema
em dinâmica e permanente transformação.
Tudo isto faz-me recordar o fragmento de um pequeno poema de Huang Po, um
sábio Zen que viveu na China, no século IX:
A mente é um poderoso oceano, um mar que não conhece limites.
Palavras são apenas lótus escarlate para curar as doenças menores. |