EMANUEL DIMAS
DE MELO PIMENTA
Seres Ocultos
Seres Ocultos
Emanuel Dimas de Melo Pimenta
The End of a Belief. Towards the Era of After-Development
Alchiarte – Locarno, Switzerland
Monte Verita
© ASA Art and Technology, London, 2007
Temos de acreditar no livre arbítrio. Não temos escolha...
Isaac Bashevis Singer

Olhamos para o céu, à noite, e vemos milhares de estrelas.
Cada uma delas conta uma história congelada no tempo. A imagem que vemos é há de milhares de anos. Maravilhamo-nos como se estivéssemos lidando com o tempo presente. E estamos, de facto...
Como se o céu que nos encanta fosse nosso contemporâneo.
Como se partilhássemos de uma mesma realidade.
Tudo o que vemos é ilusão. Imagens de há milhares de anos.
Para além da ilusão de participarmos de um mesmo tempo, de um mesmo espaço, está a própria ideia de permanência.
Como o que acontece para além da fé e do desejo.
Se as estrelas desapareceram há muito, também é verdade que a sua imagem, a imagem dos movimentos que as desenharam, continua numa inesgotável viagem pelo Universo, até que toda a energia daquelas mesmas imagens seja definitivamente dissipada.

Não há tempo sem memória.
Longe de ser uma metáfora, é isso que vivemos ao abordar qualquer objecto.
Toda a matéria é fonte de memória – e o tipo de memória modifica a estrutura do pensamento.
Toda a linguagem – verbal ou não verbal – implica a memória.
Memória é, em última análise, a estrutura do próprio pensamento.
Geralmente pensamos em memória como algo pertencente ao passado, mas na verdade ela é algo presente, desenho fundamental do que conhecemos.
Ao combinarmos elementos químicos, sob condições específicas, eles assumem automaticamente uma determinada configuração. Ao adicionar duas partes de hidrogénio e uma de oxigénio, temos automaticamente água. A estruturação molecular é um sistema de memória que projecta não apenas toda a matéria que conhecemos como também o desenho básico das nossas percepções sensoriais e dos nossos sistemas neuronais.
Automaticamente.
Assim, temos diversos níveis de memória – tudo dependendo da escala.
Os nossos corpos são memória, assim como os minerais ou qualquer outra coisa.
Quando lidamos com extensões ou próteses sensoriais, estamos lidando privilegiadamente com memória. Enquanto que as extensões são projecções de memória, as próteses sensoriais estabelecem diferentes níveis de interferência sobre a sua própria configuração.
Criatividade é a combinação de memórias de naturezas diferentes, produzindo um novo sistema.
Quando combinamos duas ou mais coisas que antes não estavam associadas, gerando algo novo, nada mais fazemos que estabelecer desenhos mnemónicos.
Memória é aqui e agora.
Ao aprofundarmos esta abordagem rapidamente concluiremos que mesmo o que chamamos vulgarmente de percepção nada mais é que uma escala da memória.

Por essa via, aquilo que conhecemos como armazenamento de informação será desenhado pelas condições do ambiente.
Por isso, no nosso sistema visual distinguimos imediatamente a visão central e a periférica – aquela especialmente orientada para a forma, para a textura e a cor; e esta, para a luz e o movimento.
A visão, em si mesma, é fortemente caracterizada pela sístase – tudo tomado num único lance. Quando olhamos para uma pintura, para uma fotografia ou para uma paisagem, não vemos uma coisa de cada vez.
A palavra sístase foi criada por Jean Gebser – filósofo nascido em Poznan, actualmente Polónia, em 1905 e desaparecido em 1973. Gebser viveu na Suíça e se tornou grande amigo de Carl Gustav Jung, com quem colaborou no seu Instituto durante vários anos.

Gebser se dedicou ao estudo da consciência. Sístase, segundo as suas próprias palavras é «a conjunção ou encaixe das partes numa integralidade... um processo onde as partes fundem-se ou são fundidas no todo».
Outro conceito fundamental no pensamento de Gebser é a sinairese, palavra também cunhada por ele, originada do termo Grego synaireo, significando “sintetizar”, “coligir”, “juntar”.
Enquanto que a sístase trata do fenómeno em si, a synairesis trata dos aspectos mais profundamente icónicos na cognição, no sentido de «tudo ser agarrado ou apanhado em todos os lados, particularmente pela mente ou espírito».
A sístase implica o número um – não há oposição possível para um todo complexo. Essa é a sua natureza lógica por excelência. Daí emerge o princípio do ícone, o conceito Platónico de eidos, a relação de qualidade com o objecto – mesmo antes de uma synairesis, que implica um estado mais puro e distante de abstração.
A sístase ocorre porque no olho tudo é fortemente interdependente, tudo está implicado – da distribuição de células fotoreceptoras, à pressão ocular ou mesmo ao desenho do globo ocular.
Aquele princípio visual de totalidade acontece, ainda, em termos neuronais: apenas percebemos o que está em movimento e quando piscamos há um apagamento neuronal evitando a criação de vazios de informação visual.

A audição opera pelas vias da diacronia, produzindo a sensação do estabelecimento de compartimentos; enquanto que a visão opera em sincronia, gerando a sensação da linearidade.
Os nossos sistemas auditivos estabelecem o privilégio do número dois – não há som sem diacronia; no mundo sonoro tudo é uma coisa depois da outra.
O passado projectando o presente.
Não apenas, a audição é responsável por um importante aspecto da orientação – o direccionamento sensorial. As diferenças entre os sinais recebidos pelos nossos ouvidos orientam, num complexo campo acústico em torno de nós, o movimento dos nossos olhos. Estabelecem um alvo de direccionamento.
A fusão desses dois fenómenos – a sístase da visão e algo que poderíamos
chamar diacronia direccional da audição – gerou aquilo que chamamos de predicação, o verbo, a ideia de volição. A criação do alfabeto fonético sobre o papiro ou sobre papel nada mais foi do que a realização desse princípio.

Tacto é interface.
Tal como a visão, no tacto tudo é simultaneidade – nada acontece em diacronia. Mas essa simultaneidade ocorre em regiões específicas, nunca em todo o corpo.
Pele e retina possuem uma notável semelhança filogenética. A retina nasce da pele. E a pele é uma extensão da membrana celular. Enquanto que a pele é a interface para eventos materiais, a retina é a interface para a luz.
Os olhos são cerca de três vezes mais lentos que a pele em termos de percepção. O ouvido e a pele têm a mesma velocidade perceptiva.
George Bracque costumava afirmar que o tacto tinha a propriedade de separar o observador dos objectos, enquanto que a visão separava os objectos uns dos outros. O tacto identificando um corpus específico, e a visão projectando a identidade das coisas – fenómeno estranho à audição. Dividindo e identificando as coisas, a visão reforça o princípio táctil, levando as pessoas nas sociedades mais visualizadas a evitar o contacto corporal, construindo todo o tipo de barreiras comportamentais.
Enquanto que para a visão e para o tacto há uma imediata construção de um amplo conjunto de relações de similaridade, de paramorfismos; na audição as relações de semelhança dependem de um contínuo exercício de repetição e de referências a dados acumulados no tempo.

Em Dezembro de 2003, na revista New Yorker, a jornalista Isabel Hilton contava o que um importante membro da tribo Pastun, do Paquistão, revelava como acontecia um princípio local considerado fundamental em termos sociais: se um conflito surgisse entre o líder Pastun e o seu irmão, ele permaneceria entre eles. Se os primos interferissem, ele e o irmão lutariam contra os primos. Se os habitantes da sua aldeia resolvessem interferir, o conflito tornar-se-ia entre ele, o seu irmão e os seus primos contra os habitantes da aldeia. E se estrangeiros resolvessem intervir, ele, seu irmão, seus primos e a tribo iriam lutar contra eles – ilustrando de forma muito apropriada como funciona a lógica acústica.

A sedimentação de informação acústica, ao nível neuronal, de memória de curto termo em longo termo, exige uma dose mais elevada de repetição.
O que nos parece estranho a uma primeira abordagem, torna-se claro quando temos em mente os motivos pelos quais Eric Satie, Henry Cowell e John Cage representaram o início da música minimal, com elevados níveis de repetição, indo contra uma cultura dos seus tempos, anunciando uma revolução cognitiva que aconteceria com o universo electrónico.

A necessidade da repetição e do recurso a dados acumulados no tempo também acontece tanto para a visão como para o tacto, na formação das schematas. Mas, a diferença é que tanto para a natureza do tacto como para a da visão, a existência de um quadro de relações de similaridade é uma condição a priori.
O elemento lógico essencial do tacto é o princípio da unidade.
A palavra unidade lança a sua origem etimológica no Indo Europeu *oinos, que significava algo que poderia ser isolado, separado, identificado como uma coisa única, específica.
A noção de corpo é a sublimação máxima daquele princípio.

Tal como a audição, o olfacto também é essencialmente uma faculdade operando em diacronia. Mas, contrariamente à visão e ao tacto, que dividem e identificam, e à audição que implica um contínuo exercício de repetição, os nossos sistemas neuronais asseguram uma profunda capacidade de memorização olfactiva tornando-o num sentido profundamente integral.
Uma fragrância faz parte de todo um teatro mnemónico profundamente integrado.

O paladar é a sensação produzida pela dissolução de substâncias químicas pela saliva.
Paladar é decomposição. Decomposição significa separação em elementos diferenciados, isto é: estabelecendo uma ordem.
Ordem significa diferenciação.
Ao comermos, realizamos um contínuo exercício de ordenação. Entretanto, esse exercício através da decomposição química possui uma natureza lógica diferente das outras faculdades sensoriais. Toda a percepção gustativa implica uma espécie de equilíbrios pontuados que realizam a construção do sabor, em permanente transformação e descoberta. Esses equilíbrios pontuados, verdadeiras dobraduras de campo, são razoavelmente estáveis entre diferentes indivíduos, projectando – tal como acontece com o olfacto – fortes estratégias de interacção social.
Mas, a capacidade de sedimentação de memória de longo termo é mais baixa com o paladar, implicando uma intensificação da repetição. Por isso, não ficamos satisfeitos a comer apenas uma pequena amostra de uma boa comida.

A visão opera a sístase e produz o aparente continuum; a audição estrutura-se na diacronia e gera a sensação da fragmentação; o paladar nos revela o sentido de ordenação, de ordem social; o olfacto nos resgata a condição integral da memória, e o tacto revela, no conceito de unidade, muito da base de todo sistema de linguagem. Não se trata de intermediários entre uma realidade externa e o pensamento, mas partes do próprio pensamento espalhados pelo tempo e pelo espaço.
Cada conjunto de memória possui uma específica natureza de ordem, uma forma especializada de diferenciação, de organização.
A transformação da paleta sensorial implica a mudança da estrutura de diferentes tipos de organização da informação.
Assim, quando intensificamos, durante um longo processo de formação neuronal, uma determinada estrutura sensorial, estamos desenhando um conjunto especializado de princípios de diferenciação – aquilo que faz com que o que conhecemos seja o que é.

Há, ainda, outro elemento de fundamental importância: a questão da escala.
Tudo muda com a escala.
A emergência da escrita pictográfica representou uma intensificação do uso da visão central, que tomou a audição – seu meio anterior – como conteúdo e projectou a escrita fonética.
A invenção da escrita coincide com a da roda – o exercício visual gerado pela velocidade do cavalo e da roda, linear e veloz, é o mesmo que caracteriza a leitura da escrita fonética.
A metamorfose dos espaços arquitectónicos, da Mesopotâmia ao mundo Romano, indica a transformação sensorial, a mutação dos princípios de diferenciação. Ao longo de milhares de anos, fomos elaborando um complexo organismo que vulgarmente chamamos de cultura. Um organismo vivo e que funciona numa relação simbiótica com o ser humano. A cultura nada mais é que o conjunto de tudo aquilo que estabelece princípios de ordem, para além da ordem natural. Quando nascemos, herdamos uma determinada configuração genética básica – mas é no vivenciar, na experiência, que estabelecemos os diversos padrões de relações sinápticas, fazendo-nos perceber.
Aquilo que percebemos é aquilo que é.
Somos cunhados pelo que existe, que desenha a acção.
A palavra progresso surge do Latim gradus, que significa grau, passo, degrau. Progredir significa, literalmente, “dar um passo adiante”. Com o sentido específico de desenvolvimento, a palavra progresso surge apenas no século XVI, coincidente com a expansão da imprensa de Gutenberg, com as descobertas marítimas Portuguesas e com o esplendor do Renascimento Italiano. A ideia de um mundo que funciona em graus, departamentos que devem ser superados, é um conceito essencialmente visual. Uma ideia que desenhou o mundo Iluminista.

A existência de departamentos implica um distanciamento – condenado pela primeira emergência do tempo real com a invenção do telefone e da rádio.
Ao tomarmos a história da tecnologia – que é a metalinguagem da técnica – perceberemos uma história dos sentidos, enquanto elementos da memória.
Não se trata aqui do uso da memória enquanto função acumulativa de dados, mas da memória enquanto desenho daquela acumulação.
A lógica das culturas orais é a tribo, os clãs, a formação de grupos de privilégios, uns dentro dos outros, da repetição, da tradição, do nacionalismo, das fortes relações interpessoais.
A lógica de uma sociedade desenhada pelo alfabeto fonético e um meio ágil como o papel, é a da departamentalização, do princípio do terceiro excluído, da estratificação social, dos sistemas de contabilidade convencionais, da linha de montagem, do racismo, da perspectiva, das mudanças paradigmáticas, da ideia de revolução, do futuro e da ruptura, da emergência do indivíduo.

Onde as sociedades são mais tácteis, há mais unidade social – e se esse sentido de unidade for submetido a um universo oral, acústico, a necessidade de repetição para a configuração de um sistema estável produzirá uma estrutura semelhante às camadas de uma cebola, produzindo conflitos dependendo da escala de espaço e tempo.
O perfume é sempre um elemento de forte integração. Quando ele é usado intensivamente, como acontece com certos grupos religiosos Orientais, para os quais as fragrâncias são verdadeiras portas para o auto conhecimento, há muita estabilidade.
A elaboração de complexos sistemas de sabores implica uma forte noção de ordem social – o que pode conduzir a conflitos entre grupos fortemente identificados.
Em primeiro lugar, não existe um meio sem o outro – isto é, não se trata de fechar grupos sociais em compartimentos bem determinados em termos sensoriais.
Não existe uma sociedade exclusivamente visual ou acústica. As faculdades sensoriais contaminam-se dinamicamente.
Não se trata, ainda, de estabelecer um quadro clássico de sensacionalismo
– pessoas sendo designadas exclusivamente pelos sentidos. Para além de sentidos, como a propriocepção, temos os nossos corpos, a estruturação molecular da matéria e os complexos neuronais.

O sistema ocular é caracterizado pela visão central, pela visão periférica, pelos movimentos sacádicos, pela luminosidade sistémica e pelas flutuações de concentração de luz entre outros. Por outro lado, a pele possui cerca de duzentos mil receptores diferentes para temperatura, cerca de quinhentos mil para toque e pressão e algo em torno de três milhões de detectores de dor.
Cada um dos nossos sentidos, para além de ser múltiplo na sua natureza, é caracterizado por uma espécie de complexa holoestrutura de departamentos ao nível neuronal, operando simultaneamente em departamentos e no seu todo.

A divisão aristotélica de cinco faculdades sensoriais fortemente estabelecidas, assim como o princípio do terceiro excluído, deixam de ter lugar privilegiado. Possuímos dezenas de sectores neuronais independentes e interdependentes, simultaneamente, para cada complexo sensorial e para todos eles juntos.
A percepção das letras sobre o papel dependerá da posição, da inclinação, da forma, da cor, da luz e da dimensão – para além, até mesmo, do contexto
– tudo articulando aquilo que supomos ser um sentido total e real. A percepção do som depende da intensidade, do volume de harmónicos, do ritmo e de uma grande quantidade de outros factores que são tratados, simultaneamente, de forma interdependente e independente em nossos cérebros.
O paladar não apenas depende do olfacto, mas também da audição, do tacto e da visão – o mesmo acontecendo com qualquer outro elemento sensorial.
E estamos sempre tratando de economia, e da estrutura do pensamento.
Economia não significa redução de meios, mas implicidade, interacção.
Assim, todos as estruturas políticas, sociais e económicas nada mais são que condições estéticas.
Alteramos o nosso complexo sensorial, incluindo os seus aspectos neuronais, e estaremos modificando as nossas relações sociais.
Aquilo que acreditamos como livre arbítrio ou como puro destino depende dessas relações.
Numa sociedade mais fortemente acústica, o destino tem a primazia.
Numa sociedade visual, acredita-se mais vigorosamente no livre arbítrio, na independência do indivíduo.

Ambos – livre arbítrio e destino – estão presentes na estrutura da própria matéria, revelando uma lógica de um novo estado de ordem: ser, não ser, ser e não ser.

Se os factores determinísticos de agregação molecular, alicerçados pelo princípio conhecido como nenhuma variável oculta, da Mecânica Quântica, designa aquilo que poderíamos chamar de destino; a prova do Teorema do Livre Arbítrio realizada em 2004, e publicada em 2005, por John Horton Conway e Simon Kochen, ambos matemáticos de Princeton, demonstrando que há um princípio de livre escolha entre as partículas elementares, estabelece o que chamamos de livre arbítrio.
Não seria, entretanto, uma simples discussão entre acaso e determinismo?
Ainda assim, o acaso como base do livre arbítrio nos conduz a uma interessante reflexão sobre as sociedades acústicas, fortemente deterministas, e as visuais, mais orientadas para a crença no livre arbítrio.
O universo acústico gera, pela sua própria natureza, um grande volume de
repetição, estabelecendo um quadro de intensa redundância, e, por isso, muito determinista – pois tudo pertence a um determinado ambiente onde os elementos de ordem são permanentemente reforçados. Enquanto que no mundo visual, instrumentos de extensão de memória de longo prazo, tais como o papel e a imprensa, libertam os mecanismos de memória de curto prazo, reduzindo a redundância, o determinismo e abrindo a possibilidade de rápida transição entre diversos ambientes de informação.
Nesse complexo universo de relações há outros, e muitos, factores essenciais, tais como a desencarnação e o princípio da imitação.
O texto escrito sobre papel desencarna o som e a visão – sons livres da voz e olhos livres do corpo. Lemos um livro e viajamos em cenas fantásticas, sem que tenhamos um contacto directo com elas.
Toda a linguagem implica um certo grau de desencarnação, de liberação do
corpo.
As células conhecidas como neurónios espelho – fazendo com que repliquemos involuntariamente complexos sensoriais – colocam novamente em questão o princípio da elaboração e do livre arbítrio. Ao nos aproximarmos de alguém que sofre, sentimos esse sofrimento, mesmo não sabendo a sua razão. Estratégias de agregação molecular, livre arbítrio ao nível das partículas elementares, paletas sensoriais, complexos neuronais que funcionam simultaneamente em departamentos e numa holoestrutura, a cultura como organismo vivo: tudo directamente relacionado ao que chamamos de poder, de submissão, de exploração, de identidade, de violência ou mesmo da vontade que pessoas têm de viver segundo modelos que consideram ser melhores.
E todos esses factores mudam dependendo da escala.
Para considerarmos a questão da escala, não podemos ter em mente indivíduos separados, isolados uns dos outros. O isolamento individual é apenas uma ilusão de linguagem. Um grupo de vinte pessoas possui somente cento e noventa relações interactivas entre duas pessoas – que pode ser resumido na fórmula matemática de vinte pessoas multiplicadas por dezanove, dividido por dois. Mas, na população de uma megacidade como São Paulo, por exemplo, com cerca de vinte e cinco milhões de habitantes, o potencial cresce para mais de trezentos biliões de relações duais interactivas.
Com os sistemas planetários de telecomunicação interactiva em tempo real, o número de potenciais relações duais cresce para valores gigantescos.
Assim, quando lidamos com o universo do princípio do século XXI, não se trata apenas de tomar um planeta super populoso, mas de uma metamorfose sem precedentes em termos das relações humanas. E as relações humanas são o que sintetizamos sob a figura da cultura.
Esse organismo simbiótico atinge uma dimensão exponencialmente única – e a quantidade altera a qualidade.
O comportamento de grupos de interesse, tais como indústrias de armamentos, de energia, ou de grupos que trazem a nostálgica aspiração a uma independência étnica, à revolução ou a uma imaginária sanidade social passam a obedecer a princípios estranhos às determinações legais estabelecidas pela antiga cultura literária.
Tudo torna-se volátil.
O que antes era determinado, desde a Idade Média, como defesa dos valores sociais pelas fábulas, assumidas como conteúdo do mundo literário – todos os romances são, em última análise, fábulas – transfere-se para os jogos de computador, muitas vezes virtuais, presentes mesmo em telefones celulares e conectando pessoas em diferentes países, em diferentes sociedades.
São as antigas fábulas medievais tornadas acção, vividas em tempo real pelos jogadores, como uma espécie de treino que os preparará para a vida.
Tudo passa a tender a jogos de soma zero, com perdedores e vencedores – contrariando a antiga aspiração civilizacional dos jogos de soma não zero, da colaboração – e aproximando-se da Natureza em seu modo de operar.
Mas, não tratamos de uma lógica da exclusividade – o exercício nos jogos de soma zero conduz à descoberta intuitiva do princípio conhecido como Nashequilibrium, estabelecido pelo matemático John Nash, e antes por Antoine Augustin Cournot. O princípio Nash-equilibrium indica que, num jogo, nenhum jogador tem qualquer benefício alterando unilateralmente a sua estratégia. Assim, os jogos de soma zero numa primeira instância, tendem a gerar jogos de soma não zero numa segunda instância.
Algo que assemelha-se, em algum sentido, à formação de conjuntos complexos e diferenciados através de processos dissipativos, tal como apresentou Ilya Prigogine.

Segundo Michael Lesk – Professor da Rutgers University em Nova Jersey e especializado em Ciência da Informação – cada Americano está exposto, todos os dias, durante cerca de nove horas a algum tipo de meio de comunicação.
Os reality shows, que tiveram início na televisão Americana em 1973 com a série An American Family, passaram a caracterizar muito do mundo contemporâneo – o simulacro da vida em tempo real, das guerras ao mundo político. Calcula-se que actualmente existam, activos, cerca de quinhentos biliões de chips informáticos em todo o mundo, o que significa quase cem chips por pessoa – sendo que praticamente metade do planeta ainda vive na extrema pobreza. Assim, a concentração de chips per capita é ainda maior para uma parte da população mundial, constituindo uma verdadeira ciber civilização.
A expansão é tal que, em todo o mundo são fabricados anualmente mais de cem biliões de chips, muitos contendo até cem milhões de transístores cada – o que significa a produção de mais de dois biliões e quinhentos milhões de transístores para cada habitante da Terra, todos os anos.
Apenas um computador pessoal no início do século XXI tem mais capacidade do que o conjunto de computadores da NASA quando da primeira viagem à Lua, cerca de trinta anos antes.
Todos esses fenómenos apontam para a profunda transformação social – dos grupos e famílias para o indivíduo mergulhado num fabuloso universo de incontáveis relações virtuais.
A imprensa de Gutenberg gerou um forte movimento de sincronização social e de estereótipos – que simplesmente acabam num mundo integrado pelos sistemas de tele-interacção virtual em tempo real.
Rígidos horários nas fábricas, escolas, restaurantes, e até mesmo nas casas, tendem a desaparecer. Tudo passa a ser comandado pelas ordens através de computadores, muitas vezes inesperadas, ou de telefones, que também passam a ser operados através de sistemas digitais.
Para o mundo visual, o futuro está na previsão de decisões, enquanto que para o acústico, a previsão acontece como projecção de um todo cunhado pelo passado.
Assim, a previsão numa cultura visual é de natureza diferente daquela que acontece no mundo acústico – enquanto que esta suporta-se no destino, a primeira estabelece no livre arbítrio o seu critério por excelência.
Tal diferença não anula uma ou outra, porque ambas sincronia e diacronia têm muito a revelar.
Para o planeta operando em redes de redes de telecomunicação interactiva em tempo real, a ideia de previsão passa a obedecer a uma nova lógica – onde não há mais lugar para o futuro, onde tudo é previsão do momento presente.
O que antes era constituído, desde o Neolítico, por grupos sociais, movimentos colectivos e organizações em defesa da família, transforma-se no indivíduo responsável por nanodecisões face a uma gigantesca escala de conhecimento.
Isso faz com que os antigos modelos de educação e de participação social tornem-se subitamente obsoletos.
Os obsoletos modelos de educação seguem formatos criados para um universo de grupos sociais e não para cada aluno individualmente. Grupos tribais privilegiam a educação individual. Mas, os estudantes do início do século XXI possuem o seu computador pessoal e pertencem a uma rede de mais de um bilião de pessoas, independentemente de onde estejam.
Eles implicam, simultaneamente, uma abordagem a grupos e a indivíduos.

No sentido oposto ao mundo virtual, as actividades políticas, nas suas mais diversas instâncias, ainda são de carácter burocrático e de privilégios, tal como geralmente acontece nos museus, centros culturais, ministérios, departamentos de Estado... como funcionavam as arcaicas estruturas aristocráticas.
O universo dos computadores pessoais amplifica cada ser humano, o conectando com uma vasta rede de híper ligações. Isso torna cada um numa espécie de super indivíduo, aspirando a uma omnisciência e a uma omnipresença através das próteses de inteligência que o coloca virtualmente presente em praticamente qualquer lugar, mergulhando num gigantesco oceano de conhecimento.
Por outro lado, embora esse sistema – fortemente pessoal – intensifique as relações inter persona, ele faz com que os aspectos colectivos passem a ser menos relevantes.
O universo virtual torna claro que o colectivo emerge do indivíduo, e não o contrário.
Mas, as arcaicas estruturas políticas ainda estão voltadas para o colectivo, em detrimento do indivíduo. Manifestam um discurso da solidariedade social que em nada atende as aspirações individuais. Exercem uma postura política julgando as posições individualistas como antisociais – mas, nem elas o são, nem haveria lugar para um julgamento de valor, uma vez que trata-se de um dinâmico processo social.
Antigas estruturas políticas – por vezes disfarçadas de um discurso superficial messiânico – que, na verdade, são nostálgicas aspirações ao passado.
Por essa via, o discurso político que defende ideias locais em termos colectivos pouco sensibiliza as pessoas que têm, mais e mais, ideias globais. Por outro lado, discursos populistas globais, superficiais, sob o manto de ideias gerais, mas pessoais e parciais, tendem a magnetizar a opinião pública.
Funcionam as frases de efeito, curtas e sintéticas, superficiais e absurdamente gerais.

Para boa parte das pessoas, o mundo funciona como os seus computadores pessoais – num quadro de permanente instabilidade. Esse é o padrão da normalidade. As coisas funcionam precariamente, mas o todo continua emitindo notícias.
Por outro lado, um mundo estruturado por biliões de interacções potenciais já não pode ser constituído por um ethos estável e dominante.
Aos antigos princípios da hierarquia e da anarquia, emerge uma nova figura
política do pós urbano: a pararquia: ordem por coordenação. Um princípio segundo o qual as diferenças não são eliminadas, nem uniformizadas numa regular e estável estrutura de valores, mas tudo passa a funcionar pelo contacto permanente e dinâmico entre indivíduos.
À emergência das corporações virtuais dos mais diferentes tipos, revela-se
um mundo político obsoleto, ultrapassado, com leis que são alteradas num ritmo acelerado, na busca desesperada de estabelecer uma aspiração impossível – a hegemonia e a continuidade, aspirações essenciais da antiga ordem internacional.
As instituições passam a buscar, com o objectivo de alcançar aquela aspiração, o controle sobre tudo e sobre todos.
Face à volatilidade do mundo contemporâneo, à cada vez mais acelerada mudança das leis – gerada pela profunda diversidade humana desencadeada pelos sistemas virtuais de telecomunicação – todos os dias uma grande quantidade de leis e regulamentos legais é estabelecida, com o argumento de defender a segurança e assegurar a prosperidade, mas com o objectivo real de controlar cada cidadão e evitar a todo custo mudanças que, de facto, já aconteceram.
Controle das vidas privadas sob todos os aspectos.
Vigilância nas comunicações electrónicas, nas conversações telefónicas, nas transferências de valores, que contam como exemplo essencial o sistema de espionagem conhecido como Echelon. Echelon é, ainda hoje, um projecto secreto de SIGINT – acrónimo de signals intelligence – para a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, indicando o processamento de sinais de telecomunicação em todo o mundo.
Com o argumento de procurar exclusivamente mensagens que possam representar ameaças à segurança mundial, o Echelon processa, segundo calcula-se, milhões de comunicações telefónicas, de fax ou de correio electrónico.
Muitos acreditam que o Sistema Echelon está sendo permanentemente utilizado para espionagem industrial.
O Parlamento Europeu, em Sessão Plenária de Setembro de 2001, seis dias
antes dos atentados terroristas nos Estados Unidos, declarava “não existirem quaisquer dúvidas quanto à existência de um sistema global de interceptações de comunicações que opera graças à cooperação entre os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia... parece provável que o seu nome é Echelon... que não podem existir dúvidas de que o sistema visa, no mínimo, interceptar comunicações privadas e comerciais... e qualquer interceptação de comunicações representa um grave atentado ao exercício do direito à vida privada... e viola o princípio da proporcionalidade...”.
O Echelon opera através de satélites. Desde os anos 1960 até ao início do século XXI quase quinhentos astronautas já foram ao espaço – na grande maioria das vezes com o objectivo de trabalhar em satélites.
No final de Janeiro de 2006 a Electronic Frontier Foundation, entidade que defende a liberdade de comunicação através de sistemas electrónicos, iniciou uma acção judicial contra a AT&T, devido a uma suposta colaboração com o Echelon.
Sistemas de controle espalham-se rapidamente por todo o planeta.
Em Agosto de 2005, um referendo no Canadá indicou que 72% das pessoas desejavam que todos os lugares públicos fossem equipados com câmaras de vigilância.

O equilíbrio e a instabilidade geram a sensação de insegurança. Em 2005, um relatório do National Intelligence Council dos Estados Unidos previa que em 2020 o mundo estaria mergulhado num profundo sentimento de insegurança, ainda mais forte que em 2005. Se tal acontecer, isto significará que o mundo estará ainda mais equilibrado.
Em situações onde a mudança é mais presente, as pessoas sentem menos os seus efeitos. A situação de equilíbrio e de insegurança é produzido pela gigantesca expansão da cultura – basta ter em conta a produção de música, de literatura ou das artes, que são em grande parte a reedição de coisas já feitas, ou mesmo a quase ausência de revoluções ou fortes movimentos sociais contestatários.
Assim, o ciclo do medo tenderá a se intensificar a cada ataque terrorista – mesmo que o ataque não signifique um trágica ameaça em termos absolutos, mas o será em termos relativos.
Em Março de 2006 a União Europeia adoptou formalmente a Directiva 2006/24/EC, sobre “a retenção de dados gerados ou processados em conexão com a provisão de serviços de comunicação electrónica disponíveis ao público ou de redes de comunicação pública...”, exigindo a retenção por um período de seis meses a dois anos de dados relativos à identidade da fonte de comunicação, identidade do destinatário da comunicação, data, horário e duração da comunicação, tipo de comunicação, equipamento utilizado e a sua localização.
A palavra controle surge do Latim rota, que significa caminho, via, rua.
Apenas no século XIII, com o início da fabricação de papel na Europa e a intensificação da visão, surgiria a palavra controlador, para designar a pessoa que vigiava uma estrada, com o sentido de ir contra o movimento, de impedir a passagem.
Cerca de cem anos mais tarde surgiria o termo controle, com o significado geral de restrição.
Controlar significa estabelecer um índice mais elevado de ruído – que impede o fluxo de informação, de qualquer natureza.

Riqueza nada mais é que a acumulação de implicidades, de relações, de interacções. Em toda a interacção há troca e descoberta.
Todo o ruído, para além daquele que deseja o próprio sistema, afecta o fluxo de interacções e bloqueia a produção de riqueza.
Riqueza e equilíbrio não significam, entretanto, o fim das assimetrias sociais.
E se as sociedades literárias aspiravam a hegemonias, até mesmo da riqueza, as novas sociedades virtuais não questionam a diferença, mas sim o grau de desequilíbrio.
Para uma sociedade literária, as relações interactivas na geração de riqueza passaram a ser estabelecidas em departamentos numa ordem fortemente hierárquica, tomando como conteúdo, ainda que parcialmente, a estrutura do mundo agrário.
Assim, o diferencial entre o que era produzido e o que era recebido, a mais
valia, era acumulado pelo topo da estrutura hierárquica – como uma espécie de nova leitura das primeiras estruturas agrárias.
Mas, no mundo virtual, onde milhões de pessoas participam como accionistas de milhares de empresas espalhadas pelo planeta, e onde milhões de pessoas passaram a trabalhar em casa, parte da acumulação de capital passou a ser realizada pela especulação.
E a palavra especulação indica exactamente a natureza do processo: de speculum, que significa espelho, indicando quem não está fisicamente no lugar.
O especulador é o presente ausente.
Tudo transforma-se em algum tipo de especulação – sem que tal signifique que se trata de algo negativo ou positivo.

Há muitas formas de especulação – a própria vigilância remota é uma delas.
O entretenimento é uma forma de especulação – pois a superficialidade implica menos factores diferenciais, menos elementos de consciência, tudo mudando todo o tempo, tornando as pessoas mais flâneurs e badauds.
Curiosamente, a tela dos computadores e das televisões assemelha-se à superfície de um espelho – mas de um espelho especial, tal como imaginado por Lewis Carrol ou os antigos e míticos espelhos mágicos, tão importantes para o místico universo Indiano.
A superfície das telas de computadores e das televisões reflectem o mundo numa outra dimensão de espaço tempo. É vulgar ouvir apresentadores de programas de televisão alertarem para o facto de que “entrarão em nossas casas”.
A frequência de varredura das telas substitui o movimento ocular responsável pela percepção da forma. Isso produz um profundo efeito hipnótico, origem do fenómeno de imersão.
Mas, não se trata de imersão num universo paralelo especular exactamente
igual – trata-se, de facto, de uma poderosa amplificação do mundo. Através dos comandos, dos mais diversos sites e das mais diversas programações, viajamos num contínuo zapping, amplificando a realidade no tempo e no espaço.
Podemos estar no Antigo Egipto ou na ficção de um futuro longínquo; mergulhar nas regiões mais profundas do oceanos, ou visitar as fronteiras mais distantes do Universo conhecido; caminhar sobre a Lua ou estar no meio de uma guerra.
Entretanto, tudo acontecendo de forma superficial – desincorporação e superficialidade de conhecimento produzido pela natureza de memória estabelecida pelas telas, onde devemos continuamente preencher vazios cognitivos, vazios de imagem, vazios de luzes e cores.

Um exercício que concentra na visão central elementos da visão periférica tal como acontece com auscultadores de ouvido, transferindo a estereofonia para o centro da cabeça.
Todo esse universo especular instável, dinâmico, de uma escala fabulosa, é a nossa nova realidade. Não uma realidade nova, no sentido de estar no seu início. É uma realidade sempre nova.
Uma realidade em equilíbrio – pois apenas o equilíbrio pode ser instável.
A híper intensificação de certos aspectos da visão e da audição levou também a uma intensificação do olfacto, do tacto e do paladar. Nunca se produziu tanto incenso no planeta, e a indústria química para novas fragrâncias destinadas a produtos comerciais nunca foi tão activa. Nunca antes existiram tantos restaurantes, de tão diferentes cozinhas. O mesmo se pode dizer da indústria do vestuário – uma indústria fortemente relacionada ao tacto. Nas cidades de todo o mundo, as lojas de livros ou de outros objectos são rapidamente substituídas pelo comércio de roupas e de calçados, que tratam do nosso tacto ao caminhar.
O mesmo ocorre com as antigas feiras de rua em toda a Europa.
E, em tudo, há sempre um gigantesco volume de referências, de símbolos – desde a imagem de actores ou cantores famosos, a atletas, filmes de cinema, músicas populares. Porque o símbolo é sempre uma relação degenerada, ou de segunda instância, com o seu objecto.
Ainda que um religioso possa considerar o símbolo da sua religião como algo real e concreto, ele apenas o é numa segunda instância – apenas acontece quando tratamos da razão.
É notável como um mundo feito de superficialidade, de permanente entretenimento, mas também dum profundo envolvimento directo com próteses sensoriais, é caracterizado pelo uso intensivo de símbolos das mais diferentes naturezas.

A democracia implica um forte sentido de identidade, promovido pelo uso intensivo da visão, com o papel e o alfabeto fonético. Sem identidade não há diferença – e sem diferença não há consciência.
Mas, como estabelecer um forte sentido de identidade numa realidade em contínua transformação?
As antigas funções sociais que designavam fortes identidades desaparecem rapidamente. Boa parte da população passa a flutuar entre diversas funções, uma grande variedade de ofícios, procurando adaptar-se continuamente como forma de sobrevivência.
Boa parte dos jovens procura a identidade não numa função, mas na imagem simbólica de algum personagem, de algum papel teatral como as imagens cinematográficas, de algum mito de marketing – que são puros personagens ficcionais, construídos como pertencentes a um reality show contínuo.
Segundo a United Nations Population Fund, cerca de metade da população mundial, algo em torno dos três biliões de pessoas, são jovens com menos de vinte e cinco anos de idade. Quase um terço desses jovens vive em extrema pobreza, sem educação ou trabalho. Cerca de 85% desses jovens vive em países pobres.
Outro elemento que designava fortes padrões de identidade era o nacionalismo, típico das sociedades acústicas e, mais tarde, das sociedades literárias impulsionadas pelo rádio.
A antiga ideia de nação, de fronteiras territoriais e de Estado independente desaparece rapidamente. As notícias jornalísticas divulgam com crescente intensidade e sentido de urgência factos acontecidos em diversos países. Os mais diferentes produtos, das mais variadas naturezas, viajam permanentemente pelo planeta. Até mesmo os alimentos modificam a geografia planetária – frutos tropicais vendidos em todo o lado, frutos e vegetais cultivados em diversos lugares contrariando o ritmo das estações climáticas.

Violência é apenas busca por identidade.
A violência pode, eventualmente, estar relacionada com a pobreza – mas apenas quando a pobreza implica a perda de identidade, tal como acontece com fluxos migratórios ou com a instável desfuncionalização social do mundo urbano.
Uma realidade de superficialidade também é de instabilidade – o superficial
é sempre volátil.
O FBI relata que os ataques violentos nos Estados Unidos aumentaram, entre os anos de 1960 e 2005, em cerca de 200% proporcionalmente ao crescimento populacional.
Países como o Brasil e a Rússia, entre muitos outros, conheceram um crescimento avassalador nos seus níveis de violência interna – o que levou ao escritor Amin Maalouf, que viveu os terrores da guerra civil no Líbano durante boa parte da vida, a considerar se não estaríamos caminhando para um cenário disfarçado de conflitos civis a uma escala planetária.
O sentido etimológico da palavra corrupção é “romper aos pedaços”, “destruir”, “falsificar”.
Toda a corrupção é um acto de violência.
Onde há corrupção não há identidade – pois a violência não conhece a estabilidade, e sem estabilidade não há diferença.
Um curioso paradoxo – na busca de estabelecer a identidade, a violência gera a destruição das condições fundamentais para que possa existir um quadro de estabilidade sistémica.
Apenas através da cultura é que pode existir uma forte condição de identidade.

E tudo no universo do entretenimento passa a ser cultura – ainda que pela superfície.
A quantidade de livros, revistas, jornais, museus, galerias de arte, canais de televisão, filmes de cinema, objectos de desenho industrial, automóveis entre tantos outros artefactos nunca foi tão gigantesca.
Estamos totalmente cercados por uma formidável quantidade de gadgets– tudo pela superficialidade do entretenimento.
Aquilo que poderíamos chamar de uma estética da violência, da agressividade, do desrespeito – ou da não-atenção, da sujeira, tudo combinado com muito sexo, presente um pouco por todo o lado como um quadro de exclusão, atribuindo-se valores anti-burgueses e pretensiosamente anunciando como salvadora de antigos valores, mesmo paradoxalmente, nada mais é que uma reacção ao mundo feito de gadgets, ao mundo transformado em híper cultura.
E é muito interessante observar como isto é tão característico de muito da chamada inteligentzia no início do século XXI.
Curiosamente, tratando-se de uma nostálgica estética da superficialidade, essa inteligentzia também representa entretenimento, produzindo novos gadgets, tão burgueses como aquilo que critica pelas vias do conteúdos, dos símbolos, literariamente.
A realidade de uma híper cultura, formada por um incontável volume de artefactos, de toda a natureza, tudo cunhado pelos sistemas de telecomunicação planetária interactiva em tempo real, é suficientemente instável para produzir uma rápida degeneração dos níveis de identidade.
Nas chamadas sociedades abertas, não comandadas por um sistema religioso, de carácter ideológico ou teológico, a sobrevivência da cultura como organismo vivo e simbiótico depende de instrumentos sociais que a critiquem – crítica aqui tomada no sentido de desconstrução.

Há, por excelência, dois instrumentos de crítica da cultura: a arte e o crime. A arte – no sentido de uma crítica à cultura, não pelo conteúdo, mas pela estratégia – emerge durante o Renascimento Italiano, coincidindo com o início da produção de papel na Europa e, pouco mais tarde, com a invenção da imprensa de tipos metálicos móveis de Gutenberg. Desconstruindo permanentemente a cultura, a arte a mantém viva, em dinâmica transformação, gerando função e identidade. A verdadeira crítica estabelecida pela arte acontece em relação às estruturas lógicas sensoriais e aos padrões de associação neuronal, de conjuntos neuronais e sistemas sinápticos. Quando a arte emerge pelo conteúdo, pelo símbolo, ela geralmente não passa de uma forma mais refinada de entretenimento – tal como acontece na maioria das vezes. Isso não significa dizer que a arte conceptual é entretenimento. A arte conceptual articula uma complexa rede de relações entre grupos de símbolos, transcendendo os próprios símbolos e provocando uma metamorfose do próprio entendimento do mundo.
O outro instrumento de crítica da cultura é o crime. Mas, enquanto que a arte é um processo generativo, o crime é degenerativo. O crime implica uma profunda simplificação do sistema – todas as referências deixam simplesmente de existir, passando a girar em torno da acção criminosa.
Quando, num quadro de sociedade aberta, uma cultura expande-se sem crítica, o crime aumenta e também a violência, na busca de identidade.
Os novos complexos de informação geram uma expansão sem precedentes
da cultura, tudo pelas vias do entretenimento, da superficialidade.

Enquanto que o crime e a violência estão directamente associados aos jogos de soma zero – com perdedores e vencedores – a arte é sempre jogo de soma não zero. Se tivermos em conta os princípios designados pela mecânica clássica, pela lógica aristotélica – fundamentais para o conceito literário de desenvolvimento e progresso – esse quadro de entretenimento integral, de crime e violência, de superficialidade e de volatilidade, significariam a condenação do planeta à decadência, à entropia.
Mas, existem cada vez mais estruturas complexas – e, mais importante, tal complexidade é suportada por um dinâmico sistema de informação.
O antigo mundo literário separava com rigor o que é vivo do que não é – mas, quando qualquer elemento aproxima-se de um quadro de instabilidade, revela reacções dinâmicas características daquilo que é vivo.
E o que é vivo está em permanente transformação. Daí, a brilhante observação de Prigogine segundo a qual estruturas dissipativas, através de um processo de entropia, acabam por gerar sistemas complexos, contrariando a segunda lei da termodinâmica e gerando a primeira, num dinâmico metabolismo. Isto é, estruturas dissipativas que recebam energia de uma fonte exterior acabam por gerar momentos de instabilidade e de auto organização, projectando modelos mais complexos.
Tudo no mundo da realidade dos sistemas virtuais implica a existência de um contínuo fluxo de informação, onde tudo é simultaneamente externo e interno – como uma espécie de contínua auto injecção de energia entre diferentes campos. Jogos de soma zero gerando jogos de soma não zero.

A ideia de jogo está intimamente ligada à ideia da vida.
Todas as relações, incluindo as relações simbióticas, implicam de alguma forma princípios de jogo.
A palavra jogo, do Latim jocus, nasceu no século XII, coincidentemente com o início da fabricação de papel na Europa, e significava originalmente “peça de teatro”.
A antiga palavra Latina para jogo é ludus, que significava, mais especificamente, jogos religiosos ou oficiais realizados em honra aos mortos. Daí as palavras ilusão, como uma espécie de contra jogo, alusão, lúdico ou prelúdio. Conta-se que Xerxes, o célebre rei Persa que viveu entre cerca de 519 a.C. e 465 a.C., teria submetido os habitantes da Lídia, Ásia Menor, não pela força das armas, mas pela construção de casas de jogos que teriam enfraquecido o poder de resistência da população local. Daí, da palavra Lídia, teria surgido, mais tarde o termo Latino ludus. A palavra Inglesa para jogo, game, surge de gamão – um antigo jogo que supõe-se ter origem Suméria.
Tanto jocus, como ludus ou gamão implicam os princípios mais elementares
da vida, combinando princípios de soma zero e de soma não zero.
Hermann Hesse, na sua obra Das Glasperlenspiel, O Jogo das Contas de Vidro – Magister Ludi, descrevia o jogo como sendo «tudo aquilo que, enquanto conhecimento, pensamentos e obras de arte, a Humanidade produziu nas suas épocas criativas, tudo aquilo que nos períodos seguintes foi reduzido a conceitos por meio da observação erudita e convertido em propriedade intelectual comum".
É esse enorme conjunto de valores intelectuais que o jogador da conta de vidro joga, tal como um organista toca um órgão. Esse órgão atingiu uma perfeição inimaginável. As suas teclas e pedais ligam-se a todo o cosmo intelectual, os seus registos são incontáveis. Teoricamente, poder-se-ia, com a ajuda de um tal instrumento, reproduzir todo o conteúdo intelectual do universo».

Anaxágoras de Clazômenas, que viveu entre cerca de 500 a.C. e 428 a.C., defendia que as sementes da vida estariam potencialmente presentes em todo o Universo e que, uma vez na Terra, teria se expandido – era a ideia conhecida como panspermia. Em 1879, o genial Hermann Von Helmholtz resgatou a antiga ideia de Anaxágoras.
No início do século XXI, René Berger questionava-se acerca de uma possível ciberpanspermia – numa realidade caracterizada por informação distribuída intensiva e dinamicamente, haveriam sementes de novos conhecimentos espalhados pelo mundo virtual, prontos para uma rápida expansão.
O conceito de ciberpanspermia, cunhado por René Berger, resgata para o mundo do conhecimento, para o organismo simbiótico da cultura, os princípios dissipativos de formação de sistemas complexos.
Mas há uma antiga lenda Judaica que ilumina todo esse processo. São os Trinta e Seis Tzadikim. A palavra tzadik significa, em Hebraico, justo, correcto, iluminado – e tzadikim é o seu plural.
A mundo estaria salvo pela existência de trinta e seis pessoas justas, correctas.
A partir do século XVIII, a existência dos tzadikim passa a ser oculta – eles podem estar em cada um de nós, não obrigatoriamente a todo o momento. O mais interessante, nessa tradição, é o facto de que um tzadik pode não saber que o é.
Gershom Scholem, sempre genialmente, lembrava que «não existe uma família dos Justos. O Justo oculto, quando é alguma coisa, é na verdade o seu e o meu vizinho, cuja verdadeira natureza permanecerá eternamente inexplicável e a respeito da qual essa misteriosa ideia nos ensina a não fazer julgamentos de valor. Esse é um ensinamento anárquico num certo sentido, e exactamente por isso é tão surpreendente. O seu próximo pode ser o Justo Oculto» – antecipando uma nova lógica sensorial.

 
Emanuel Dimas de Melo Pimenta é arquitecto, urbanista e compositor de música erudita contemporânea. Recebeu o prémio Destaque de Marketing em 1977 pela Associação Brasileira de Marketing; o prémio APCA pela Associação Paulista de Críticos de Arte em 1986; o prémio Lac Maggiore, pelo Governo Regional da Lombardia, Associação Internacional de Críticos de Arte, Unesco e Conselho de Europa em 1994. Em 1993 os seus trabalhos foram seleccionados pela Unesco, em Paris, considerando-o um dos mais representativos artistas multimedia. É membro do Tribunal Europeu do Ambiente, onde tem actuado como membro da direcção desde 1995. É, ainda, membro activo da Academia de Ciências de Nova York, da Sociedade Americana para o Progresso da Ciência em Washington DC, da AIVAC Association Internationale pour la Video dans les Arts et la Culture, em Locarno, e membro fundador da International Society for the Interdisciplinary Study of Symmetry, com sede em Budapeste. Estudou, entre outros, com Hans Joachim Koellreutter, Eduardo Corona, Eduardo Kneese de Mello, Décio Pignatari, Holger Czukai e Roti Nielba Turin. Trabalhou junto a John Cage de 1985 até ao seu desaparecimento em 1992.

É compositor para Merce Conningham, em Nova York, desde 1985. É também compositor para a Appels Dance Company de Nova York, desde 1990. As suas composições têm sido executadas em diversos países por importantes músicos como John Cage, David Tudor, Takehisa Kosugi, Maurizio Barbetti, John Tilbury, Martha Mooke, John DS Adams, Michael Pugliese e o Manhattan Quartet entre outros. É membro do Conselho Editorial da RISK ARTE OGGI, em Milão. Tem sido convidado como conferencista e professor, por diversas Instituições, entre as quais as universidades de Nova York, de Lisboa, de Coimbra, de Lausanne, de São Paulo, de Tsulsuba, pela Fundação Calouste Gulbenkian, pela Fundação Monte Veritá e pelo Instituto de Tecnologia Technion de Haifa.

Os seus trabalhos estão incluídos na Enciclopédia Universalis, no Sloninsky Baker's Art Dictionary e no All Music Guide � the expert's guide to the best cds. Tem os seus trabalhos, papers, livros, projectos de arquitectura e compact discs publicados em Inglaterra Estados Unidos, Japão. Holanda, Portugal, Brasil, Alemanha, Suíça, Hungria, Itália e Espanha. Desenvolve projectos de arquitectura, urbanismo e música contemporânea utilizando tecnologias de Realidade Virtual e ciberespaço. Na década de 80 criou o termo e o conceito "arquitectura virtual", que se tornaria mundialmente utilizado, inclusive como disciplina em várias faculdades de arquitectura em diversos países. Entre os seus livros publicados, destacam-se Tapas � Arquitectura e o Inconsciente (1985), Virtual Architecture (1990) e Teleantropos (1999).

Em 1996 criou, com o apoio da Fundação para a Computação Científica Nacional, o museu virtual Earth's Collection. Nesse mesmo ano lança em Perugia, Itália, o site Joseph Beuys Project, com o apoio da FCCN Fundação para a Computação Cientifica Nacional e da Risk Arte Oggi (Milão). Na primeira metade da década de 90 tem o seu site lançado pela ASA Art and Technology. Em 1996 participa em Lisboa junto com René Berger (na Suíça), Philippe Quéau (na França) e Bernard Allien (nos Estados Unidos) em uma das primeiras vídeo conferências MBONE em tempo real pela Internet. É, ainda em 1996, convidado a participar da formação da Université du Futur (Universidade de Lausanne, UNESCO, CNRS, Conselho de Europa), junto a René Berger, Basarab Nicolescu, Pierre Levy e Edgar Morin entre outros. Em 1997 foi curador para a exposição "Arquitectura Virtual", no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Actua, como curador, para a exposição "Arquitectura Virtual" que integrará a Bienal Internacional de Arquitectura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, em Novembro de 1999.

Emanuel Dimas de Melo Pimenta
© ASA Art and Technology UK, London, 2006
http://www.asa-art.com/edmp.html