Olhamos para o céu, à noite, e vemos milhares de estrelas.
Cada uma delas conta uma história congelada no tempo. A imagem que
vemos é há de milhares de anos. Maravilhamo-nos como se estivéssemos lidando
com o tempo presente. E estamos, de facto...
Como se o céu que nos encanta fosse nosso contemporâneo.
Como se partilhássemos de uma mesma realidade.
Tudo o que vemos é ilusão. Imagens de há milhares de anos.
Para além da ilusão de participarmos de um mesmo tempo, de um mesmo
espaço, está a própria ideia de permanência.
Como o que acontece para além da fé e do desejo.
Se as estrelas desapareceram há muito, também é verdade que a sua imagem,
a imagem dos movimentos que as desenharam, continua numa inesgotável
viagem pelo Universo, até que toda a energia daquelas mesmas imagens seja definitivamente
dissipada.
Não há tempo sem memória.
Longe de ser uma metáfora, é isso que vivemos ao abordar qualquer objecto.
Toda a matéria é fonte de memória – e o tipo de memória modifica a estrutura
do pensamento.
Toda a linguagem – verbal ou não verbal – implica a memória.
Memória é, em última análise, a estrutura do próprio pensamento.
Geralmente pensamos em memória como algo pertencente ao passado,
mas na verdade ela é algo presente, desenho fundamental do que conhecemos.
Ao combinarmos elementos químicos, sob condições específicas, eles assumem
automaticamente uma determinada configuração. Ao adicionar duas
partes de hidrogénio e uma de oxigénio, temos automaticamente água. A estruturação
molecular é um sistema de memória que projecta não apenas toda a matéria
que conhecemos como também o desenho básico das nossas percepções
sensoriais e dos nossos sistemas neuronais.
Automaticamente.
Assim, temos diversos níveis de memória – tudo dependendo da escala.
Os nossos corpos são memória, assim como os minerais ou qualquer outra
coisa.
Quando lidamos com extensões ou próteses sensoriais, estamos lidando
privilegiadamente com memória. Enquanto que as extensões são projecções de
memória, as próteses sensoriais estabelecem diferentes níveis de interferência
sobre a sua própria configuração.
Criatividade é a combinação de memórias de naturezas diferentes, produzindo
um novo sistema.
Quando combinamos duas ou mais coisas que antes não estavam associadas,
gerando algo novo, nada mais fazemos que estabelecer desenhos mnemónicos.
Memória é aqui e agora.
Ao aprofundarmos esta abordagem rapidamente concluiremos que mesmo
o que chamamos vulgarmente de percepção nada mais é que uma escala da
memória.
Por essa via, aquilo que conhecemos como armazenamento de informação
será desenhado pelas condições do ambiente.
Por isso, no nosso sistema visual distinguimos imediatamente a visão central
e a periférica – aquela especialmente orientada para a forma, para a textura e
a cor; e esta, para a luz e o movimento.
A visão, em si mesma, é fortemente caracterizada pela sístase – tudo tomado
num único lance. Quando olhamos para uma pintura, para uma fotografia
ou para uma paisagem, não vemos uma coisa de cada vez.
A palavra sístase foi criada por Jean Gebser – filósofo nascido em Poznan,
actualmente Polónia, em 1905 e desaparecido em 1973. Gebser viveu na Suíça e
se tornou grande amigo de Carl Gustav Jung, com quem colaborou no seu Instituto
durante vários anos.
Gebser se dedicou ao estudo da consciência. Sístase, segundo as suas
próprias palavras é «a conjunção ou encaixe das partes numa integralidade... um
processo onde as partes fundem-se ou são fundidas no todo».
Outro conceito fundamental no pensamento de Gebser é a sinairese, palavra
também cunhada por ele, originada do termo Grego synaireo, significando “sintetizar”, “coligir”, “juntar”.
Enquanto que a sístase trata do fenómeno em si, a synairesis trata dos aspectos
mais profundamente icónicos na cognição, no sentido de «tudo ser agarrado
ou apanhado em todos os lados, particularmente pela mente ou espírito».
A sístase implica o número um – não há oposição possível para um todo
complexo. Essa é a sua natureza lógica por excelência. Daí emerge o princípio
do ícone, o conceito Platónico de eidos, a relação de qualidade com o objecto – mesmo antes de uma synairesis, que implica um estado mais puro e distante de
abstração.
A sístase ocorre porque no olho tudo é fortemente interdependente, tudo
está implicado – da distribuição de células fotoreceptoras, à pressão ocular ou
mesmo ao desenho do globo ocular.
Aquele princípio visual de totalidade acontece, ainda, em termos neuronais:
apenas percebemos o que está em movimento e quando piscamos há um
apagamento neuronal evitando a criação de vazios de informação visual.
A audição opera pelas vias da diacronia, produzindo a sensação do estabelecimento
de compartimentos; enquanto que a visão opera em sincronia, gerando
a sensação da linearidade.
Os nossos sistemas auditivos estabelecem o privilégio do número dois –
não há som sem diacronia; no mundo sonoro tudo é uma coisa depois da outra.
O passado projectando o presente.
Não apenas, a audição é responsável por um importante aspecto da orientação
– o direccionamento sensorial. As diferenças entre os sinais recebidos pelos
nossos ouvidos orientam, num complexo campo acústico em torno de nós,
o movimento dos nossos olhos. Estabelecem um alvo de direccionamento.
A fusão desses dois fenómenos – a sístase da visão e algo que poderíamos
chamar diacronia direccional da audição – gerou aquilo que chamamos de predicação,
o verbo, a ideia de volição.
A criação do alfabeto fonético sobre o papiro ou sobre papel nada mais foi
do que a realização desse princípio.
Tacto é interface.
Tal como a visão, no tacto tudo é simultaneidade – nada acontece em diacronia.
Mas essa simultaneidade ocorre em regiões específicas, nunca em todo o
corpo.
Pele e retina possuem uma notável semelhança filogenética.
A retina nasce da pele.
E a pele é uma extensão da membrana celular.
Enquanto que a pele é a interface para eventos materiais, a retina é a interface
para a luz.
Os olhos são cerca de três vezes mais lentos que a pele em termos de percepção.
O ouvido e a pele têm a mesma velocidade perceptiva.
George Bracque costumava afirmar que o tacto tinha a propriedade de
separar o observador dos objectos, enquanto que a visão separava os objectos
uns dos outros.
O tacto identificando um corpus específico, e a visão projectando a identidade
das coisas – fenómeno estranho à audição.
Dividindo e identificando as coisas, a visão reforça o princípio táctil, levando
as pessoas nas sociedades mais visualizadas a evitar o contacto corporal, construindo
todo o tipo de barreiras comportamentais.
Enquanto que para a visão e para o tacto há uma imediata construção de
um amplo conjunto de relações de similaridade, de paramorfismos; na audição
as relações de semelhança dependem de um contínuo exercício de repetição e de
referências a dados acumulados no tempo.
Em Dezembro de 2003, na revista New Yorker, a jornalista Isabel Hilton
contava o que um importante membro da tribo Pastun, do Paquistão, revelava
como acontecia um princípio local considerado fundamental em termos sociais:
se um conflito surgisse entre o líder Pastun e o seu irmão, ele permaneceria entre
eles. Se os primos interferissem, ele e o irmão lutariam contra os primos. Se os
habitantes da sua aldeia resolvessem interferir, o conflito tornar-se-ia entre ele,
o seu irmão e os seus primos contra os habitantes da aldeia. E se estrangeiros
resolvessem intervir, ele, seu irmão, seus primos e a tribo iriam lutar contra eles
– ilustrando de forma muito apropriada como funciona a lógica acústica.
A sedimentação de informação acústica, ao nível neuronal, de memória de
curto termo em longo termo, exige uma dose mais elevada de repetição.
O que nos parece estranho a uma primeira abordagem, torna-se claro
quando temos em mente os motivos pelos quais Eric Satie, Henry Cowell e
John Cage representaram o início da música minimal, com elevados níveis de
repetição, indo contra uma cultura dos seus tempos, anunciando uma revolução
cognitiva que aconteceria com o universo electrónico.
A necessidade da repetição e do recurso a dados acumulados no tempo
também acontece tanto para a visão como para o tacto, na formação das schematas.
Mas, a diferença é que tanto para a natureza do tacto como para a da
visão, a existência de um quadro de relações de similaridade é uma condição a
priori.
O elemento lógico essencial do tacto é o princípio da unidade.
A palavra unidade lança a sua origem etimológica no Indo Europeu *oinos,
que significava algo que poderia ser isolado, separado, identificado como uma
coisa única, específica.
A noção de corpo é a sublimação máxima daquele princípio.
Tal como a audição, o olfacto também é essencialmente uma faculdade
operando em diacronia.
Mas, contrariamente à visão e ao tacto, que dividem e identificam, e à
audição que implica um contínuo exercício de repetição, os nossos sistemas neuronais
asseguram uma profunda capacidade de memorização olfactiva tornando-o
num sentido profundamente integral.
Uma fragrância faz parte de todo um teatro mnemónico profundamente
integrado.
O paladar é a sensação produzida pela dissolução de substâncias químicas
pela saliva.
Paladar é decomposição.
Decomposição significa separação em elementos diferenciados, isto é: estabelecendo
uma ordem.
Ordem significa diferenciação.
Ao comermos, realizamos um contínuo exercício de ordenação.
Entretanto, esse exercício através da decomposição química possui uma
natureza lógica diferente das outras faculdades sensoriais. Toda a percepção gustativa
implica uma espécie de equilíbrios pontuados que realizam a construção
do sabor, em permanente transformação e descoberta.
Esses equilíbrios pontuados, verdadeiras dobraduras de campo, são razoavelmente
estáveis entre diferentes indivíduos, projectando – tal como acontece
com o olfacto – fortes estratégias de interacção social.
Mas, a capacidade de sedimentação de memória de longo termo é mais
baixa com o paladar, implicando uma intensificação da repetição. Por isso, não
ficamos satisfeitos a comer apenas uma pequena amostra de uma boa comida.
A visão opera a sístase e produz o aparente continuum; a audição estrutura-se na diacronia e gera a sensação da fragmentação; o paladar nos revela o
sentido de ordenação, de ordem social; o olfacto nos resgata a condição integral
da memória, e o tacto revela, no conceito de unidade, muito da base de todo
sistema de linguagem.
Não se trata de intermediários entre uma realidade externa e o pensamento,
mas partes do próprio pensamento espalhados pelo tempo e pelo espaço.
Cada conjunto de memória possui uma específica natureza de ordem, uma
forma especializada de diferenciação, de organização.
A transformação da paleta sensorial implica a mudança da estrutura de
diferentes tipos de organização da informação.
Assim, quando intensificamos, durante um longo processo de formação
neuronal, uma determinada estrutura sensorial, estamos desenhando um conjunto
especializado de princípios de diferenciação – aquilo que faz com que o
que conhecemos seja o que é.
Há, ainda, outro elemento de fundamental importância: a questão da escala.
Tudo muda com a escala.
A emergência da escrita pictográfica representou uma intensificação do
uso da visão central, que tomou a audição – seu meio anterior – como conteúdo
e projectou a escrita fonética.
A invenção da escrita coincide com a da roda – o exercício visual gerado
pela velocidade do cavalo e da roda, linear e veloz, é o mesmo que caracteriza a
leitura da escrita fonética.
A metamorfose dos espaços arquitectónicos, da Mesopotâmia ao mundo
Romano, indica a transformação sensorial, a mutação dos princípios de diferenciação.
Ao longo de milhares de anos, fomos elaborando um complexo organismo
que vulgarmente chamamos de cultura.
Um organismo vivo e que funciona numa relação simbiótica com o ser
humano.
A cultura nada mais é que o conjunto de tudo aquilo que estabelece
princípios de ordem, para além da ordem natural.
Quando nascemos, herdamos uma determinada configuração genética
básica – mas é no vivenciar, na experiência, que estabelecemos os diversos padrões
de relações sinápticas, fazendo-nos perceber.
Aquilo que percebemos é aquilo que é.
Somos cunhados pelo que existe, que desenha a acção.
A palavra progresso surge do Latim gradus, que significa grau, passo, degrau.
Progredir significa, literalmente, “dar um passo adiante”. Com o sentido
específico de desenvolvimento, a palavra progresso surge apenas no século XVI,
coincidente com a expansão da imprensa de Gutenberg, com as descobertas
marítimas Portuguesas e com o esplendor do Renascimento Italiano.
A ideia de um mundo que funciona em graus, departamentos que devem
ser superados, é um conceito essencialmente visual.
Uma ideia que desenhou o mundo Iluminista.
A existência de departamentos implica um distanciamento – condenado
pela primeira emergência do tempo real com a invenção do telefone e da rádio.
Ao tomarmos a história da tecnologia – que é a metalinguagem da técnica
– perceberemos uma história dos sentidos, enquanto elementos da memória.
Não se trata aqui do uso da memória enquanto função acumulativa de dados,
mas da memória enquanto desenho daquela acumulação.
A lógica das culturas orais é a tribo, os clãs, a formação de grupos de privilégios,
uns dentro dos outros, da repetição, da tradição, do nacionalismo, das
fortes relações interpessoais.
A lógica de uma sociedade desenhada pelo alfabeto fonético e um meio
ágil como o papel, é a da departamentalização, do princípio do terceiro excluído,
da estratificação social, dos sistemas de contabilidade convencionais, da linha de
montagem, do racismo, da perspectiva, das mudanças paradigmáticas, da ideia de
revolução, do futuro e da ruptura, da emergência do indivíduo.
Onde as sociedades são mais tácteis, há mais unidade social – e se esse
sentido de unidade for submetido a um universo oral, acústico, a necessidade
de repetição para a configuração de um sistema estável produzirá uma estrutura
semelhante às camadas de uma cebola, produzindo conflitos dependendo da
escala de espaço e tempo.
O perfume é sempre um elemento de forte integração. Quando ele é usado
intensivamente, como acontece com certos grupos religiosos Orientais, para os
quais as fragrâncias são verdadeiras portas para o auto conhecimento, há muita
estabilidade.
A elaboração de complexos sistemas de sabores implica uma forte noção
de ordem social – o que pode conduzir a conflitos entre grupos fortemente
identificados.
Em primeiro lugar, não existe um meio sem o outro – isto é, não se trata
de fechar grupos sociais em compartimentos bem determinados em termos sensoriais.
Não existe uma sociedade exclusivamente visual ou acústica. As faculdades
sensoriais contaminam-se dinamicamente.
Não se trata, ainda, de estabelecer um quadro clássico de sensacionalismo
– pessoas sendo designadas exclusivamente pelos sentidos. Para além de sentidos,
como a propriocepção, temos os nossos corpos, a estruturação molecular
da matéria e os complexos neuronais.
O sistema ocular é caracterizado pela visão central, pela visão periférica,
pelos movimentos sacádicos, pela luminosidade sistémica e pelas flutuações de
concentração de luz entre outros. Por outro lado, a pele possui cerca de duzentos
mil receptores diferentes para temperatura, cerca de quinhentos mil para toque
e pressão e algo em torno de três milhões de detectores de dor.
Cada um dos nossos sentidos, para além de ser múltiplo na sua natureza, é caracterizado
por uma espécie de complexa holoestrutura de departamentos ao nível
neuronal, operando simultaneamente em departamentos e no seu todo.
A divisão aristotélica de cinco faculdades sensoriais fortemente estabelecidas,
assim como o princípio do terceiro excluído, deixam de ter lugar privilegiado.
Possuímos dezenas de sectores neuronais independentes e interdependentes,
simultaneamente, para cada complexo sensorial e para todos eles juntos.
A percepção das letras sobre o papel dependerá da posição, da inclinação,
da forma, da cor, da luz e da dimensão – para além, até mesmo, do contexto
– tudo articulando aquilo que supomos ser um sentido total e real.
A percepção do som depende da intensidade, do volume de harmónicos,
do ritmo e de uma grande quantidade de outros factores que são tratados, simultaneamente,
de forma interdependente e independente em nossos cérebros.
O paladar não apenas depende do olfacto, mas também da audição, do
tacto e da visão – o mesmo acontecendo com qualquer outro elemento sensorial.
E estamos sempre tratando de economia, e da estrutura do pensamento.
Economia não significa redução de meios, mas implicidade, interacção.
Assim, todos as estruturas políticas, sociais e económicas nada mais são
que condições estéticas.
Alteramos o nosso complexo sensorial, incluindo os seus aspectos neuronais,
e estaremos modificando as nossas relações sociais.
Aquilo que acreditamos como livre arbítrio ou como puro destino depende
dessas relações.
Numa sociedade mais fortemente acústica, o destino tem a primazia.
Numa sociedade visual, acredita-se mais vigorosamente no livre arbítrio, na independência
do indivíduo.
Ambos – livre arbítrio e destino – estão presentes na estrutura da própria
matéria, revelando uma lógica de um novo estado de ordem: ser, não ser, ser e
não ser.
Se os factores determinísticos de agregação molecular, alicerçados pelo
princípio conhecido como nenhuma variável oculta, da Mecânica Quântica, designa
aquilo que poderíamos chamar de destino; a prova do Teorema do Livre Arbítrio
realizada em 2004, e publicada em 2005, por John Horton Conway e Simon
Kochen, ambos matemáticos de Princeton, demonstrando que há um princípio
de livre escolha entre as partículas elementares, estabelece o que chamamos de
livre arbítrio.
Não seria, entretanto, uma simples discussão entre acaso e determinismo?
Ainda assim, o acaso como base do livre arbítrio nos conduz a uma interessante
reflexão sobre as sociedades acústicas, fortemente deterministas, e as visuais,
mais orientadas para a crença no livre arbítrio.
O universo acústico gera, pela sua própria natureza, um grande volume de
repetição, estabelecendo um quadro de intensa redundância, e, por isso, muito
determinista – pois tudo pertence a um determinado ambiente onde os elementos
de ordem são permanentemente reforçados. Enquanto que no mundo visual,
instrumentos de extensão de memória de longo prazo, tais como o papel
e a imprensa, libertam os mecanismos de memória de curto prazo, reduzindo a
redundância, o determinismo e abrindo a possibilidade de rápida transição entre
diversos ambientes de informação.
Nesse complexo universo de relações há outros, e muitos, factores essenciais,
tais como a desencarnação e o princípio da imitação.
O texto escrito sobre papel desencarna o som e a visão – sons livres da voz
e olhos livres do corpo. Lemos um livro e viajamos em cenas fantásticas, sem
que tenhamos um contacto directo com elas.
Toda a linguagem implica um certo grau de desencarnação, de liberação do
corpo.
As células conhecidas como neurónios espelho – fazendo com que repliquemos
involuntariamente complexos sensoriais – colocam novamente em
questão o princípio da elaboração e do livre arbítrio. Ao nos aproximarmos de
alguém que sofre, sentimos esse sofrimento, mesmo não sabendo a sua razão.
Estratégias de agregação molecular, livre arbítrio ao nível das partículas
elementares, paletas sensoriais, complexos neuronais que funcionam simultaneamente
em departamentos e numa holoestrutura, a cultura como organismo vivo:
tudo directamente relacionado ao que chamamos de poder, de submissão, de
exploração, de identidade, de violência ou mesmo da vontade que pessoas têm
de viver segundo modelos que consideram ser melhores.
E todos esses factores mudam dependendo da escala.
Para considerarmos a questão da escala, não podemos ter em mente indivíduos
separados, isolados uns dos outros.
O isolamento individual é apenas uma ilusão de linguagem.
Um grupo de vinte pessoas possui somente cento e noventa relações interactivas
entre duas pessoas – que pode ser resumido na fórmula matemática de
vinte pessoas multiplicadas por dezanove, dividido por dois. Mas, na população
de uma megacidade como São Paulo, por exemplo, com cerca de vinte e cinco
milhões de habitantes, o potencial cresce para mais de trezentos biliões de relações
duais interactivas.
Com os sistemas planetários de telecomunicação interactiva em tempo
real, o número de potenciais relações duais cresce para valores gigantescos.
Assim, quando lidamos com o universo do princípio do século XXI, não
se trata apenas de tomar um planeta super populoso, mas de uma metamorfose
sem precedentes em termos das relações humanas.
E as relações humanas são o que sintetizamos sob a figura da cultura.
Esse organismo simbiótico atinge uma dimensão exponencialmente única
– e a quantidade altera a qualidade.
O comportamento de grupos de interesse, tais como indústrias de armamentos,
de energia, ou de grupos que trazem a nostálgica aspiração a uma independência
étnica, à revolução ou a uma imaginária sanidade social passam a
obedecer a princípios estranhos às determinações legais estabelecidas pela antiga
cultura literária.
Tudo torna-se volátil.
O que antes era determinado, desde a Idade Média, como defesa dos valores
sociais pelas fábulas, assumidas como conteúdo do mundo literário – todos
os romances são, em última análise, fábulas – transfere-se para os jogos de
computador, muitas vezes virtuais, presentes mesmo em telefones celulares e
conectando pessoas em diferentes países, em diferentes sociedades.
São as antigas fábulas medievais tornadas acção, vividas em tempo real
pelos jogadores, como uma espécie de treino que os preparará para a vida.
Tudo passa a tender a jogos de soma zero, com perdedores e vencedores – contrariando a antiga aspiração civilizacional dos jogos de soma não zero, da
colaboração – e aproximando-se da Natureza em seu modo de operar.
Mas, não tratamos de uma lógica da exclusividade – o exercício nos jogos
de soma zero conduz à descoberta intuitiva do princípio conhecido como Nashequilibrium,
estabelecido pelo matemático John Nash, e antes por Antoine Augustin
Cournot.
O princípio Nash-equilibrium indica que, num jogo, nenhum jogador tem
qualquer benefício alterando unilateralmente a sua estratégia.
Assim, os jogos de soma zero numa primeira instância, tendem a gerar
jogos de soma não zero numa segunda instância.
Algo que assemelha-se, em algum sentido, à formação de conjuntos complexos
e diferenciados através de processos dissipativos, tal como apresentou
Ilya Prigogine.
Segundo Michael Lesk – Professor da Rutgers University em Nova Jersey
e especializado em Ciência da Informação – cada Americano está exposto, todos
os dias, durante cerca de nove horas a algum tipo de meio de comunicação.
Os reality shows, que tiveram início na televisão Americana em 1973 com
a série An American Family, passaram a caracterizar muito do mundo contemporâneo
– o simulacro da vida em tempo real, das guerras ao mundo político.
Calcula-se que actualmente existam, activos, cerca de quinhentos biliões
de chips informáticos em todo o mundo, o que significa quase cem chips por
pessoa – sendo que praticamente metade do planeta ainda vive na extrema pobreza.
Assim, a concentração de chips per capita é ainda maior para uma parte
da população mundial, constituindo uma verdadeira ciber civilização.
A expansão é tal que, em todo o mundo são fabricados anualmente mais
de cem biliões de chips, muitos contendo até cem milhões de transístores cada
– o que significa a produção de mais de dois biliões e quinhentos milhões de
transístores para cada habitante da Terra, todos os anos.
Apenas um computador pessoal no início do século XXI tem mais capacidade
do que o conjunto de computadores da NASA quando da primeira viagem
à Lua, cerca de trinta anos antes.
Todos esses fenómenos apontam para a profunda transformação social
– dos grupos e famílias para o indivíduo mergulhado num fabuloso universo de
incontáveis relações virtuais.
A imprensa de Gutenberg gerou um forte movimento de sincronização
social e de estereótipos – que simplesmente acabam num mundo integrado pelos
sistemas de tele-interacção virtual em tempo real.
Rígidos horários nas fábricas, escolas, restaurantes, e até mesmo nas casas,
tendem a desaparecer. Tudo passa a ser comandado pelas ordens através de
computadores, muitas vezes inesperadas, ou de telefones, que também passam a
ser operados através de sistemas digitais.
Para o mundo visual, o futuro está na previsão de decisões, enquanto que
para o acústico, a previsão acontece como projecção de um todo cunhado pelo
passado.
Assim, a previsão numa cultura visual é de natureza diferente daquela
que acontece no mundo acústico – enquanto que esta suporta-se no destino, a
primeira estabelece no livre arbítrio o seu critério por excelência.
Tal diferença não anula uma ou outra, porque ambas sincronia e diacronia
têm muito a revelar.
Para o planeta operando em redes de redes de telecomunicação interactiva
em tempo real, a ideia de previsão passa a obedecer a uma nova lógica – onde
não há mais lugar para o futuro, onde tudo é previsão do momento presente.
O que antes era constituído, desde o Neolítico, por grupos sociais, movimentos
colectivos e organizações em defesa da família, transforma-se no indivíduo
responsável por nanodecisões face a uma gigantesca escala de conhecimento.
Isso faz com que os antigos modelos de educação e de participação
social tornem-se subitamente obsoletos.
Os obsoletos modelos de educação seguem formatos criados para um universo
de grupos sociais e não para cada aluno individualmente. Grupos tribais
privilegiam a educação individual. Mas, os estudantes do início do século XXI
possuem o seu computador pessoal e pertencem a uma rede de mais de um bilião
de pessoas, independentemente de onde estejam.
Eles implicam, simultaneamente, uma abordagem a grupos e a indivíduos.
No sentido oposto ao mundo virtual, as actividades políticas, nas suas mais
diversas instâncias, ainda são de carácter burocrático e de privilégios, tal como
geralmente acontece nos museus, centros culturais, ministérios, departamentos
de Estado... como funcionavam as arcaicas estruturas aristocráticas.
O universo dos computadores pessoais amplifica cada ser humano, o conectando
com uma vasta rede de híper ligações. Isso torna cada um numa espécie
de super indivíduo, aspirando a uma omnisciência e a uma omnipresença
através das próteses de inteligência que o coloca virtualmente presente em praticamente
qualquer lugar, mergulhando num gigantesco oceano de conhecimento.
Por outro lado, embora esse sistema – fortemente pessoal – intensifique as relações
inter persona, ele faz com que os aspectos colectivos passem a ser menos
relevantes.
O universo virtual torna claro que o colectivo emerge do indivíduo, e não
o contrário.
Mas, as arcaicas estruturas políticas ainda estão voltadas para o colectivo,
em detrimento do indivíduo. Manifestam um discurso da solidariedade social
que em nada atende as aspirações individuais. Exercem uma postura política
julgando as posições individualistas como antisociais – mas, nem elas o são, nem
haveria lugar para um julgamento de valor, uma vez que trata-se de um dinâmico
processo social.
Antigas estruturas políticas – por vezes disfarçadas de um discurso superficial
messiânico – que, na verdade, são nostálgicas aspirações ao passado.
Por essa via, o discurso político que defende ideias locais em termos colectivos
pouco sensibiliza as pessoas que têm, mais e mais, ideias globais. Por outro
lado, discursos populistas globais, superficiais, sob o manto de ideias gerais, mas
pessoais e parciais, tendem a magnetizar a opinião pública.
Funcionam as frases de efeito, curtas e sintéticas, superficiais e absurdamente
gerais.
Para boa parte das pessoas, o mundo funciona como os seus computadores
pessoais – num quadro de permanente instabilidade. Esse é o padrão da
normalidade. As coisas funcionam precariamente, mas o todo continua emitindo
notícias.
Por outro lado, um mundo estruturado por biliões de interacções potenciais
já não pode ser constituído por um ethos estável e dominante.
Aos antigos princípios da hierarquia e da anarquia, emerge uma nova figura
política do pós urbano: a pararquia: ordem por coordenação. Um princípio segundo
o qual as diferenças não são eliminadas, nem uniformizadas numa regular
e estável estrutura de valores, mas tudo passa a funcionar pelo contacto permanente
e dinâmico entre indivíduos.
À emergência das corporações virtuais dos mais diferentes tipos, revela-se
um mundo político obsoleto, ultrapassado, com leis que são alteradas num ritmo
acelerado, na busca desesperada de estabelecer uma aspiração impossível – a hegemonia
e a continuidade, aspirações essenciais da antiga ordem internacional.
As instituições passam a buscar, com o objectivo de alcançar aquela aspiração,
o controle sobre tudo e sobre todos.
Face à volatilidade do mundo contemporâneo, à cada vez mais acelerada
mudança das leis – gerada pela profunda diversidade humana desencadeada pelos
sistemas virtuais de telecomunicação – todos os dias uma grande quantidade
de leis e regulamentos legais é estabelecida, com o argumento de defender a segurança
e assegurar a prosperidade, mas com o objectivo real de controlar cada
cidadão e evitar a todo custo mudanças que, de facto, já aconteceram.
Controle das vidas privadas sob todos os aspectos.
Vigilância nas comunicações electrónicas, nas conversações telefónicas, nas
transferências de valores, que contam como exemplo essencial o sistema de espionagem
conhecido como Echelon.
Echelon é, ainda hoje, um projecto secreto de SIGINT – acrónimo de signals
intelligence – para a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos,
indicando o processamento de sinais de telecomunicação em todo o mundo.
Com o argumento de procurar exclusivamente mensagens que possam representar
ameaças à segurança mundial, o Echelon processa, segundo calcula-se,
milhões de comunicações telefónicas, de fax ou de correio electrónico.
Muitos acreditam que o Sistema Echelon está sendo permanentemente
utilizado para espionagem industrial.
O Parlamento Europeu, em Sessão Plenária de Setembro de 2001, seis dias
antes dos atentados terroristas nos Estados Unidos, declarava “não existirem
quaisquer dúvidas quanto à existência de um sistema global de interceptações
de comunicações que opera graças à cooperação entre os Estados Unidos, o
Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia... parece provável que o seu nome é Echelon...
que não podem existir dúvidas de que o sistema visa, no mínimo, interceptar
comunicações privadas e comerciais... e qualquer interceptação de comunicações
representa um grave atentado ao exercício do direito à vida privada... e
viola o princípio da proporcionalidade...”.
O Echelon opera através de satélites. Desde os anos 1960 até ao início do
século XXI quase quinhentos astronautas já foram ao espaço – na grande maioria
das vezes com o objectivo de trabalhar em satélites.
No final de Janeiro de 2006 a Electronic Frontier Foundation, entidade
que defende a liberdade de comunicação através de sistemas electrónicos, iniciou
uma acção judicial contra a AT&T, devido a uma suposta colaboração com o
Echelon.
Sistemas de controle espalham-se rapidamente por todo o planeta.
Em Agosto de 2005, um referendo no Canadá indicou que 72% das pessoas
desejavam que todos os lugares públicos fossem equipados com câmaras de
vigilância.
O equilíbrio e a instabilidade geram a sensação de insegurança. Em 2005,
um relatório do National Intelligence Council dos Estados Unidos previa que
em 2020 o mundo estaria mergulhado num profundo sentimento de insegurança,
ainda mais forte que em 2005. Se tal acontecer, isto significará que o mundo
estará ainda mais equilibrado.
Em situações onde a mudança é mais presente, as pessoas sentem menos
os seus efeitos. A situação de equilíbrio e de insegurança é produzido pela gigantesca
expansão da cultura – basta ter em conta a produção de música, de literatura
ou das artes, que são em grande parte a reedição de coisas já feitas, ou mesmo a
quase ausência de revoluções ou fortes movimentos sociais contestatários.
Assim, o ciclo do medo tenderá a se intensificar a cada ataque terrorista
– mesmo que o ataque não signifique um trágica ameaça em termos absolutos,
mas o será em termos relativos.
Em Março de 2006 a União Europeia adoptou formalmente a Directiva
2006/24/EC, sobre “a retenção de dados gerados ou processados em conexão
com a provisão de serviços de comunicação electrónica disponíveis ao público
ou de redes de comunicação pública...”, exigindo a retenção por um período de
seis meses a dois anos de dados relativos à identidade da fonte de comunicação,
identidade do destinatário da comunicação, data, horário e duração da comunicação,
tipo de comunicação, equipamento utilizado e a sua localização.
A palavra controle surge do Latim rota, que significa caminho, via, rua.
Apenas no século XIII, com o início da fabricação de papel na Europa e a intensificação
da visão, surgiria a palavra controlador, para designar a pessoa que
vigiava uma estrada, com o sentido de ir contra o movimento, de impedir a passagem.
Cerca de cem anos mais tarde surgiria o termo controle, com o significado
geral de restrição.
Controlar significa estabelecer um índice mais elevado de ruído – que impede
o fluxo de informação, de qualquer natureza.
Riqueza nada mais é que a acumulação de implicidades, de relações, de
interacções. Em toda a interacção há troca e descoberta.
Todo o ruído, para além daquele que deseja o próprio sistema, afecta o
fluxo de interacções e bloqueia a produção de riqueza.
Riqueza e equilíbrio não significam, entretanto, o fim das assimetrias sociais.
E se as sociedades literárias aspiravam a hegemonias, até mesmo da riqueza,
as novas sociedades virtuais não questionam a diferença, mas sim o grau de desequilíbrio.
Para uma sociedade literária, as relações interactivas na geração de riqueza
passaram a ser estabelecidas em departamentos numa ordem fortemente
hierárquica, tomando como conteúdo, ainda que parcialmente, a estrutura do
mundo agrário.
Assim, o diferencial entre o que era produzido e o que era recebido, a mais
valia, era acumulado pelo topo da estrutura hierárquica – como uma espécie de
nova leitura das primeiras estruturas agrárias.
Mas, no mundo virtual, onde milhões de pessoas participam como accionistas de
milhares de empresas espalhadas pelo planeta, e onde milhões de pessoas passaram
a trabalhar em casa, parte da acumulação de capital passou a ser realizada
pela especulação.
E a palavra especulação indica exactamente a natureza do processo: de
speculum, que significa espelho, indicando quem não está fisicamente no lugar.
O especulador é o presente ausente.
Tudo transforma-se em algum tipo de especulação – sem que tal signifique
que se trata de algo negativo ou positivo.
Há muitas formas de especulação – a própria vigilância remota é uma delas.
O entretenimento é uma forma de especulação – pois a superficialidade
implica menos factores diferenciais, menos elementos de consciência, tudo mudando
todo o tempo, tornando as pessoas mais flâneurs e badauds.
Curiosamente, a tela dos computadores e das televisões assemelha-se à
superfície de um espelho – mas de um espelho especial, tal como imaginado por
Lewis Carrol ou os antigos e míticos espelhos mágicos, tão importantes para o
místico universo Indiano.
A superfície das telas de computadores e das televisões reflectem o mundo
numa outra dimensão de espaço tempo. É vulgar ouvir apresentadores de programas
de televisão alertarem para o facto de que “entrarão em nossas casas”.
A frequência de varredura das telas substitui o movimento ocular responsável
pela percepção da forma. Isso produz um profundo efeito hipnótico, origem
do fenómeno de imersão.
Mas, não se trata de imersão num universo paralelo especular exactamente
igual – trata-se, de facto, de uma poderosa amplificação do mundo. Através dos
comandos, dos mais diversos sites e das mais diversas programações, viajamos
num contínuo zapping, amplificando a realidade no tempo e no espaço.
Podemos estar no Antigo Egipto ou na ficção de um futuro longínquo;
mergulhar nas regiões mais profundas do oceanos, ou visitar as fronteiras mais
distantes do Universo conhecido; caminhar sobre a Lua ou estar no meio de uma
guerra.
Entretanto, tudo acontecendo de forma superficial – desincorporação e
superficialidade de conhecimento produzido pela natureza de memória estabelecida
pelas telas, onde devemos continuamente preencher vazios cognitivos,
vazios de imagem, vazios de luzes e cores.
Um exercício que concentra na visão central elementos da visão periférica
tal como acontece com auscultadores de ouvido, transferindo a estereofonia
para o centro da cabeça.
Todo esse universo especular instável, dinâmico, de uma escala fabulosa,
é a nossa nova realidade. Não uma realidade nova, no sentido de estar no seu
início. É uma realidade sempre nova.
Uma realidade em equilíbrio – pois apenas o equilíbrio pode ser instável.
A híper intensificação de certos aspectos da visão e da audição levou também
a uma intensificação do olfacto, do tacto e do paladar. Nunca se produziu
tanto incenso no planeta, e a indústria química para novas fragrâncias destinadas
a produtos comerciais nunca foi tão activa. Nunca antes existiram tantos restaurantes,
de tão diferentes cozinhas. O mesmo se pode dizer da indústria do
vestuário – uma indústria fortemente relacionada ao tacto. Nas cidades de todo
o mundo, as lojas de livros ou de outros objectos são rapidamente substituídas
pelo comércio de roupas e de calçados, que tratam do nosso tacto ao caminhar.
O mesmo ocorre com as antigas feiras de rua em toda a Europa.
E, em tudo, há sempre um gigantesco volume de referências, de símbolos
– desde a imagem de actores ou cantores famosos, a atletas, filmes de cinema,
músicas populares. Porque o símbolo é sempre uma relação degenerada, ou de
segunda instância, com o seu objecto.
Ainda que um religioso possa considerar o símbolo da sua religião como
algo real e concreto, ele apenas o é numa segunda instância – apenas acontece
quando tratamos da razão.
É notável como um mundo feito de superficialidade, de permanente entretenimento,
mas também dum profundo envolvimento directo com próteses
sensoriais, é caracterizado pelo uso intensivo de símbolos das mais diferentes
naturezas.
A democracia implica um forte sentido de identidade, promovido pelo
uso intensivo da visão, com o papel e o alfabeto fonético. Sem identidade não há
diferença – e sem diferença não há consciência.
Mas, como estabelecer um forte sentido de identidade numa realidade em
contínua transformação?
As antigas funções sociais que designavam fortes identidades desaparecem
rapidamente. Boa parte da população passa a flutuar entre diversas funções, uma
grande variedade de ofícios, procurando adaptar-se continuamente como forma
de sobrevivência.
Boa parte dos jovens procura a identidade não numa função, mas na imagem
simbólica de algum personagem, de algum papel teatral como as imagens
cinematográficas, de algum mito de marketing – que são puros personagens ficcionais,
construídos como pertencentes a um reality show contínuo.
Segundo a United Nations Population Fund, cerca de metade da população
mundial, algo em torno dos três biliões de pessoas, são jovens com menos
de vinte e cinco anos de idade. Quase um terço desses jovens vive em extrema
pobreza, sem educação ou trabalho. Cerca de 85% desses jovens vive em países
pobres.
Outro elemento que designava fortes padrões de identidade era o nacionalismo,
típico das sociedades acústicas e, mais tarde, das sociedades literárias
impulsionadas pelo rádio.
A antiga ideia de nação, de fronteiras territoriais e de Estado independente
desaparece rapidamente. As notícias jornalísticas divulgam com crescente intensidade
e sentido de urgência factos acontecidos em diversos países. Os mais
diferentes produtos, das mais variadas naturezas, viajam permanentemente pelo
planeta. Até mesmo os alimentos modificam a geografia planetária – frutos tropicais
vendidos em todo o lado, frutos e vegetais cultivados em diversos lugares
contrariando o ritmo das estações climáticas.
Violência é apenas busca por identidade.
A violência pode, eventualmente, estar relacionada com a pobreza – mas
apenas quando a pobreza implica a perda de identidade, tal como acontece com
fluxos migratórios ou com a instável desfuncionalização social do mundo urbano.
Uma realidade de superficialidade também é de instabilidade – o superficial
é sempre volátil.
O FBI relata que os ataques violentos nos Estados Unidos aumentaram,
entre os anos de 1960 e 2005, em cerca de 200% proporcionalmente ao crescimento
populacional.
Países como o Brasil e a Rússia, entre muitos outros, conheceram um
crescimento avassalador nos seus níveis de violência interna – o que levou ao
escritor Amin Maalouf, que viveu os terrores da guerra civil no Líbano durante
boa parte da vida, a considerar se não estaríamos caminhando para um cenário
disfarçado de conflitos civis a uma escala planetária.
O sentido etimológico da palavra corrupção é “romper aos pedaços”,
“destruir”, “falsificar”.
Toda a corrupção é um acto de violência.
Onde há corrupção não há identidade – pois a violência não conhece a
estabilidade, e sem estabilidade não há diferença.
Um curioso paradoxo – na busca de estabelecer a identidade, a violência
gera a destruição das condições fundamentais para que possa existir um quadro
de estabilidade sistémica.
Apenas através da cultura é que pode existir uma forte condição de identidade.
E tudo no universo do entretenimento passa a ser cultura – ainda que pela
superfície.
A quantidade de livros, revistas, jornais, museus, galerias de arte, canais
de televisão, filmes de cinema, objectos de desenho industrial, automóveis entre
tantos outros artefactos nunca foi tão gigantesca.
Estamos totalmente cercados por uma formidável quantidade de gadgets– tudo pela superficialidade do entretenimento.
Aquilo que poderíamos chamar de uma estética da violência, da agressividade,
do desrespeito – ou da não-atenção, da sujeira, tudo combinado com
muito sexo, presente um pouco por todo o lado como um quadro de exclusão,
atribuindo-se valores anti-burgueses e pretensiosamente anunciando como salvadora
de antigos valores, mesmo paradoxalmente, nada mais é que uma reacção
ao mundo feito de gadgets, ao mundo transformado em híper cultura.
E é muito interessante observar como isto é tão característico de muito da
chamada inteligentzia no início do século XXI.
Curiosamente, tratando-se de uma nostálgica estética da superficialidade,
essa inteligentzia também representa entretenimento, produzindo novos gadgets,
tão burgueses como aquilo que critica pelas vias do conteúdos, dos símbolos,
literariamente.
A realidade de uma híper cultura, formada por um incontável volume de
artefactos, de toda a natureza, tudo cunhado pelos sistemas de telecomunicação
planetária interactiva em tempo real, é suficientemente instável para produzir
uma rápida degeneração dos níveis de identidade.
Nas chamadas sociedades abertas, não comandadas por um sistema religioso,
de carácter ideológico ou teológico, a sobrevivência da cultura como
organismo vivo e simbiótico depende de instrumentos sociais que a critiquem
– crítica aqui tomada no sentido de desconstrução.
Há, por excelência, dois instrumentos de crítica da cultura: a arte e o
crime.
A arte – no sentido de uma crítica à cultura, não pelo conteúdo, mas pela
estratégia – emerge durante o Renascimento Italiano, coincidindo com o início
da produção de papel na Europa e, pouco mais tarde, com a invenção da imprensa
de tipos metálicos móveis de Gutenberg.
Desconstruindo permanentemente a cultura, a arte a mantém viva, em
dinâmica transformação, gerando função e identidade.
A verdadeira crítica estabelecida pela arte acontece em relação às estruturas
lógicas sensoriais e aos padrões de associação neuronal, de conjuntos neuronais
e sistemas sinápticos. Quando a arte emerge pelo conteúdo, pelo símbolo, ela
geralmente não passa de uma forma mais refinada de entretenimento – tal como
acontece na maioria das vezes.
Isso não significa dizer que a arte conceptual é entretenimento. A arte conceptual
articula uma complexa rede de relações entre grupos de símbolos, transcendendo
os próprios símbolos e provocando uma metamorfose do próprio
entendimento do mundo.
O outro instrumento de crítica da cultura é o crime. Mas, enquanto que a
arte é um processo generativo, o crime é degenerativo.
O crime implica uma profunda simplificação do sistema – todas as referências
deixam simplesmente de existir, passando a girar em torno da acção criminosa.
Quando, num quadro de sociedade aberta, uma cultura expande-se sem
crítica, o crime aumenta e também a violência, na busca de identidade.
Os novos complexos de informação geram uma expansão sem precedentes
da cultura, tudo pelas vias do entretenimento, da superficialidade.
Enquanto que o crime e a violência estão directamente associados aos
jogos de soma zero – com perdedores e vencedores – a arte é sempre jogo de
soma não zero.
Se tivermos em conta os princípios designados pela mecânica clássica, pela
lógica aristotélica – fundamentais para o conceito literário de desenvolvimento e
progresso – esse quadro de entretenimento integral, de crime e violência, de superficialidade
e de volatilidade, significariam a condenação do planeta à decadência,
à entropia.
Mas, existem cada vez mais estruturas complexas – e, mais importante, tal
complexidade é suportada por um dinâmico sistema de informação.
O antigo mundo literário separava com rigor o que é vivo do que não é
– mas, quando qualquer elemento aproxima-se de um quadro de instabilidade,
revela reacções dinâmicas características daquilo que é vivo.
E o que é vivo está em permanente transformação.
Daí, a brilhante observação de Prigogine segundo a qual estruturas dissipativas,
através de um processo de entropia, acabam por gerar sistemas complexos,
contrariando a segunda lei da termodinâmica e gerando a primeira, num
dinâmico metabolismo.
Isto é, estruturas dissipativas que recebam energia de uma fonte exterior
acabam por gerar momentos de instabilidade e de auto organização, projectando
modelos mais complexos.
Tudo no mundo da realidade dos sistemas virtuais implica a existência de
um contínuo fluxo de informação, onde tudo é simultaneamente externo e interno
– como uma espécie de contínua auto injecção de energia entre diferentes
campos.
Jogos de soma zero gerando jogos de soma não zero.
A ideia de jogo está intimamente ligada à ideia da vida.
Todas as relações, incluindo as relações simbióticas, implicam de alguma
forma princípios de jogo.
A palavra jogo, do Latim jocus, nasceu no século XII, coincidentemente
com o início da fabricação de papel na Europa, e significava originalmente “peça
de teatro”.
A antiga palavra Latina para jogo é ludus, que significava, mais especificamente,
jogos religiosos ou oficiais realizados em honra aos mortos. Daí as palavras
ilusão, como uma espécie de contra jogo, alusão, lúdico ou prelúdio.
Conta-se que Xerxes, o célebre rei Persa que viveu entre cerca de 519 a.C. e
465 a.C., teria submetido os habitantes da Lídia, Ásia Menor, não pela força das
armas, mas pela construção de casas de jogos que teriam enfraquecido o poder
de resistência da população local. Daí, da palavra Lídia, teria surgido, mais tarde
o termo Latino ludus.
A palavra Inglesa para jogo, game, surge de gamão – um antigo jogo que
supõe-se ter origem Suméria.
Tanto jocus, como ludus ou gamão implicam os princípios mais elementares
da vida, combinando princípios de soma zero e de soma não zero.
Hermann Hesse, na sua obra Das Glasperlenspiel, O Jogo das Contas de
Vidro – Magister Ludi, descrevia o jogo como sendo «tudo aquilo que, enquanto
conhecimento, pensamentos e obras de arte, a Humanidade produziu nas suas
épocas criativas, tudo aquilo que nos períodos seguintes foi reduzido a conceitos
por meio da observação erudita e convertido em propriedade intelectual comum".
É esse enorme conjunto de valores intelectuais que o jogador da conta de
vidro joga, tal como um organista toca um órgão. Esse órgão atingiu uma perfeição
inimaginável. As suas teclas e pedais ligam-se a todo o cosmo intelectual,
os seus registos são incontáveis. Teoricamente, poder-se-ia, com a ajuda de um
tal instrumento, reproduzir todo o conteúdo intelectual do universo».
Anaxágoras de Clazômenas, que viveu entre cerca de 500 a.C. e 428 a.C.,
defendia que as sementes da vida estariam potencialmente presentes em todo
o Universo e que, uma vez na Terra, teria se expandido – era a ideia conhecida
como panspermia. Em 1879, o genial Hermann Von Helmholtz resgatou a antiga
ideia de Anaxágoras.
No início do século XXI, René Berger questionava-se acerca de uma possível
ciberpanspermia – numa realidade caracterizada por informação distribuída
intensiva e dinamicamente, haveriam sementes de novos conhecimentos espalhados
pelo mundo virtual, prontos para uma rápida expansão.
O conceito de ciberpanspermia, cunhado por René Berger, resgata para o
mundo do conhecimento, para o organismo simbiótico da cultura, os princípios
dissipativos de formação de sistemas complexos.
Mas há uma antiga lenda Judaica que ilumina todo esse processo. São os Trinta e Seis Tzadikim. A palavra tzadik significa, em Hebraico, justo, correcto,
iluminado – e tzadikim é o seu plural.
A mundo estaria salvo pela existência de trinta e seis pessoas justas, correctas.
A partir do século XVIII, a existência dos tzadikim passa a ser oculta – eles
podem estar em cada um de nós, não obrigatoriamente a todo o momento. O
mais interessante, nessa tradição, é o facto de que um tzadik pode não saber que
o é.
Gershom Scholem, sempre genialmente, lembrava que «não existe uma
família dos Justos. O Justo oculto, quando é alguma coisa, é na verdade o seu e
o meu vizinho, cuja verdadeira natureza permanecerá eternamente inexplicável
e a respeito da qual essa misteriosa ideia nos ensina a não fazer julgamentos de
valor. Esse é um ensinamento anárquico num certo sentido, e exactamente por
isso é tão surpreendente. O seu próximo pode ser o Justo Oculto» – antecipando
uma nova lógica sensorial. |