O objetual e o conceitual
na arte de Adriana Montenegro
Por
Mirian de Carvalho

Desenvolvendo pesquisa sobre a produção artística hodierna, nossa grande questão circunda os problemas da experiência estética, tanto do ponto de vista do trabalho do artista, quanto do ponto de vista do olhar, ou melhor, do corpo, em contato com a “ambiência” artística. Esse contato aponta para pontos nodais a serem considerados, partindo da perspectiva da “arte” enquanto: processo; inauguração de espaços e tempos; esquiva da forma e da verossimilhança; desvio de modelos estilísticos; desconstrução; apropriação, dentre outras inúmeras possibilidades. Considerando, primordialmente, a experiência estética como processo inventivo ou originário, o trabalho de cada artista requer uma abordagem própria, a partir da qual o “leitor” criará seus caminhos.

Ao rastro de uma “leitura” voltada para o processo, deve ser observado o trabalho de alguns artistas que, instrumentalizando técnicas ditas “tradicionais”, tais como a pintura, a escultura ou a gravura, se lançam a perspectivas inovadoras, tecendo uma rede de relações intrínsecas à sua produção, que passa de uma pura visualidade a sentidos de natureza tátil, criando ambiência com valor de instalação, através de linguagens não representativas. Esse procedimento torna mais complexa ainda a noção de contemporaneidade, tornando difícil a delimitação de seu campo, questão essa tratada algumas vezes com certo radicalismo. Mas, considerando-se a amplitude da arte hoje, e considerando-se seus diversos meios expressivos, deve ser lembrado que, desde o início do Pós-Modernismo, as linguagens contemporâneas diversificaram-se, gerando agora múltiplos desdobramentos. Porém, ao espectro de um amplo olhar, essas diversidades quase sempre tangenciam vertentes objetuais e conceituais. E, não raro, essas duas facetas “estéticas” se reúnem nas expressões artísticas, tal como acontece nos trabalhos de Adriana Montenegro, artista, que, apresentando-se ao público em algumas mostras de arte realizadas de 2002 a 2005, elegeu múltiplos procedimentos técnicos, tais como objetos, instalações, imagens digitais, fotografias, poemas-visuais.

Em desdobramentos estéticos e semânticos, muitos trabalhos objetuais de Adriana Montenegro, incluindo as instalações, revelam viés conceitual, a partir de uma adesão a palavras ou a frases, ou por meio de apelo à interpretação dos códigos advindos do nome Sem Título, instigando leituras ao fluxo das metas da contemporaneidade. Na produção artística de Adriana Montenegro, tais leituras possibilitam articulações entre trabalhos diversos, captando a atenção do visitante pelo impacto da transformação das coisas do cotidiano, expondo profundidades e superfícies sob a “face neutra”. Coisas, não mais que coisas, despertando o olhar e o pensamento. Alijados do uso, os objetos sofrem interferências que os lançam à esfera da arte.

Por meio de apropriação, Adriana inaugura lugares onde livros, colchões, bolas, passadeiras, dentre outros objetos, aderem a outra ordem, que transita entre o objetual e o conceitual, despojando as coisas de seus significados e funções usuais. Em sua arte, Adriana reúne aspectos do sensível e do reflexivo, posicionando-se como apelo ao visitante a ser intérprete dos processos artísticos. Assim, nesses procedimentos de desreificação da coisa, os objetos que compõem a Série Livros expõem uma leitura iniciada por Adriana, dirigindo-se a outros “leitores”, tal como ocorre com uma Bíblia que apresenta inserções de anzóis, instigando várias possibilidades interpretativas. A mesma dinâmica envolve o “leitor” do Livro nomeado Os Outros Eus, apropriação e homenagem à obra de Fernando Pessoa, apresentando páginas recobertas por espelhos. Observe-se que, seguida do nome Narciso, a mesma inscrição, Os Outros Eus, igualmente uma alusão carinhosa ao Poeta dos Heterônimos, refere-se a uma instalação realizada com vidro, água, peixes, e espelho, emitindo reflexos. E, note-se que a água também se faz espelho, ao incorporar imagens das coisas e pessoas localizadas na ambiência.

Voltando à Série Livros, merece destaque a instalação que traz o escrito O Banquete:sirva-se. Valendo-se de um suporte de acrílico preso à parede, nele se destaca um livro aberto, tendo pregos de cobre cravados nas páginas. Esse Livro dialoga com outra instalação: uma passadeira igualmente trespassada por pregos de cobre, estendida no chão, que se assinala em terra negra. Próximas ou não na mesma ambiência, essas duas instalações atuam como espelhos, seja em razão de sua cor vermelha, seja em virtude da presença dos pregos de cobre encravados em suas matérias, seja pela proposta de interpretação. Nesses dois trabalhos, uma vez mais confirma-se uma instância estético-imagética emergindo através do “espelho”, para onde confluem múltiplos olhares e ângulos do objeto de arte e do mundo, integrando-se ao visitante.

Numa rede de “imagens”, Adriana conduz sua arte a uma ordem ao mesmo tempo afetiva e provocadora, abrangendo os materiais que compõem as coisas. E, quase sempre atuando por apropriação, a artista busca possibilidades que se estendem ao lixo, tal como ocorre em Nascituro: trabalho que se desenvolve no interior de ovos abertos, que, enfileirados, trazem dentro das cascas imagens realizadas em grafite. Transitando entre o objeto e o conceito, tais imagens podem ser percebidas como jogos de espelhos desvelando-se ao visitante, e participando do olhar que as percorre nessa “superfície” e “concavidade” do recôndito e do simbólico.

Nessa instalação, inclui-se um ovo fechado, moldado em bronze, que, em virtude de sua matéria e convexidade, mostra-se como reflexo do entorno, captado através de efeito luminoso. A essa imagem insurgente, seja o rosto da artista ou outro motivo, o trabalho se assume fulcro de variações, incorporando mudanças espaciais e temporais. Tal dinâmica quebra a noção de forma fixa e acabada. E o objeto de arte encarna então um processo variacional. Atua como desconstrução da forma através de variações imagísticas. Nesse sentido, a imagem é sempre atual. É sempre origem. Jamais cópia ou reprodução. Suas transformações não enquadram referenciais das coisas ausentes.

Ao conjunto de trabalhos aparentados do ponto de vista estético, a artista insere imagens digitais, dentre elas Almas Gêmeas e Memória, que são painéis fotográficos atuando como instalação, ainda que Memória seja também um poema-visual. Igualmente, nesse caso, pode ser mencionado um viés conceitual, despertando leituras que se deslocam através de estratos lingüísticos integrados à produção da artista. E, mais uma vez, a atuação do espelho se faz notar nessas peças.

Em sua produção artística, Adriana revela impactante efeito de possibilidades, ou seja, cria caminhos de “leitura” entrelaçando ambigüidades, que reúnem individualidade e interação. Intimismo e perspectiva social. Observe-se que no trabalho de Adriana o estrato lingüístico não se dimensiona enquanto narrativa. Em sendo ela também poeta, em sua expressão plástica o nome se faz imagem originária. Não se reduz ao signo lingüístico. Nem assume função de título. Trata-se do encontro do objetual e do conceitual, ultrapassando os limites da objetividade e da subjetividade, através de peças que “esperam” do visitante um posicionamento participativo, que complete as imagens e os sentidos situados entre o mundo e o corpo.

Na arte de Adriana Montenegro não há facilidades. Não há deleites contemplativos. O mundo não se coloca como paisagem. E, na produção da artista como um todo, insere-se uma angulação apontando para uma troca de reflexos que articulam mundo, objeto artístico e visitante, envolvidos numa rede de interpretações que pedem desdobramentos. Nessa dinâmica, os objetos de arte pedem participação. E, lembremos, apresentam-se como espelhos. Espelhos claros e nebulosos. Livro e leitor. Água e luz. Ovo e fisionomia. Passadeira e caminhante. Nesses espelhos encontram-se outros eus. Nesses espelhos encontramos limites e expansões desses eus. Nossos e do outro. O limite e o não-limite. E as dificuldades e possibilidades de quebrar-se o limite. Dentro desses espelhos, encontramos nossos reflexos. Que mostram o que o olhar quer ver. E aquilo que o visitante nem sempre deseja ver.