MANUEL RODRIGUES VAZ
Intervenção lida em 2 de Dezembro de 2020, no Restaurante O Pote, em Lisboa, no âmbito dos almoços da Tertúlia À Margem
Embora a 5 mil quilómetros de distância, em Luanda, devido à minha profissão de jornalista, tinha acesso a toda a imprensa que se publicava em Portugal, pelo que tenho ainda na lembrança que, no princípio dos anos 70, as manifestações culturais na capital portuguesa apresentavam uma constância recorrente algo estranha: tinham origem, cada vez com mais frequência, no Goethe-Institut de Lisboa.
Não havia volta a dar: eram exposições, eram concertos, eram palestras, eram colóquios, eram encenações teatrais, enfim, eram todo um sem número de manifestações a que acorria um público cada vez maior e mais interessado.
O causador destas coisas estranhas no ambiente penumbroso e estático que era a Lisboa daquela época, tinha um nome: chamava-se Curt-Meiyer Clason (1910-2012) e sobre a sua estada em Portugal à frente do Goethe-Institut, em que reflecte sobre a sua acção, deixou disto testemunho no livro Diários Portugueses, que a Editora Documenta publicou em 2013.
Curt Meyer-Clason não precisa de apresentação. A sua acção cultural, no sentido mais amplo do termo, como o nosso cometa cultural, durante os sete anos em que dirigiu o Instituto Alemão de Lisboa, constitui credencial suficiente para quem, nesta cidade e neste país, estava minimamente atento ao que se passava à sua volta. […] Ele foi o nosso cometa cultural. Como diz João Barrento, que traduziu os Diários Portugueses: «Ao longo das suas 400 páginas o discurso flui, variado e vivo, cheio de nuances e de uma invulgar capacidade de observação de pessoas e de factos, que nunca valem por si, mas sempre por aquilo que revelam de uma situação existencial, política e cultural. É uma crónica literária de um dia a dia cheio de revelações e descobertas, em que as mais pequenas coisas, mesmo a conversa aparentemente mais estéril ou o mais seco papel oficial, se transformam num meio de chegar às mais recônditas e por vezes insuspeitadas formas de pensar e agir de dois povos e de dois mundos, entre os quais Meyer-Clason se situa. Situação nada cómoda para quem, desde que pôs pé neste país, procurou agir à margem de (entenda-se: quase sempre contra) receios diplomáticos, interesses económicos e estratégias políticas, e assim transformar o seu Instituto num dos mais vivos e abertos fóruns culturais de Lisboa, uma Cidade antes entorpecida e reprimida, e depois um pouco perdida na doce anarquia dos primeiros tempos da Revolução.»
Sobre este período, diz-nos ainda o germanista João Barrento, «O que Meyer-Clason fez na Lisboa entre a primavera marcelista e o período pós-PREC poucos o fizeram: chega a Lisboa e em pouco tempo muda a paisagem cultural de uma Cidade meio adormecida e espartilhada pela censura de uma ditadura disfarçada, isolada e já descrente de si mesma. E fá-lo entrando pela porta da esquerda, de uma esquerda certamente não coesa, marcada por tonalidades que os Diários espelham, e que vão da mais ortodoxa à mais festiva. Mas também abrindo portas que o regime normalmente fechava, trazendo ao seu Instituto figuras, alemãs e não só, que só aí poderiam ser vistas e ouvidas, fazendo germinar sementes que o terreno estéril da ditadura não conhecia. Aí, no “Goethe” desses anos, como escrevi algures, “podiam pensar-se coisas que cá fora eram impensáveis”.»
Por sua vez, Rui Esteves salienta que recordar Curt-Meyer Clason é recordar um homem singular. Um escritor singular. E assinala: «Saliento escritor, de que os Diários Portugueses são a prova. Aí encontra-se condensada uma visão de Portugal, uma visão de estrangeiro (amigo e estrangeirado), um olhar atento sobre a sociedade, as mentalidades e a cultura portuguesas. Um retrato de uma experiência de vivência (em forma diarística, com recorte literário e reflexão constante) da fase do fim da ditadura. Um livro de sagacidade mordaz, mas repleto de humor. Certeiro, muito atento e tremendamente bem escrito. E político. Um livro político. Mas terno também. Um livro que traz consigo a singularidade de uma visão do mundo (Weltanschauung), pelo olhar de um homem de causas, firme, que sabia o que queria.»
De várias maneiras podemos afirmar que estas memórias são, antes mais, uma reflexão sobre a Europa, e aqui vale a pena lembrar que têm muito a ver com as teses de Eduardo Lourenço, que acaba de nos deixar, constituindo acima de tudo um ponto alto para nos conhecermos melhor como povo e como nação, através de um Outro que nos quis compreender da melhor maneira, e que o conseguiu, levando-nos a também nos conhecermos melhor, o que é sempre conveniente para nos melhorarmos.
De várias formas, Curt conseguiu fazer do seu Instituto um polo dinamizador de cultura e de saber, um lugar de encontros, um contributo para o progresso, empenhando-se em divulgar a cultura alemã, mas permitiu também que nas instalações do Instituto se desenvolvessem actividades culturais de autores e artistas portugueses – entre peças de teatro, conferências e debates – que possibilitaram um espaço de discussão de ideias, muitas das quais em oposição ao regime ditatorial salazarista. Meyer-Clason – atravessando na sua existência praticamente todo o século XX – viveu ainda no Brasil, Argentina, França e na Alemanha natal, vindo aí a falecer em 2012 com cento e um anos.
Mas deixemo-lo falar: «No fundo, sei pouco de Portugal, sei pouco da sua história. Conheço alguns escritores, traduzi alguns livros, visitei o país uma vez. Mas falo e escrevo a sua língua, mais exactamente a língua do maior território descoberto por Portugal, o Brasil, esse idioma de vogais claras, vibrante, cantante, enriquecido pela África negra e pelo Japão, que tornou mais leve a austera sintaxe retórica do português europeu, mais fechado, mais cerrado. E continua: «Pois é, ninguém diz uma palavra sobre Portugal, sobre o seu presente soterrado, sobre o seu futuro hipotecado. Mas, quem é este Ninguém? Naturalmente, ninguém, todos e cada um dos que nem pensam nas pessoas deste país, nada têm que ver com ele, mas apenas agem como se. Como se. Os gestores da cultura das nações ocidentais olham do alto do seu camarote, pachorrentos, entediados, para o palco dos acontecimentos portugueses, a maior parte das vezes sorriem sem darem por isso, ou bocejam sem darem por isso. Falam com os Portugueses, geralmente num francês mediano, se não forem franceses, e por isso não reconhecem as suas particularidades, o seu valor específico, porque não aprofundam a língua. (…). E os naturais do país baixam o olhar quando uma palavra impensada aborda a actualidade portuguesa, ou então atravessam o interlocutor com o olhar e deixam-lhe a liberdade de escolher entre estar a ser ignorado, posto a nu ou crucificado. Eles, todos, parecem estar de acordo numa coisa: o silêncio, e sobretudo o silêncio que oculta alguma coisa, é de ouro, para além de poupar os nervos e de ser o menor dos males e o menor dos sacrifícios. Para quê criar problemas para si, e também para os outros? A vida é tão curta e pode ser tão agradável – especialmente em Portugal. E é claro que todos «amam» este país, dizem, e isso quer dizer: as suas praias sem fim e sem gente, os seus vinhos saborosos e baratos, especialmente o verde, os seus bordados a preços baixos, feitos à mão, as criadas submissas (encargos sociais é coisa que praticamente não existe), a grande variedade de peixes… E então, meu caro, isto não é fantástico? E as hortaliças, aqueles enormes pimentos, em travessas de estanho nas montras, parecem pinturas de Braque, e ao fundo esta luz viva de Portugal, as mais puras transparências, indescritível… Ah, se eu pudesse pintar tudo isto, este céu reverberando de aromas, é de perder a cabeça, um abismo de encantamento em que desejamos afundar-nos, sozinhos, completamente a sós, e ir desaparecendo pouco a pouco…»
Cyro de Mattos, autor brasileiro traduzido por Meyer-Clason, que também traduziu para alemão alguns dos mais importantes escritores brasileiros mas é conhecido sobretudo por ser o tradutor de Guimarães Rosa, qualificou-o como um verdadeiro e apaixonado “construtor de pontes literárias”, e Berthold Zilly (2012), num artigo in memoriam bastante elogioso, descreve Meyer‑Clason como “o mais importante mediador entre o mundo ibero-americano e o mundo germânico no século XX, um mestre da língua alemã, um grande humanista”, tendo-se revelado ao longo da sua vasta vida “um incansável militante contra qualquer tipo de preconceito racista, social ou nacionalista, em favor da liberdade e da justiça social, um intrépido homem de letras polivalente, [e] cosmopolita.”
Resumindo: a par de um embaixador britânico que esteve acreditado em Lisboa no início deste século, Alex Allis, que até casou com uma portuguesa, Curt-Meyer Clason foi o diplomata que melhor nos compreendeu e aceitou com as nossas forças e fraquezas. Ele apenas lamentava que não tivéssemos arranjado dirigentes para nos merecerem. Por ele, em suma, fez o que sentia que tinha de fazer, isto é, incutir que a competência e a consciência eram o horizonte orientador da sua acção e devia ser a de nós todos. Foi, portanto, e acima de tudo, um homem lúcido, à boa maneira de Fernando Pessoa, o que lhe valeu, claro, muitas incompreensões e inimizades. Não esqueçamos que o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão chegou a enviar um funcionário propositadamente para o espiar, e era normalmente repreendido pelos gestores de algumas empresas alemãs que não gostavam que ele desse importância aos intelectuais portugueses mais recalcitrantes.
ANEXO
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