Crónicas temporais

NICOLAU SAIÃO

Nicolau Saião (Francisco Garção /Portugal), nascido em Monforte do Alentejo e residindo em Portalegre  desde os 3 anos. Autor de alguns livros, de quadros e de objectos-esculturas, proferiu palestras em locais nacionais e do estrangeiro sobre arte, literatura de mistério e análise social, além de ter feito declamação nomeadamente em realizações radiofónicas. Ligado à prática surrealista, mas de forma heterodoxa e libertária.


            «Para que o Mal prospere basta que os homens bons não façam nada”
Edmund Burke

1 Volta Abranhos, estás perdoado!

O tristemente célebre conde de Abranhos, inesquecível figura de melífluo malandreco que Eça desenhou com ironia e propriedade de estilo a partir de perfis da sociedade do seu tempo, deve decerto a esta altura do campeonato – como usa dizer-se – andar a revolver-se no túmulo.

Agora que as oportunidades para os videirinhos empreendedores, mesmo pelos piores motivos, se multiplicam neste estranho fim-de-ciclo, o sagaz Abranhos deve estar a encher-se de comichões, como ele mesmo dizia no seu linguajar aproximativo, cheínho de vontade de participar no forrobodó em que certa parte do País se tornou, pese naturalmente às “boas intenções” de mandantes e outros benfeitores da Nação.

Não parte geográfica, é claro, mas psico-social. Pois os ensejos de tipo abranhista florescem ao que se sabe tanto a sul como a norte, tanto no interior como junto ao oceano, o poético Oceano donde partiram as caravelas de antanho e que os abranhos só sulcam se isso convier ao seu inestimável pé-de-meia político e mediático. Isto simbolicamente, é claro.

Creio que os leitores se lembram de Abranhos, da sua maneira de ser, do seu perfil comportamental, dos seus tiques característicos, do seu jeito peculiar: untuoso, falsamente educado e insinuante, um tipo clássico de falso-irmão que devido ao meio propício onde actuava subiu de manga-de-alpaca até ministro do Reino, tendo passado por outras confortáveis vilegiaturas de poder e de mando particular ou público.

No entanto, uma coisa podemos dizer em seu abono: Abranhos não era um violento – como muitos agora há – e, se possuía a suficiente dose de hipocrisia para singrar numa sociedade decadente e apodrecida como esta que agora temos, não ostentava um descaramento brutal nem a arrogância que, actualmente, é o pão-nosso de cada dia.

Os abranhos descarados deste novo tipo pululam, enroupados nas suas suficiências peculiares. E é assim que temos as diversas versões quotidianas de agora: abranhos-politiqueiros, cínicos e metendo toda a gente no coração com sorrisos e beijocas, enquanto ardilosamente vão fazendo o deserto ético à sua volta; abranhos-publicistas de chantagem ou de orientação, truculentos e pernósticos, fanfarrões e tentando apresentar-se como propugnadores do bem comum quando apenas são pequenos agitadores de trazer por casa, no género do goebbels de triste memória ou do béria que obrigava autores de relevo a assinar as suas obras com o nome dele; abranhos-mestres escolas, medíocres mas espertalhões, invejosos e agindo nas faldas de greves espúrias, dando origem a pequenos monstros morais nos lugares onde exercem o seu múnus profissional; abranhos-funcionários incompetentes, pretensiosos e narcisistas, visando apenas o privilégio e as prebendas; e a lista não deverá esquecer os abranhos-vira casacas, os abranhos-líricos fofoqueiros, os abranhos-desportivos e culturais, os abranhos-científicos senis…

O original, o único e autêntico, ao menos tinha o selo das imponderáveis naturalidades que da escrita provêm. E, ao contrário dos actuais, algo habilidoso em estilo “fin-de-siècle”: era gastrónomo e até se perfumava a contento. E, como corolário, vestia bem – coisa que os abranhos destes tempos esquisitos desconhecem alarvemente a não ser em caricatura deslavada de azeiteiros sem classe nenhuma…

2 Sobre a dignidade

  Apesar dos falsos profetas e das vozes de discórdia que sempre aparecem em épocas de transição ou de decadência, a verdade é que o Povo conserva interiormente e mau-grado tudo o que lhe tem passado por cima, uma forte reserva de apego à dignidade.

   O Povo português, com excepção das habituais ovelhas ronhosas, não é um povo indigno e corrupto.

Precisamente por isso é que, na última pugna eleitoral e no que se lhe tem seguido, a palavra-de-ordem que mais repercussão encontrou foi a de combate à corrupção.

Evidentemente que muitos têm razões pseudo-moralistas para contestarem esse conceito, entendendo eles como corrupção a liberalidade de costumes. Donos de mentalidades recalcadas, sexual ou funcionalmente inaptos, esses moralizadores de pacotilha confundem os conceitos e asneiam quando o podem fazer.

Corrupção é outra coisa. Definamos então conceitos, com exemplos, porque ver claro é sempre útil, sempre profícuo.

Corrupto não é só, assim, o que no exercício das suas funções públicas rouba ou se deixa subornar, também o é aquele que, por interesses de outra ordem discrimina quem lhe está na alçada; não é apenas o autarca e o governante que por compadrio dá cobertura a actos menos legais, mas o que por  negligência consente que esses actos não sejam esclarecidos; não é só o agente da autoridade que fecha os olhos a acções de prevaricadores ou de marginais, mas o que se deixa envolver na sedução de patifórios de alto gabarito; corrupto, ainda, não é apenas o funcionário que por inclinações diversas prejudica ou persegue subordinados, mas o que por incompetência ou falta de autoridade moral consente que no âmbito que lhe cabe orientar se instale o salve-se quem puder, a cunha ou o cunhadismo. Corrupto, finalmente, não é só o político que se serve fingindo que serve, mas também aquele que por pusilanimidade, falta de carácter ou desprezo pelos cidadãos, cifrada em habilidadezinhas, estimula a falsidade, o nepotismo e o jogo de influências, ou que busca defenestrar magistrados para que o seu sector escape a justas punições.

O Povo português claramente tem esperado que os sacrifícios que lhe são pedidos tenham a contrapartida da seriedade, da limpidez de processos, da honestidade inerente e eficaz. Desfavorecido pecuniariamente, tem como riqueza inalienável a sua dignidade – mesmo que os cínicos, os corruptos queiram subvertê-la ou submetê-la.

A História diz-nos que, na verdade, os que tentaram ignorar que o Homem não é uma besta-fera deram mais cedo ou mais tarde com os burrinhos na água, como diz a voz popular.

É por isso que todos decerto fazemos votos para que o combate à corrupção seja sinónimo de limpeza da dignidade do País – frequentemente tão enxovalhada por sendeiros…

                                          ns