Criticismo e acracia, um críptico ensaio

 

 

 

 

 

 

PAULO JORGE BRITO E ABREU


«Não se podem algemar as ideias, nem matá-las,
tampouco, com tiros de canhão.» Louise Michel

( Dedico o meu labor a Vila Nova de Foz Côa. E à Liberdade em Portugal… )

 

À beira, breve e leve, de um 25 de Abril, tomamos, «libertário», como sinónimo de «acrata», tomamos, «acracia», como sinónimo de «anarquia». Sendo, «anarquia», sinónimo de «anomia», quer dizer, «ausência de lei». Seguindo e segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, «anarquia» significa um «sistema político baseado na negação do princípio da autoridade; negação de qualquer tipo de autoridade.» A palavra tem origem no Grego: «an», «não»; «arkhía», «governo». Sendo, a mesma «anarquia», o antónimo de «hierarquia». Ouçamos, «verbi gratia», Proudhon ( 1809 – 1865 ): «A anarquia é a condição de existência das sociedades actuais, como a hierarquia é a condição das sociedades primitivas». Ou melhor: a monarquia é do começo, o aluado é só do fim, por isso o Sol é monárquico e a  Lua é anarca. Quanto à lexicologia, a palavra «libertino» não significa só «devasso», significa, também, o «livre-pensador». Que em missiva a Proudhon, de 1857, foi de feito, Joseph Déjacque ( 1821 – 1864 ), o criador do termo «libertário»; Déjacque foi um operário, Poeta e anarco-comunista francês. Segundo Hegel ( 1770 – 1831 ), o germano, há três fases principais no desenvolvimento histórico de «A Ideia»: os orientais, os greco-romanos e os alemães. «O Oriente soube e ainda sabe apenas que somente um é livre; o mundo grego e romano, que alguns são livres; o mundo alemão, que todos são livres.» E na história tudesca do livre-pensamento, figura de monta, figura de vulto é Martinho Lutero ( 1483 – 1546 ). O protestante foi a prova da cadeia magnética, da força, e do poder, da impressa palavra. Ora surdem, aqui, os nossos considerandos, a propósito de «Breve História do Anarquismo», por Fernando Barbero; dado a lume por A Ideia, conjuntamente com a Carava Ibérica, este volume tem tradução, notas e cólofon de Carlos d’Abreu ( Maçores, 15/ 09/ 1961 ). Poeta, editor, activista e tradutor, tem sido, o Carlos d’Abreu, figura tópica e típica da linguística estreme. O livro tem prólogos, ainda, de Raúl González Sanz e José Icaria. Justiça se faça a Fernando Barbero: ele não escreve, tão-somente, uma História da Anarquia; ele escreve, isso sim, uma Enciclopédia, adrede, das ideias acratas. E antes de mais, um comento breve e leve: o Autor destas linhas não é, presentemente, um libertário. Mas sua Lira foi revel, mas foi acrata, dessarte, a sua juventa. Como o foram, como o foram, também, a mente e as Musas de Antero de Quental ( 1842 – 1891 ), de Leonardo Coimbra ( 1883 – 1936 ) e de Afonso Lopes Vieira ( 1878 – 1946 ). Nessa ordem de ideias, em 03/ 07/ 1980, o homem que escreve estas linhas foi Autor do poema «Cântico Jovem para a Tua Rebelião». Mas, no século XXI, o seu desiderando, como o de Afonso Lopes Vieira ( 1878 – 1946 ), é «reaportuguesar Portugal, tornando-o europeu». Mas vertendo, na verve, ao nosso «topos»: Santo Agostinho ( 354 – 430 ), o preclaro, tem este belo pensamento: «Ama e faz o que quiseres.» Isto é: se o homem tiver, no seu coração, grafada e gravada a lei do Amor, poderá ele então fazer o que melhor lhe aprouver. Só pondo Amor e a compaixão acima de tudo poderemos acatar a Abadia de Thélème: a única lei é «faz o que quiseres», o «fais ce que voudras» de François Rabelais ( 1494 – 1553 ). Mas agora, atenção: tanto para Proudhon ( 1809 – 1865 ), como, também, para o Antero de Quental, só por a moral poderá, este mundo, ser salvo e resgatado. Por isso falaremos, na linha de Kant ( 1724 – 1804 ), da autonomia da lei moral: não é o vigário nem o Padre, sou eu que dou, a mim próprio, a lei do Amor. Segundo a confissão, preste e pronta, de Proudhon, os seus Autores favoritos foram a Bíblia, Fourier ( 1772 – 1837 ), Adam Smith ( 1723 – 1790 ) e o grado Hegel ( 1770 – 1831 ). Quanto ao comunitarismo, me seja lícito, aqui, um jogo de palavras: a Idade de Ouro só existiu quando o ouro, dessarte, não tinha valor. Quando não era, o ser humano, virulento, dessarte, nem deveras violento. Está escrito na Lei: «Não roubarás» ( Ex. 20: 15 ). Mas de que serve, aqui, o mosaico mandamento, quando existe, a opulência, a par e rodeada da fome e da miséria??? Em 1840, à pergunta, providente, «O que é a propriedade?», redargue, o francês, e riposta o Proudhon: «A propriedade é o roubo.»  E que mais, Amigo ledor? Nós não aceitaremos, não acataremos a lei de Talião, o «olho por olho e dente por dente». E agora, novamente, seguindo e segundo o Santo Agostinho: face a um ladrão, assassino ou perjuro, amemos, do cor, o nosso irmão – mas não amemos, dessarte, o pecado que nele habita. Se quisermos, como queremos,  transformar o mundo imundo, transmudemo-nos, primeiro, a nós próprios, sejamos nós a Paz e a misericórdia. Quer dizer: sejamos nós a Luz, sejamos o coração para o preste miserável. De Fernando Barbero, retenhamos esta cita, em lauda, dessarte, trigésima oitava: «A Pierre Joseph Proudhon, adail do anti-autoritarismo, cabe a honra de ser o primeiro pensador a enfrentar Marx e Engels. E fá-lo através de um célebre livro publicado em 1843, intitulado: ‘O Sistema das Contradições Económicas ou a Filosofia da Miséria’». Será gralha??? Cansaço??? Trabalho em demasia??? A Obra do gaulês foi dada a lume em  Outubro, deveras, de 1846, e a resposta do germano, ela viu a luz do dia em Julho, juvenil, de 1847: e citamos, então, «A Miséria da Filosofia». Neste último livro, o Marx apoda, o Proudhon, de «pequeno-burguês». «Pierre Joseph Proudhon é a primeira pessoa a autodenominar-se anarquista»: assim advoga, certeiro, o Fernando Barbero. E em discurso, agora, parentético, foi nado em Tréveris, Karl Marx, em 5 de Maio de 1818, e ele faleceu, de facto, em Londres, a 14 de Março de 1883. O seu Amigo Friedrich Engels ( Barmen, 28/ 11/ 1820 – Londres, 05/ 08/ 1895 ), ele foi belíssimo poema de generosidade e altruísmo; economicamente abastado, foi ele quem apoiou, acalentou e alimentou o Autor de «O Capital». Que assim reza, e razoa, o «Livro dos Provérbios», 19: 17: «Quem dá ao pobre empresta ao Senhor, e Ele lhe retribuirá o benefício.» Seguindo e segundo Karl Marx, na sua «Crítica ao Programa de Gotha» ( 1875 ), na bandeira, leve e laica, do comunismo, se poderá ler alfim: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades». Mas eis o que asserta o selecto S. Lucas, em os «Actos dos Apóstolos»: «Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um.» ( Act. 2: 44, 45 ). E concordamos, uma vez mais, com o grande Mahatma Gandhi ( 1869 – 1948 ): o dinheiro não é um mal em si mesmo, o mal radica no seu mau uso. Ou na vez e na voz do selecto Francis Bacon ( 1561 – 1626 ): «O dinheiro é como estrume. Tem que ser disseminado para não cheirar mal.» Com ele podemos, «verbi gratia», erigir as escolas, curar o doente, e dar de comer ao irmão sofredor. Ademais, «o dinheiro é bom servo, mas mau patrão»: assim afiança o Filósofo inglês. E historicamente, a única vez em que foi, o bom Jesus, tomado por a cólera, foi no episódio, crucial, dos vendilhões do templo. É que o lucro, linguisticamente, ele é sempre irmão do logro. Que não se iluda o ledor destas laudas libertas: tanto o positivismo, como a Psicanálise, como o marxismo, são milenarismos do homem desalentado, são messianismos, dessarte, sem Messias. E o mesmo direi eu da acracia que averbo. Eis o que asserta, acertando, a Wanda Bannour: «Bakunine, como quase todos os escritores da época – incluindo os mais «demoníacos» niilistas – vive religiosamente a filosofia. É por isso que ele afirma, apela, prega, mais do que raciocina e ensina.» O russo caroal é Autor dum livro cujo título diz tudo – e falamos de o «Catecismo Revolucionário» ( 1866 ). «A paixão pela destruição é uma paixão criativa», asserta o bombista, Bakunine é o espírito da eterna negação. Quanto a Pierre-Joseph Proudhon, ele foi feitor, e promotor, do «Pequeno Catecismo Político.» Sendo assim,  aos nomes combinados de Marx ( 1818 – 1883 ), Nietzsche ( 1844 – 1900 ) e Freud ( 1856 – 1939 ), alcunhou, o Paul Ricoeur ( 1913 – 2005 ), de «mestres da suspeita»; eles são o asco e a verrina, são a crítica à crise do mundo ocidental. O pensamento de Freud, por exemplo, é fundo e firme, é qual anárquica Afrodite. Se a «morte de Deus» é pois um facto e um feito na Europa oitocentista e novecentista, laboraram, estes Autores, por fazer das suas sombras uma nova religião, laica, desse modo, mas mesmo assim religião. Afamada ficou, de feito, a XI das «Teses Sobre Feuerbach»: «Os filósofos, até agora, limitaram-se a interpretar o mundo; de agora em diante é preciso, pelo contrário, transformá-lo». Erro crasso, meu caro Marx: se o mundo, deveras, é a minha representação, o pensamento, então, é motor e movimento, e são a mente e as ideias que movem a matéria; assim sucede, assim acontece, com Henri Bergson ( 1859 – 1941 ) e Leonardo Coimbra ( 1883 – 1936 ). «Mens agitat molem», assim o diz, na «Eneida», o preste mantuano ( 70 a. C. – 19 a. C. ). E o que afirmar, no século XVIII, dos Filósofos e franceses enciclopedistas??? Que o homem, na verdade, é pesado, ponderado e compensado por os seus pensamentos. E a medida com que ele medir o seu semelhante será a medida com que ele, deveras, será avaliado. Ao contrário de Virgílio, deveras, o Marx ( 1818 – 1883 ) é Autor deste arrazoado: «Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.» E mais, ainda mais: o Marx apela, de feito, à luta e à «práxis», mas temos ora o seguinte: é que os homens de acção são os servos inconscientes dos homens de pensamento. E quanto aos acratas dos dias hodiernos: o nosso anelo é que eles encarem, os ataques à bomba, como cousa do passado; se eles querem combater a virulenta violência, eles têm, decerto, que dar o exemplo. Sendo assim, a cólera, a revolta e a carnificina só se podem anular, só se podem dirimir, com uma grande compaixão. O activista liberal, ou melhor, o Guerreiro da Luz, tem este cunho e esta marca: não vertendo, nanja e nunca, sangue humano, ele é almado e altruísta, ele labora para a felicidade de todo o humano ser. No pólo oposto, rechaçamos, repelimos e condenamos o comunismo anarquista de Jean Meslier ( 1664 – 1729 ): «O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre.» E não infligindo, e não impondo, dessarte, mas apenas propondo, damos toda a liberdade a quem difunda, ou defenda, o Padre Meslier ( 1664 – 1729 ). Ou melhor: o responsável pela Paróquia de Etrépigny, nas Ardenas francesas. Pois por mais rebarbativos que sejam ditadores, a Revolução se faz para erigir, construir, e não e nunca destruir, e essa a nossa esperança, e esse o nosso credo forte, fértil e feliz. Ou indo, deveras, à História: no Congresso de Haia,  que ocorreu entre 2 e 7 de Setembro de 1872 ( Quarto Congresso Internacional dos Trabalhadores ), abriu-se uma cisão no seio, dessarte, da Internacional: enquanto pugnavam, Marx e Engels, por o socialismo autoritário, a Mikhail Bakunine ( 1814 – 1876 ), James Guillaume ( 1844 – 1916 ) e Élisée Reclus ( 1830 – 1905 ) se deu o nome, liberrimamente, de socialistas libertários. Leiamos o que escreve, Proudhon, a Karl Marx, a 17 de Maio de 1846: «Depois de termos demolido todos os dogmatismos «a priori», não sonhemos, por nossa vez, em doutrinar o povo.» E volvendo, agora, a Fernando Barbero, eis o que lobriga, o ledor, na lauda 39: «A ditadura do proletariado é chamada a converter-se em ditadura sobre o proletariado» – e eis o comento, forte e firme, do belo Bakunine. E na Palavra, aqui, do Fernando Barbero, «os marxistas não consentiam uma organização sem hierarquias, comandantes e ordens que os ácratas repudiam». Quero eu dizer: no ideário, aqui, de Fernando Barbero e Carlos d’Abreu, surde a «Anarquia: nem deus, nem pátria, nem patrão.» Linguisticamente, é a desvalorização, desinvestimento da «imago» paternal. Ou melhor: da metáfora paterna e do Nome do Pai. Se é simbolizado, esse Pai, por a porra e pelo pau, re-apresenta, a acracia, o palhaço polichinelo e o Rei assassinado. O saltimbanco, aqui, é qual a morte do Pai, e o verso do Poeta é como o mundo às avessas. E por isso o diabolismo, por isso asserta, Proudhon, que «Deus é o mal». Em Psicanálise, é sempre o diferendo, é sempre a eterna luta, entre o princípio do real e o princípio do prazer. Por isso mesmo, no Cristismo, mas principalmente no Judaísmo, o Pai Celestial é como a projecção, do nosso Pai natural, no espírito azulino e fora de nós. E remetemos, aqui, o leitor, para «A Essência do Cristianismo», de Ludwig Feuerbach ( 1804 – 1872 ). E além das «Teses Sobre Feuerbach», de Karl Marx ( 1818 – 1883 ), realcemos e relevemos, de Friedrich Engels ( 1829 – 1895 ), «Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã» ( 1888 ). E digamos, agora, a vera verdade: sem a leitura de Ludwig, não seria plausível, nem possível, a viragem de Marx para o materialismo. Retomando agora o fio do nosso razoar, a Amizade só é possível entre homens bondosos, e socialmente iguais. Onde não houver igualdade, haverá, por parte do inferior, subserviência; por parte do superno, ou superior, despotismo, dessarte, e autoridade. E alembramos, levemente, o Estagirita: dous amáveis, dous Amigos, são uma só Alma em dois corpos diferentes; eis a fraternidade e eis a verdade. E temos feito e hemos visto: no fim do século XVIII, em França, protocomunista foi, de facto, François Noel Babeuf ( 1760 – 1797 ). Com apenas 18 anos, ele enceta uma carreira de jornalista político. Publicista e responsável por «Le Correspondant Picard» e «Le Tribun du Peuple», ele reúne, em torno a si, um grupo de seguidores que se autointitula «Société des égaux» ( «Sociedade dos Iguais» ). Segundo Marx e Engels, sua «Conjuração dos Iguais», politicamente, foi, de feito, o «primeiro partido comunista». Foi-lhe atribuído, na História, o cognome de «Gracchus», por ser aficionado de um tipo de reforma agrária similar à que fora elaborada por um estadista romano do século II que tinha, deveras, esse nome. À doutrina deste homem, na História das Ideias, foi dado, desse modo, o nome de «babouvismo». Depois de ter estado várias vezes aprisionado, foi cruelmente assassinado, através da guilhotina, a 27 de Maio de 1797. Mas um reparo aqui porém: grafou e gravou, o político francês, que «o Cristianismo e a liberdade são incompatíveis». Mas leiamos São João, 8: 31, 32: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis, veramente, meus discípulos, conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.» É que peca, por ser peco, o beligerante Babeuf: além de George Fox ( 1624 – 1691 ) e São João de Deus ( 1495 – 1550 ), existe a Liberdade em Erasmo ( 1466 – 1536 ), Lutero ( 1483 – 1546 ) e São Francisco de Assis ( 1181 ou 1182 – 1226 ), como existe, a perene Liberdade, no Professor e Autor Agostinho da Silva ( 1906 – 1994 ). Quer dizer o joanino: a melhor Teologia é sempre a Teologia da Libertação.  É que o mal não está na figura de Cristo; o mal está nas Igrejas que dele se reclamam – mas que rechaçam, refusam e rejeitam a Boa Nova cristiana. Em vez de Cristo, decerto, elas adoram, idolatram, Moloch e o Mammon. Pois quanto, veramente, a Voltaire, em outro sítio selecto eu já o citei: «Quando se trata de dinheiro, todos professam a mesma religião.» Que historicamente, foi só depois de Constantino que a Igreja Católica começou a perseguir os livres-pensadores; os mais autênticos cristãos, ao longo da História, estão sempre e sempre e sempre do lado dos perseguidos. Três exemplos, tão-só: Sir Thomas More ( 1478 – 1535 ), Joseph Smith ( 1805 – 1844 ) e D. António Ferreira Gomes ( 1906 – 1989 ); Bispo do Porto, este enfrentou e afrontou Oliveira Salazar ( 1889 – 1970 ). E o fez portanto em nome do bíblico Evangelho, a 13 de Julho de 1958, em documento intitulado «Pró-Memória», conhecido, deveras, como «Carta a Salazar», ao que se faz seguir a censura sacana – e é exonerado, D. António, das suas funções. A triste raça humana está feita desta maneira: os Santos e os Génios, a miúdo, eles têm a mesma sorte que os roazes energúmenos. O lance é duro, dessarte, e deveras infausto; o mais premente, quanto a mim, é retornar, ou regressar, à prístina pureza dos «Actos dos Apóstolos». A essa luz se compreende, mais uma vez, a asserção proudhoniana: é que, paradoxalmente, «Deus é o mal». E realcemos e relevemos, por Friedrich Engels, em 1895, a «Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo». E, em 1896, por Proudhon, «Jesus e as Origens do Cristianismo». Faremos, por isso, como Kierkegaard ( 1813 – 1855 ), e alteemos o Tolstoi ( 1828 – 1910 ), e alcemos o Autor de «Anna Karenina»: é preciso mostrar, à Cristandade, o autêntico e vero Cristianismo, e essa, caroal, a nossa bandeira, e essa, aqui, a nossa estância, estandarte e pendão. Ouçamos o Karl Marx ( 1818 – 1883 ) num passo, deveras, que afamado ficou: «A miséria religiosa é ao mesmo tempo expressão da miséria real e protesto contra a miséria real. A religião é a queixa da dor da criatura, o sentimento de um mundo sem coração e o espírito de um estado de coisas embrutecido. É o ópio do povo.» Matutemos ora pois: se os Romanos da decadência, segundo Juvenal ( Aquino, c. 55 – Roma, c. 128 a. C. ), pediam «pão e espectáculos de circo», os hodiernos lusitanos, no lance, eles pedem vinho, o fescenino, e o afamado futebol. E quanto, agora, a Karl Marx ( 1818 – 1883 ), o «Manifesto do Partido Comunista», em 1848, foi a arma teórica mais inteligente, e abrangente, do movimento operário. E eis, dessa lavra, a frase primeira: «A história de toda a sociedade até aqui é a  história das lutas de classes.» Escrito na língua alemã, e altaneiro, esse archote e manifesto vem a lume, em Londres, a 21 de Fevereiro de 1848. E foi escrito, de boamente, em Bruxelas beletrista. Que nessa labuta e nessa batalha, a Liga dos Justos, bondoso embrião da Liga dos Comunistas, tinha, deveras, um lema: «Todos os homens são irmãos». Mas Marx, deveras, ripostou: «Há muitos homens em relação aos quais não tenho nenhum interesse em ser irmão.» Por sugestão então de Engels, é substituído, o santo-e-senha, por estoutro: «Proletários de todos os países, uni-vos!» – e eis o último período, forte e firme, do «Manifesto do Partido Comunista», e esse brado, ainda hoje, ele se ouve em Abril. O escopo e objectivos da Liga dos Justos, cristiana de raiz, eram «o estabelecimento do Reino de Deus na Terra, com base nos ideais de amor ao próximo, igualdade e justiça.» Se o Karl tivesse acatado, e aceite, o nome de «irmãos», quiçá a História tivesse sido deveras diferente. Mas indo agora ao pormenor: em Março, mavioso, de 1847, o Marx se afiliou na Liga dos Justos. Criada em 1836, essa Liga, de carácter subversivo e revolucionário, passou a chamar-se, em Junho de 1847, a Liga dos Comunistas. Como diz, e muito bem, José Manuel Bermudo, o Manifesto é uma obra de arte, é um poema endereçado ao proletariado. No Manifesto, como em toda a sua Obra, a três fontes, no afã, foi o Marx beber, «verbi gratia», a Filosofia alemã, a economia política inglesa e, ademais, o socialismo utópico francês. Da cultura germana citemos os nomes de Immanuel Kant ( 1724 – 1804 ), de Hegel ( 1770 – 1831 ) e dos hegelianos de esquerda, como Feuerbach ( 1804 – 1872 ) e Moses Hess ( 1812 – 1875 ); da loura Albion, David Ricardo ( 1772 – 1823 ) e Adam Smith ( 1723 – 1790 ) e, das letras do Galo, Louis Blanc ( 1811 – 1882 ), Charles Fourier ( 1772 – 1837 ), Saint-Simon ( 1760 – 1825 ) e Proudhon ( 1809 – 1865 ). E ora muito e muito bem. Um pensador da estirpe de Jacques Maritain ( 1882 – 1973 ) tem esta frase figadal: «A infelicidade, no século XIX, não se deve ao facto de Marx ter existido, mas de não ter existido um Marx cristão.» Ao que nós, de feito, afiançamos: a messe é lauta e leve, a messe é imensa, mas são parcos e são poucos os laboradores. O culto, entretanto, é da cultura; se radical, por isso, é das raízes, labor e oratório são laboratório. Mas antes de Proudhon já havia anarquistas; citemos, entretanto, a lauda 35 deste «liber» liberal: «Em 1793, viu a luz o livro que para muitos é o primeiro tratado anarquista, apesar de que, como vimos anteriormente, os textos libertários são relativamente abundantes. Tem como título «Inquérito acerca da justiça política e sua influência na virtude e felicidade geral» e é seu autor William Godwin ( 1756 – 1836 ). Este britânico é considerado o fundador do anarquismo filosófico.» Sua lavra haveria de mover, e comover, Coleridge ( 1772 – 1834 ), Wordsworth ( 1770 – 1850 ), Southey ( 1774 – 1843 ) e Shelley ( 1792 – 1822 ). Sendo deveras, William Godwin, o sogro do Poeta Percy Bysshe Shelley. Sendo, o Autor de «Queen Mab», o típico e tópico das ideias libertárias. Ou não escrevesse ele «The Masque of Anarchy», ou não fosse ele discípulo de Godwin, o grado. Pioneira do movimento feminista, a mulher de Godwin, Mary Woolstonecraft ( 1759 – 1797 ), deu a lume, em 1792, a «Vindication of the Rights of Woman», «Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher». E isto, leitora Amiga, muito antes de George Sand ( 1804 – 1876 ), muito antes, ademais, de Simone de Beauvoir ( 1908 – 1986 ). Conhecendo-se, os dous, em 1796, foram logo tomados por o lance cupidíneo; quando Mary ficou grávida decidiram-se casar pra que o seu filho fosse legítimo, o que fizeram, prontamente, a 29 de Março de 1797. Depois de, a 30 de Agosto de 1797, ter dado à luz Mary Shelley ( 1797 – 1851 ), morre, a Escritora, de septicemia puerperal, a 10 de Setembro desse ano rebelde. Mary Shelley foi, deveras, a segunda filha de sua Mãe e o rebento primeiro do teórico anarquista. O seu livro primeiro, que foi, também, o mais arrojado, foi «Frankenstein, ou o Moderno Prometeu», «Frankenstein, or the Modern Prometheus»; foi dada à estampa, essa lavra, em 1 de Janeiro de 1818. Afinidade electiva, o Poeta Percy dá a lume, em 1820, o «Prometeu Libertado», «Prometheus Unbound»; como em Rimbaud ( 1854 – 1891 ), dessarte, o Poeta é deveras um roubador do Fogo. Senão, vejamos: matriculando-se, em 10 de Abril de 1810, na Universidade de Oxford, é dela expulso, formalmente, a 25 de Março de 1811. Motivo: enquanto aluno, em 1811, ele publicara um panfleto intitulado «A Necessidade do Ateísmo», «The Necessity of Atheism», e ser ateu, naquela altura, era ser um criminal. E vem, aqui, a talho de foice: pra fecharmos as prisões, é preciso, e é mister, abrirmos as escolas. Mas escolas nas quais, seguindo e segundo o Élisée Reclus ( 1803 – 1905 ), se firme a ordem, dessarte, sem coacções nem violências. E, pelo menos na Escola Primária, o Professor deve ser segundo Pai; deve ser, a Doutora, a Mãe sagrada e segunda. «Philosophia» = Sabedoria + «philia». Só se aprende com quem se ama, só se degusta aquilo que é deveras conhecido. E o palato, por isso, é palatino, e a Palavra está ligada ao solerte paladar. Que a Palavra é qual o Pão, o sabor, dessarte, é o saber, o «alumnus», em Latim, é «o que é alimentado». Sendo, pois, o companheiro, aquele que realiza a feraz Fracção do Pão. Fracção do Pão outro nome para a feraz Eucaristia. O «Pão Partido em Pequeninos» do Padre Manuel Bernardes ( 1644 – 1710 ). Já «camarada», originariamente, é um termo de origem militar, é «o grupo de companheiros que dorme, deveras, na mesma camarata». Sendo assim, demanda, agora, o augusto ledor: por que é que existem, na freima, tantos Poetas anarco-comunistas??? E por que é que se insurge, Bakunine, contra Deus, o Estado, o Czar e a Polícia??? A palavra «polícia», do grego «politeía», deriva de «polis»; «polícias», na origem, são «aqueles que zelam por os interesses da cidade». Sendo, pois, a «polidez», o carácter do «polido», «delicado» ou «bem-educado». Quanto a «política», ela deriva, deveras, do heleno «politiké», é «a arte de governar, de boamente, a cidade». Segundo o Estagirita, o homem, por ser da «polis», ele é, puramente, um «animal político». Ora muito e muito bem. No tempo que medeia entre a Antiguidade Clássica e Galileo Galilei ( 1564 – 1642 ), os Poetas eram Reis, educadores, eram Profetas ou mentores. A partir, no entanto, do século XVII, fez-se sentir, decerto, a verrina de Platão – e dando atenção, tão-somente, à ciência e à razão, a imaginação é tratada, por Malebranche, como a «folle du logis», «a louca da casa» – e o cantor ele passa a ser um saltimbanco, um vagamundo, um Poeta maldito. No tempo da Revolução Industrial, dessarte, o Poeta passa a ser um pária e um precito, e Baudelaire ( 1821 – 1867 ) e Proudhon, eles andam a par. E Edgar Poe ( 1809 – 1849 ) e Van Gogh ( 1853 – 1890 ) eles são aparentados. Sendo, desse modo, um visionário e sonhador, o Poeta é sempre e sempre um homem de Utopias. Vem, a palavra «Utopia», do Grego e do Latim, e significa, deveras, um «lugar que não existe». Mas o sonho é o que tende a tornar-se real: a alquimia vem antes da Marie Curie ( 1867 – 1934 ); o Francis Bacon ( 1561 – 1626 ) vem antes do computador; antes do avião, vem a passarola de Bartolomeu de Gusmão ( 1685? – 1724 ). Por sua flama e fulgor, relevemos, aqui, um livro publicado em 1516: se trata da «Utopia», do grande Thomas More ( 1477-1535). Um jogo de palavras e diríamos, então, que ela é uma «Eutopia», um «país bondoso», uma «terra perfeita». E a cada ovelha, sua parelha. Para Ruy Cinatti ( 1915 – 1986 ), dessarte, que «adoramos», «Nós não Somos Deste Mundo» ( 1940 ). Francisco Goya ( 1746 – 1828 ), na freima, põe o dedo na ferida: «O sono da razão produz monstros», ao que nós afiançamos: na falência, deveras, do Racionalismo, surde e surge, no lance, o hospital psiquiátrico. E o período do Terror na França afamada da Revolução. A ser, o homem, animal racional, como se explicaria, no século XX, a insolência, ou degenerescência, de duas guerras mundiais??? Contra a hegemonia, portanto, da razão, se alevantam, subversivos, Numes e nomes como Vico ( 1668 – 1744 ), Pascal ( 1623 – 1662 ), Nietzsche ( 1844 – 1900 ) e Feuerbach ( 1804 – 1872 ). E, mais perto de nós, um Kierkegaard ( 1813 – 1855 ), um Lacan ( 1901 – 1981 ), o escol e a escola do Surrealismo. Contra o Hegel ( 1770 – 1831 ), por isso, realçamos: nem tudo é razoável, nem tudo o que é real é deveras racional. É que o sonho, a Arte e a Liberdade são fora da norma, são fora do cabresto racionalista. Afirmamos, então, mais do que a razão, o liberal e o lance da poética paixão. E mais, e muito mais, do que perder a razão, nos interessa, acareado, o que a razão nos faz perder; e tu não sentes, aqui, o «Peixe Solúvel», do afamado Breton ( 1896 – 1966 ) ??? E eis aqui, contra a mesura, o desmedido: as cousas grandes, ingentes e grandiosas, só se podem fazer com uma grande paixão, e eis que em chama é chamado o nosso progredimento. Que o homem não é, reiteramos, um animal racional. Nós somos, veramente, dominados, nós somos dominados por o nosso inconsciente. Para Freud ( 1856 – 1939 ), por isso, «o Eu não é senhor em sua própria casa.» E seguindo e segundo Carl Gustav Jung ( 1875 – 1961 ), «o homem civilizado ainda arrasta, atrás de si, a cauda de um sáurio.» E quanto, agora, a Bakunine ( 1814 – 1876 ), impulsivo e explosivo é seu desiderando; em Bakunine, como em Kierkegaard ( 1813 – 1855 ), o indivíduo é único, subjectivo, e lautamente universal. À existência inautêntica, ou melhor, ao homem unidimensional, devemos opor, como em Marcuse ( 1898 – 1979 ), o grande criticismo e a «grande recusa». Como à cousificação do ser humano devemos opor, nós que somos lúcidos, a liberdade, unicidade, da pessoa humana. O que é certo é que a classe exploradora não domina ela só economicamente, ela impõe, ao proletariado, a sua cultura, ideologia ou modo de vida. E o faz, «verbi gratia», através dos meios audiovisuais. O homem moderno é manobrado, manipulado, mesmo no seu lar; através das imagens, e da publicidade, tem, a televisão, um hipnótico poder. E quanto, agora, ao meio laboral, não andamos muito longe do «trabalho alienado» como Marx o divisou: quando uma cousa, fungível, se pode por outra substituir, nós pagamos um preço, mas no referente à humana «persona», não tem ela preço: tem livre-arbítrio e fulgor, tem dignidade e respeito. Atentemos, levemente, no lance: quando uma parte da força de trabalho não é remunerada, surde o lucro, dessarte, surde a mais-valia. Se o homem, em vez de realizar a sua essência, fica alheio ao seu labor e à sua pessoa, ele torna-se estranho, alheio a si próprio, ele fica, por isso, alienado. E por isso é que o capitalista é meliante e ladrão para o lauto Proudhon. Por ser cordial e crucial, voltamos a citar o Bispo de Hipona: «Nenhum cristão deve ser mercador.» Ao que anotamos, nós outros: não são, parentes próximos, a «meretriz», o «mercenário» e o «marchand»??? Não foi Cristo vendido por trinta dinheiros??? Quanto ao grupo, e ao grémio de Platão: se tinha, o «Filósofo», «esprit de finesse», era usada, a palavra «sofista», em sentido pejorativo. Que ao longo da História, houve sempre uma classe exploradora e outra classe explorada: ao modo de produção esclavagista, se segue, bem roaz, o feudalismo; segue-se, ao domínio do feudo, o império, coacção, do capitalismo. Ouçamos o que asserta o Autor de «O Capital»: «O operário é mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais cresce a sua produção em potência e em volume. O trabalhador converte-se numa mercadoria que é tanto mais barata quanto mais mercadoria produzir.» E o Marx pertence, claramente, ao proletariado da escrita. Divisando, nele, a flama do Génio, o seu Amigo Engels lhe oblata, a partir de 1868, uma pensão anual de 350 libras, e ele o faz, dessarte, liberrimamente. Na autonomia, perfeita, da lavra e da lei de origem moral. É norma comum, ao longo da História: toda a grande criação tem tácito, ou implícito, o sacrifício ritual ou «sacrum facere»; por vocábulos outros, o inferno subjaz a todo o grande criacionismo. Senão, vejamos nós: Karl Marx foge da Renânia, é expulso da França e de Bruxelas, o seu caminho será sempre o da revolta e solitude. Em busca, finalmente, da liberdade de expressão, chega a Londres, levemente, a 24 de Agosto de 1849. E é, com denodo e «adresse», na vasta Biblioteca do «British Museum» que ele colige o material para o seu sistema e labor. Curiosamente, a mesma Inglaterra que acolheu, acalentou, o grado Voltaire ( 1694 – 1778 ), acolheu também o Marx ( 1818 – 1883 ) e, no fim da sua vida, o afamado Sigmund Freud ( 1856 – 1939 ). O certo, porém, é que, a 15 de Abril de 1841, na Universidade de Iena, o Marx difunde, deveras, ele defende a sua tese de doutoramento: «Diferença entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e a de Epicuro». Diga-se, agora, a verdade: o Karl se doutorou porque tinha um trato com Bruno Bauer ( 1809 – 1882 ), um de seus Professores de Berlim, que tinha forjado, e formado, o «Doktorklub». Afecto e afeito ao seu aluno, foi chamado, o Bruno, à Universidade de Bona, prometendo-lhe providenciar, forte e firme, um posto, laureado, de «privat-dozent», para o futuro Autor de «O Capital», apenas houvesse, o jovem, obtido, dessarte, o doutoramento. Entretanto, Bauer, objecto de suspeitas oficiais por sua heterodoxia, foi afastado da sua cátedra e o projecto acalentado por Marx foi malogrado, frustrado e baldado. O escopo do jovem Marx, em 1841, era unir, de boamente, o materialismo de Feuerbach à dialéctica do Hegel. Sempre, sempre tendo em conta que a crítica da religião, ela é o pressuposto de toda a crítica, deveras, do aparelho social. Ou, de acordo com o Karl, «A crítica do céu transforma-se assim em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do Direito, a crítica da teologia em crítica da política.» Que anelava, o materialista, a humanidade emancipada, quer dos deuses do Céu, quer, também, do deus da terra, que é de feito o capital. O primeiro volume e a prima edição de «Das Kapital» foi publicada por Otto Meissner e veio a lume em Hamburgo, a 14 de Setembro de 1867. E a tiragem, meu Amigo, a tiragem foi tão-só de mil exemplares. A partir de escritos e anotações do próprio Marx, que falecera, de feito, a 14 de Março de 1883, Friedrich Engels, figadal, publicita o segundo volume em 1885 e o terceiro, dessarte, em 1894. «O Capital» é considerado o trabalho de uma vida, o «magnum opus», desse modo, do materialista. E o que aduzir, desse modo, no fim da colação??? O que diz, o ensaísta, na falência, de feito, do jovem Abril??? Para trás o pesadelo. Pra longe o mau agouro. Fascismo nunca mais.

 

NOTA BENE

I

Acaso objectivo ou não, em 25 de Abril de 1848, dois meses depois da queda de Luís Filipe ( 1773 – 1850 ), em França, e dous meses depois do «Manifesto do Partido Comunista», surde e surge, na amada Ulisseia, um clandestino jornal intitulado «A República – Jornal do Povo», que duraria, tão-somente, dous meses. O título era adornado por uma bandeira vermelha, rubra bandeira, brandida, dessarte, por um revolucionário, de espada à cintura e chapéu alto na cabeça. O emblema e a bandeira trazia, lautamente, a legenda «Igualdade». Aparecia, no Editorial, uma doutrina, deveras, declaração de princípios: «República! ( … ) Governo da Igualdade! Governo da liberdade sem licença! Governo d’amor entre todos os homens! Governo angélico!» E, como se vê, nos remete, este arrazoado, para Babeuf ( 1760 – 1797 ), para a Liga dos Justos, e, decerto e deveras, para o Socialismo Utópico francês. E alembremos, aqui, o ledor: a 4 de Junho de 1848, foi, Pierre-Joseph Proudhon ( 1809 – 1865 ), eleito deputado na Assembleia Constituinte. Porque historicamente, e histericamente, a 25 de Fevereiro de 1848 foi implantada, em França, a Segunda República. A talho de foice, o Autor de «O Capital» considerou, a Revolução de 1848, o evento mais relevante de toda a vida sua.

 

II

O nosso labor não ficaria completo se não averbássemos, recto e escorreito, a figura e o fulgor de Jean-Jacques Rousseau. Que foi nado, deveras, em Genebra, a 28 de Junho de 1712, para falecer, de feito, em Ermenonville, a 2 de Julho de 1778. Seu comento história fez: «O homem nasceu livre mas por toda a parte ele vive acorrentado». Sua Mãe, Suzanne Bernard, faleceu, de infecção puerperal, a 7 de Julho de 1712, sendo, seu Pai, Isaac Rousseau, relojoeiro calvinista. E comecemos, então: no século dos «Philosophes», ocupa, Rousseau, um lugar à parte: mais do que a razão, privilegia, preste e pronto, o coração, o instinto e a sensibilidade. E por isso ele anuncia, em pleno século XVIII, o movimento romântico. Neste genebrês, a religião revelada cede o seu lugar à religião natural: no fundo do coração, em caracteres indeléveis, está escrito, a letras de fogo, o nome de Deus. Se os homens tivessem Deus no coração só haveria, de feito, uma religião no mundo inteiro. O seu «Discurso Sobre as Ciências e as Artes» ( 1750 ) teve o prémio primeiro da Academia de Dijon. À pergunta «o progresso das ciências e das artes terá contribuído para a melhoria dos costumes?», Rousseau responde que as mesmas são deletérias e roazes, são as piores inimigas da moral. In o «Discurso sobre a Desigualdade», de 1754, afiança, o filósofo, que «o homem é naturalmente bom e só as instituições o tornam mau», o que vai contra a doutrina do pecado original. Ou, por vocábulos outros, no início de «Emílio» ( 1762 ): «Tudo está bem quando sai das mãos do Autor das coisas: tudo degenera entre as mãos do homem.» É que Rousseau antecipa decerto o Kant ( 1724 – 1804 ), ele é, dessarte, um precursor de Marx ( 1818 – 1883 ). Para ele, a origem da sociedade civil e desigualdades consequentes está, deveras, na propriedade privada. Rousseau exige, de feito, que «nenhum cidadão seja bastante opulento para poder comprar outro, e nenhum suficientemente pobre para ser constrangido a vender-se.» O escopo e o desiderando de «O Contrato Social» ( 1762 ) é «encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, todavia, senão a si próprio e permaneça tão livre como antes». Ou seja: sendo, a comunidade, soberana, ela é sempre e sempre a soma das vontades individuais. Quanto a Immanuel Kant ( 1724 – 1804 ), a pontualidade com que ele, às 15 horas e 30 minutos, fazia o seu passeio, só foi turvada, ou perturbada, em duas ocasiões: a leitura do «Emílio», de Rousseau ( 1712 – 1778 ), e a notícia da Francesa, ou gaulesa, Revolução. A História regista que Rousseau e Voltaire ( 1694 – 1778 ), eles eram, deveras, inimigos figadais. Mas o Génio é sempre o Génio. Mas, tanto Voltaire, como Rousseau, eles repousam, regiamente, no Panteão de Paris.

 

III

Trazemos, à colação, alguns anarquistas da Casa Lusitana. «Socialista anarquista» se declarava, com «adresse», o feraz Sampaio Bruno ( Porto, 30/ 11/ 1857 – Porto, 11/ 11/ 1915 ). Com realce e com relevo, averbamos, de feito, Afonso Lopes Vieira. Ele foi nado, em Cortes, a 26 de Janeiro de 1878, e faleceu, deveras, em Leiria, a 25 de Janeiro de 1946. Perto da viragem do vigésimo século, era grande aficionado de Tolstoi ( Yasnaya Polyana, 09/ 09/ 1828 – Astapovo, 20/ 11/ 1910 ),  na verve, e São Francisco de Assis ( Assis, c. 1181- Assis, 03/ 10/ 1226 ). E ele o fazia, não por subversão, mas sim na marginalidade aos poderes instituídos. Ele era, digamo-lo tudo, contrapoder. E o foi perfilhando, de facto, o Integralismo Lusitano de António Sardinha ( Monforte, Alentejo, 09/ 09/ 1888 – Elvas, 10/ 01/ 1925 ). Essa a sua forma de ser, acima de tudo, aristocrata intelectual e anti-salazarista. E ora vamos avante ovante. Por volta dos 20 anos, apaixonou-se, loucamente, por a sobrinha de Kropotkine ( Moscovo, 09/ 12/ 1842 – Dmitrov, 08/ 02/ 1921 ), que ele conhecera em Paris. Para a cativar, ainda, mais e mais, ele traduz, para a língua, leal, de Manuel Laranjeira ( Vergada, São Martinho de Moselos, Vila da Feira, 17/ 08/ 1877 – Espinho, 22/ 02/ 1912 ), um folheto, figadal, do anarquista russo: e falamos de «À Gente Nova», lançado, em 1904, por a Editora Viúva Tavares Cardoso. Na veraz veracidade, ele não só traduziu, ele parafraseou, no parabém, o texto do acrata. Que era seu, e muito seu, o socialismo cristão de cariz humanista. Vejamos, pois, a História. In «Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais» ( Livraria Bertrand, 1949 ), por Aquilino Ribeiro ( Tabosa do Carregal, 13/ 09/ 1885 – Lisboa, 27/ 05/ 1963 ), asserta, dessarte, Afonso Lopes Vieira, referindo-se, adrede, à libertária doutrina: «É a forma protoplásmica da generosidade mental. O nosso coração, na mocidade da vida, precisa duma fórmula ardente e ofereciam-nos aquela.» ( … ) «Depois, com o tempo, despimos as roupagens absurdas da utopia, e fica apenas a essência, o humano.» O Autor destas linhas subscreve, inteiramente, o vaticínio do Vieira, é dele, portanto, a voz e a vez. Mas citemos aqui o nome de Leonardo Coimbra ( Lixa, 30/ 12/ 1883 – Porto, 02/ 01/ 1936 ). Em 1907, juntamente com Álvaro Pinto ( 1885 – 1956 ), Cláudio Basto ( Viana do Castelo, 13/ 08/ 1886 – Carcavelos, 02/ 05/ 1945 ) e Jaime Cortesão ( Ançã, Cantanhede, 29/ 04/ 1884 – Lisboa, 14/ 04/ 1960 ),  ele funda, de feito, a «Nova Silva», revista, literária, de tendências acratas. A mesma «Tetraktys» que inaugurou, notavelmente, o grupo e o grémio da Renascença Portuguesa. Tendo «A Águia», de facto, como foco beletrista e campo de acção, que teve o seu primeiro número a 1 de Dezembro de 1910. Insuflado, movido e acicatado por Victor Hugo ( Besançon, 26/ 02/ 1802 – Paris, 22/ 05/ 1885 ), ele cria, solerte, em 1908, a Sociedade dos Amigos do ABC, por analogia com «abaissé». Ademais, professando em liceus da Póvoa de Varzim, do Porto e de Lisboa, foi um dos promotores, historicamente, das Universidades Populares. Ainda quanto ao Autor de «O Pensamento Criacionista»: enquanto militante republicano ele era empenhado, com «adresse», na acção política – e ele foi nomeado, em 1919, Ministro da Instrução Pública; resignando, pouco depois, à pasta, ele sobraça-a, de novo, em 1922 – 1923. Os seus feitos e factos mais relevantes são a fundação das Escolas Primárias Superiores e a criação, em 27 de Agosto de 1919, da Faculdade de Letras de Porto, que ele dirigiu, deveras, com «adresse» e denodo. Por ela passaram, na verve, Adolfo Casais Monteiro ( Porto, 04/ 07/ 1908 – São Paulo, Brasil, 23/ 07/ 1972 ), Agostinho da Silva ( Porto, Bonfim, 13/ 02/ 1906 – Lisboa, 03/ 04/ 1994 ), José Marinho ( Porto, 01/ 02/ 1904 – Lisboa, 05/ 08/ 1975 ), Álvaro Ribeiro ( Porto, 01/ 03/ 1905 – Lisboa, 09/ 10/ 1981 ) e Sant’Anna Dionísio ( Porto, 23/ 02/ 1902 – Porto, 05/ 05/ 1991 ). Aos quais aditaremos, deveras, Delfim Santos ( Porto, 06/ 11/ 1907 – Cascais, 25/ 09/ 1966 ). E é o que chama, o Pinharanda Gomes ( Quadrazais, Riba-Côa, 16/ 07/ 1939 – Loures, 27/ 07/ 2019 ), a Escola Portuense da Filosofia Portuguesa. E foi, o filósofo, figura estreme e extrema da Maçonaria, tendo sido iniciado, na Loja Luz e Caridade da Póvoa de Varzim, com o nome simbólico de Kant. Ele abarcou e abraçou, outrossim, o credo espiritista, tendo participado, activamente, no I Congresso Espírita Português, efectivado, em Lisboa, de 15 a 18 de Maio de 1925. Na parte final da vida Leonardo converteu-se ao Catolicismo – e recebeu, a Eucaristia, das mãos do Padre Cruz ( 1859 – 1948 ).

 

IV

Adepto de Marx ( 1818 – 1883 ) e de Engels ( 1829 – 1895 ), Antero ( 1842 – 1891 ) era afecto, e aficionado, de Pierre-Joseph Proudhon ( 1809 – 1865 ). Proudhon que foi deveras, via Antero de Quental, o «maître à penser» da Escola Coimbrã. Da Escola, melhor, da modernidade. O Autor das «Odes Modernas», em 1873, escrevia, selectamente, a Sebastião de Magalhães Lima ( 1850 – 1928 ): «Há oito anos que estudo Proudhon e cada dia acho mais que aprender nele.» Ouçamos o que asserta, Eça de Queiroz ( 1845 – 1900 ) sobre «De la justice dans la révolution et dans l’ église»: «Sobre a influência de Antero, logo dois de nós, que andávamos a compor uma ópera-bufa contendo um novo sistema do Universo, abandonámos essa obra de escandaloso delírio – e começámos à noite a estudar Proudhon, nos três tomos da «Justiça e a Revolução na Igreja», quietos à banca, com os pés em capachos, como bons estudantes.» Essa Obra, de 1858, essa Obra, de feito, é deveras e adrede anticlericalista. Mas há mais, ainda mais: a 12 de Junho de 1871, tem Queiroz a palavra nas Conferências do Casino – e intitula-se, a sua colação, «A Nova Literatura, o Realismo como Nova Expressão da Arte». E para o Eça ser de facto a figura-fulgor, foi imprescindível a leitura do gaulês de Besançon – e referimo-nos, aqui, a «Du Principe de l’art et de sa destination social», Obra póstuma, e preclara, de 1865. Eça bebeu, nessa lavra, a perspectiva pedagógica da Arte, a quem Proudhon atribuía «uma missão altamente moral e higiénica». E se a vida é a Obra, a Arte é a vida: no último capítulo de «O Crime do Padre Amaro», o gaulês é referido como um Autor que por esse tempo (1871) «se começava a citar vagamente em Lisboa como um monstro sanguinolento». Ainda de Eça, ouçamos um comento de João da Ega, n’«Os Maias» maviosos: «Oh, Proudhon entre nós cita-se muito, é já um monstro clássico. Até os conselheiros de Estado já sabem que para ele a propriedade era um roubo, e Deus era o mal…» E da lavra do Autor de «O Primo Basílio», a propósito, dessarte, do passamento de Proudhon, podia-se ler no «Distrito de Évora» de 14 de Novembro de 1867: «De toda a parte, de Nápoles, da Suíça, da Grécia, foi gente assistir às exéquias de Proudhon, o grande construidor da revolução – como a uma festa da inteligência. Aqui em Portugal nem sequer se sabe isso. Quando se fala em liberdade, em justiça, em democracia, todo o mundo volta as suas largas costas dizendo: ‘Ora, sonhos dos vinte anos!’» E prossigamos ora pois. No mesmo ano das Conferências do Casino, Antero propala, e propaga, «O que é a Internacional». E a propósito das palestras, em Maio, por isso, de 1871, ouçamos o que asserta, Eça de Queiroz, no primeiro número de «As Farpas»: «É a primeira vez que a revolução sob a sua forma científica tinha em Portugal a palavra.» Meditemos ora pois: é uma clara alusão ao «socialismo científico», de origem marxiana. É qual resposta, lusitana, à estreme e à extrema Comuna de Paris. Ao referir-se à sua geração no «In Memoriam» de Antero, eis o que afiança o nosso Amigo Eça: «Há quase dez anos apareceu, vinda parte de Coimbra, parte de aqui, parte de acolá, uma extraordinária geração, educada já fora do catolicismo e do romantismo, ou tendo-se emancipado deles, e reclamando-se exclusivamente da Revolução e para a Revolução.» Em nota apensa às «Odes Modernas», de 1865, disserta, certeiro, Antero de Quental: «A poesia moderna é a voz da revolução, é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso século.» Um passo decisivo em prol do comunismo é a lisboesa criação, em 10 de Janeiro de 1875, do Partido Socialista Português; continha nomes, a comissão criadora, como Antero de Quental, José Fontana ( 1840 – 1876 ) e Nobre França ( 1838 – 1920 ). Em missiva, dessarte, a Emídio Garcia ( 1838 – 1904 ), assim Eça define, deveras, «As Farpas»: «São um panfleto revolucionário, é a ironia e o espírito ao serviço da Justiça. São o folhetim da Revolução». E em carta, caroal, a João Penha ( 1838 – 1919 ): «No estado em que se encontra o País, os homens inteligentes que têm em si a consciência da revolução – não devem instruí-lo, nem doutriná-lo, nem discutir com ele – devem farpeá-lo.» Terminaremos dizendo: a trilogia máxima, para Antero de Quental, era a Ágora, agora, era o Hegel ( 1770 – 1831 ), dessarte, era Cristo e Proudhon.

 

V

 A Escola Portuense teve por núcleo geográfico a Invicta Cidade e por limites temporais os anos de 1866 e 1936. «Teólogo laico», foi em 1866 que Pedro de Amorim Viana deu à estampa «Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé». Considerado por muitos como o «primeiro filósofo nacional», Amorim Viana foi nado em Lisboa, a 21 de Dezembro de 1822, e em Lisboa faleceu, a 25 de Dezembro de 1901, no número 89 da Rua da Estrela. Nasceu na Rua do Caldeira, actual Rua Fernandes Tomás, e, sendo baptizado a 16 de Abril de 1823, ele teve, como Padrinho, Pedro Rodrigues Bandeira. Fica órfão de Mãe aos 8 anos e, aos 10 anos, órfão de Pai. Ingressa, aos 16, no Colégio D. Pedro de Alcântara, em Fontenay-aux-Roses, nos arredores de Paris. O mesmo Colégio, fundado em 1838 por José da Silva Tavares, destinava-se, destarte, a estudantes portugueses e brasileiros. É graduado em Matemática, em 1848, por a Universidade de Coimbra, aonde se matriculara em 1842.  Foi Professor de Lógica no Liceu Nacional de Lisboa e, entre 1850 e 1883, Professor de Matemática na Academia Politécnica do Porto. Pensador deísta e racionalista, no seu livro de 1866 ele vai beber aos Numes, e aos nomes, de Vico ( Nápoles, 23/ 06/ 1668 – Nápoles, 23/ 01/ 1744 ) e de Strauss ( Ludwigsburg, 27/ 01/ 1808 – Ludwigsburg, 08/ 02/ 1874 ), de Platão ( Atenas, 428/ 427 a. C. – Atenas, 348/ 347 a. C. ), Espinosa ( Amsterdam, 24/ 11/ 1632 – Haia, 21/ 02/ 1677 ), Leibniz ( Leipzig, 01/ 07/ 1646 – Hanover, 14/ 11/ 1716 ) e Kant ( Konigsberg, 22/ 04/ 1724 – Konigsberg, 12/ 02/ 1804 ). O seu «opus magnum»  seria colocado, no «Index Librorum Proibitorum», aos 17 de Dezembro de 1866. A par disso, ele foi, em 1852, co-fundador de «A Península. Semanário Literário e Instrutivo». E foi aí, em 1852, que ele deu a lume a «Análise das Contradições Económicas de Proudhon», ele foi, de feito, o primeiro pensador português a ocupar-se de Proudhon, Proudhon, como Viana, o livre-pensador. E creio, aqui, que a «Análise do Curso Elementar de Filosofia de A. Ribeiro da Costa e Almeida», em 1864, foram, de facto, as primícias, dessarte, do nosso Professor. De «Newton», nitente, apelidado por os alunos. E prosseguindo, em 1867 ele dá a lume «A Sociedade e a Família com um Juízo Crítico». Trasladando, em 1867, para a Língua Portuguesa, as «Memórias de Madame Lafarge». Em lauta Metafísica e estreme linguajar, Amorim Viana aceitava, selecto, a Igreja Católica – desde que ela acatasse, outrossim, a Liberdade, lilial, e o espírito de crítica. Marcado pelo magistério de Amorim Viana, Sampaio Bruno ( Porto, 30/ 11/ 1857 – Porto, 11/ 11/ 1915 ) dá a lume, em 1874, a «Análise da Crença Cristã» – e é a Escola Portuense que denota, de facto, sua figura-fulgor.


Tomar, 05/ 05/ 2023

SPES MESSIS IN SEMINE

CENTRO DE LITERATURA E FILOSOFIA COMPARADAS

PAULO JORGE BRITO E ABREU