Cristo não desempregou os santos (1)

FREI BENTO DOMINGUES, O.P.

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Não tenho muito apego às definições de religião. Uso essa palavra para significar, na tradição latina, a redobrada atenção às diversas dimensões do devir misterioso do ser humano que escapam à linguagem unívoca da ciência e da técnica. Exprime-se melhor na linguagem metafórica. Como escreveu Ésquilo, em Agamémnon, «Sufocando no galinheiro da razão, dediquei-me a defender a causa dos sonhos».

Na história das religiões existe de tudo, do melhor e do pior. A religião dos místicos, mesmo quando louca, é a suprema sabedoria. O místico não é capaz de parar, de fixar um limite, de se tornar idolátrico, pois, como diz o muçulmano, E. Hallaj, do século X: «Vi o meu Senhor com o olhar do coração,/ e disse-lhe: “Quem és tu?” Ele disse-me: “Tu!”/ Mas para Ti, o “onde” já não tem lugar,/ o “onde” não existe quando se trata de Ti!». A religião de Jesus não cabe em nenhuma classificação conhecida.

No domingo passado, S. Marcos apresentava Jesus como o doido da família e possesso de Belzebu. Neste, Jesus surge, na versão do mesmo evangelista[1], como um pregador surrealista. Jesus queria ser entendido ou não? A sua palavra era só para agitar o vento? Pela referência que faz ao profeta Isaías[2], até parece que só queria baralhar os seus ouvintes: vendo, vejam e não percebam; ouvindo, ouçam e não entendam para que não se convertam e não sejam perdoados.

A citação recorre a um pregador cujos lábios foram purificados por um anjo, um serafim, com uma brasa viva.

Ouviu, então, a voz do Senhor que dizia: Quem enviarei? Quem será o nosso mensageiro? Ele respondeu: Eis-me aqui, envia-me. E foi enviado: Vai e diz ao meu povo: ouvi, tornai a ouvir, mas não compreendereis. Vede, tornai a ver, mas não percebereis. Endurece o coração deste povo, ensurdece-lhe os ouvidos, fecha-lhe os olhos. Que os seus olhos não vejam, que os seus ouvidos não ouçam, que o seu coração não entenda, que não se converta e Eu o cure.

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Marcos começa pela muito conhecida parábola da sementeira para falar do misterioso Reino de Deus. Esta não apresenta nenhuma dificuldade especial, mas os discípulos ficaram sem perceber nada.

Jesus fica espantado com discípulos tão pouco dotados: Se não compreendeis esta parábola, como podereis entender todas as outras?

Mais uma vez, teve paciência e explicou tudo muito bem. O narrador sublinha que a maior dificuldade em acolher a palavra do Reino é o mundanismo, a sedução das riquezas e outras ambições. Quando encontra bons ouvidos, os frutos são de 30, de 60 e até de 100%.

A parábola seguinte contradiz o começo: quem traz uma lâmpada acesa é para a esconder? Mas não será esse o defeito das parábolas em relação ao discurso directo?

Não há nada a ocultar. Quer tudo na luz do dia. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça. Mas cuidado com o que ouvis. Com a medida que medirdes sereis medidos e até vos será acrescentado mais. E regressa ao paradoxo escandaloso: ao que tem, será dado e ao que não tem, mesmo o que tem, lhe será tirado.

De repente, muda de registo. O crescimento do Reino de Deus não é fruto do esforço humano: o semeador lançou a semente à terra e foi dormir e, depois, quando o fruto está no ponto, vai colher. Também não há que desesperar com a lentidão do crescimento da comunidade. Os começos nem sempre são gloriosos e vem a parábola do grão de mostarda, pequena semente que chega a ter grandes ramos, onde as aves do céu se abrigam à sua sombra.

No final do capítulo, volta a insistir que Jesus anunciava-lhes a palavra por meio de muitas parábolas como estas, conforme podiam entender e nada lhes falava a não ser em parábolas. Remata, dizendo que as explicações eram assunto privado para os discípulos. O narrador deixa-nos sem podermos concluir se Jesus falava para ser entendido ou não.

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A pergunta fundamental, perante esta paixão pela linguagem parabólica, talvez seja esta: porque não fez Jesus um catecismo, bem explicadinho, com perguntas e respostas bem definidas, para não deixar os seus seguidores continuamente sem saber bem o que pensar, o que está certo e o que está errado? Se, assim, tivesse feito, dispensava as dificuldades da exegese histórico-crítica e as múltiplas abordagens reconhecidas pela Comissão Pontifícia Bíblica[3]. Teria dispensado séculos e séculos de escolas teológicas, de heresias e de conflitos.

A linguagem universal é a da ciência e da técnica, incompatível com emoções e estados de alma. Jesus poderia ter feito uma ciência exacta da verdadeira religião e tinha, como fruto, um sossego eterno. Donde lhe veio a mania das parábolas e de falar só em parábolas?

Esquecemos que Jesus era e é um ser humano nascido e educado dentro de uma cultura e de uma religião que, hoje, é possível identificar. Jesus não sabia todas as línguas, não conhecia todas as religiões e nunca procurou impor apenas uma versão do valor divino do humano e do valor humano do divino. Não escreveu um livro inspirado que tivesse o condão de substituir todos os livros de sabedoria religiosa. A falar verdade, nem sequer temos o que Jesus escreveu na areia. Os seus gestos e palavras foram contados por outros. São eles a grande obra de Jesus de Nazaré. Tudo no tempo, tudo efémero. Ninguém fez o filme do que aconteceu.

As parábolas permitem resistir ao tempo pela necessidade de serem sempre lidas e interpretadas sem sentido pré fixado.

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As comunidades cristãs, boas, más e assim-assim, são as únicas relíquias de Jesus Cristo e não estão todas em Jerusalém. Não o substituem. Os santos, aqueles que, sabendo ou não, o anteciparam e o seguiram não estão arquivados no céu nem se devem confundir com as suas posições nos altares. Estão vivos e activos. De vez em quando, na vida dos cristãos são evocados e respondem sempre, umas vezes no sentido da pergunta, outras vezes complicando-a. Não perderam o estilo das parábolas.

Houve muita confusão em torno da “vida dos santos”. Algumas tornavam a “santidade” detestável. Eram instrumentos de desumanização de Deus e da Igreja. Outras eram auto referentes, idolátricas: Deus tinha de contar com elas ou não sabia o que fazer. Deus estava longe e mal informado das peripécias da vida humana. Os santos eram os mediadores, pontes, entre o Deus distante e a nossa condição. Ao fim e ao cabo, os cristãos entendiam-se mais com eles do que com Deus. Transportavam, para as relações entre o divino e o humano, o sistema das cunhas.

Os santos populares sabem mais de Deus e de nós do que se julga. Veremos.


in Público 17. 06. 2018

[1] Mc 4, 1-34

[2] Is 6

[3] A interpretação da Bíblia na Igreja, Secretariado Geral do Episcopado, 1994.