Criação literária e cidadania em «Intermitências» de Manuel Daniel

JORGE AUGUSTO MAXIMINO
Jorge Augusto Maximino (Portugal). Ensaísta e poeta. Prof. Universidade de Pádua, e investigador do CLEPUL – Universidade de Lisboa.


O livro que leva por título significativo Intermitências  [*] está organizado em três secções, nas quais Manuel Daniel decidiu integrar teatro, poesia e um conjunto de textos, que são excelentes ensaios e memórias. É muito para um só livro, pensarão alguns leitores. Trata-se, na verdade de um trabalho em que a própria organização do volume acaba por nos surgir afinal como símbolo da complexidade do trabalho literário, da árdua tarefa do escritor, de qualquer escritor. Porque, na verdade, o trabalho do escritor não se sabe onde começa ou porque começa, nem exactamente onde acaba; é, por isso, uma tarefa sempre inacabada, infinita, se quisermos. A literatura, por isso mesmo, mais do que uma arte, é essencialmente uma experiência da vida e também uma experiência do pensamento, pelo que o seu inacabamento, enquanto elemental na obra de arte, fascina e ao mesmo tempo leva muitos autores a considerar a escrita literária não só uma vocação como também um desafio permanente.  Foi o caso de Paul Valery, para quem a literatura era “um excitante”, visto para ele tratar-se de um modo de vida e uma criação em parte imprevisível. Razão pela qual o mesmo Paul Valery escreveu nos seus Cadernos o seguinte: “A obra é feita de um sem-número de atitudes espirituais, de acontecimentos concretos, acasos, história.”[1]

Do mesmo modo, sobre a sua fragmentaridade, Valery anotara também o seguinte: “De uma maneira ou de outra a obra reenvia ao autor a imagem da sua divisão, da cisão que a institui”[2].

O volume que hoje se apresenta inclui-se na série de edições da obra completa do autor de A porta do labirinto. A obra de Manuel Daniel progride assim, depois de Chão de areia (2016) e Coração acordado (2017), a série de publicações em triplo registo: poesia, teatro, ensaios. A secção de poesia deste volume é constituída por um conjunto de 17 poemas, na secção Teatro publicam-se quatro peças: “O Rei David”, “O Céu roubado”, “O Sapateiro Pobre” e “As Espertezas do Diabo”.

Jorge Maximino, na sessão de lançamento da obra.

Neste volume a secção Textos integra a parte do livro que medeia entre o conjunto de poemas e as peças de teatro. Encontramos nela ensaios sobre personalidades de grande relevo na história de Foz Côa e da região, destacadas figuras da memória colectiva e que dedicaram uma parte da vida, de forma abnegada a muitas actividades de carácter social ou à vida cultural da região, e em especial nos concelhos de Mêda e de Vila Nova de Foz Côa. São três trabalhos preciosos, tendo na ideia de memória viva[3] o seu motivo principal, tratando-se, nalguns casos, de ensaios que exigiram assinalável pesquisa, e que resultam em excelentes contributos para a história regional e para a história da cultura: “As Brumas da memória”, “A Telha e o Pão”, sobre o Padre José Maria de Lacerda, esse sacerdote dedicado aos mais pobres no Concelho de Mêda, além de “Amândio César”, estudo sobre esse consagrado escritor, um “fozcoense nascido no Minho» nas palavras de Manuel Daniel, que retratou brilhantemente as tradições da população de Foz Côa na primeira metade do século passado, em boa parte de uma Foz Côa que já não existe, especialmente nos seus livros Pau de Sebo ou Subsolo, que muito de vós terão lido com certeza.

Intermitências abre com um conjunto de textos poéticos. Direi que é a forma natural ou lógica de começar. Primeiro porque não existe literatura sem linguagem poética; segundo, porque do mesmo modo podemos afirmar que não existe arte sem linguagem poética.

  Neste volume é fundamental assinalar que do texto poético parte, por um lado, o título do livro e, por outro, a ideia integradora de um volume e no qual, ao mesmo tempo, é gerada a linguagem poética que se dissemina pela obra, incluindo os textos no registo dramático.

Por outras palavras, diremos que neste contexto a dimensão poética, sendo marca de linguagem é ainda o princípio de construção dos textos e, ao mesmo tempo, “pórtico” que abre e protege literariamente, como fortaleza invisível, toda a obra.

É na escrita poética de Manuel Daniel, com muitos textos num registo por vezes popular, que o autor se afirma muito próximo de autores de grande vulto nacional e que foram uma referência para várias gerações, dois deles particularmente: José Régio e Miguel Torga. Duas afinidades ou, se preferirmos, duas tendências que se fundem para desenhar o estilo original do autor: a inquieta espiritualidade regiana e a dimensão telúrica dos grandes espaços e da ruralidade órfica que marcam a obra torguiana.

Não é portanto por acaso que o livro apresenta na sua abertura o poema “Intermitências”[4]. Nele, o sujeito poético, em manifesta carga autobiográfica, diríamos que procede a um selar da obra como documento, de modo invertido, optando, não pelo fim do livro mas pelo princípio, em tom coloquial, como se tivesse sido interpelado pelo leitor: “No BI, onde a vida me confronta / já mal se identifica o retratado.”. Situação objectiva mas anacrónica afinal, pois nos remete para essa disfunção do ordenamento e lógica dos documentos de identificação. Quebra da lógica como uma quebra na linearidade. Nesse sinal em que entra o jogo das temporalidades, situar-se-á um dos eixos do livro, aberto pelo sujeito poético, num registo que se escuda nalguma narratividade: “deixei-me envelhecer sem me dar conta”, “Tudo se torna mais lento […]”, e ainda: “Chega a parecer um caos organizado /de sombras e de luz. Intermitências”. Este é o poder da palavra poética: darmo-nos conta de que só através da poesia o homem diz o que não sabe, o que nem o saber científico é capaz de prescrutar.

Seguem-se outros poemas como “O mar da minha terra”, “Amendoeiras”, “Nossa Senhora do Pranto” ou “Fado fozcoense no Largo da Conceição”, em que se exaltam elementos fundamentais da identidade e da memória cultural de Foz Côa. Elementos dos quais o sujeito poético se torna aqui fiel intérprete na sua recriação, com a humildade e despojamento da sua palavra poética, da sua “folha em branco”, título do segundo poema. Sobre a trabalho de escrita poética e o despojamento da palavra, bem como sobre o alcance civilizacional da poesia, convirá lembrar aqui o que escreveu António Ramos Rosa no curto ensaio intitulado “A pobreza da poesia”:

Ao contrário das palavras dos homens públicos, que falam “subjugando” a palavra, ao contrário dos que têm uma “mensagem” e que supõem possuir a autoridade que uma mensagem requer, o poeta não fala em nome de ninguém, nem dele próprio, nem de nenhuma instância religiosa, política ou social. Por trás do poeta não está ninguém, porque ele precede-se a si próprio, inventando o seu caminho, num ritual que se renova em cada poema a partir da página em branco.”[5].

E porque “A poesia é linguagem […] Nela “as palavras são transmutadas numa metamorfose essencial. Diante da página branca, o poeta é um ser despojado que ignora o que vai fazer, porque nenhuma técnica, nenhum sentimento, nenhuma ética pode predeterminar a eclosão do poema que é uma espécie de relâmpago entre dois pólos […]”.  (Idem., p. 15.)

Depois de uma leitura atenta, retemos que o imperativo primeiro desta obra de Manuel Daniel consiste em sugerir um olhar plural sobre a vida como uma visão do mundo que, à semelhança do trabalho do sujeito poético, assenta numa procura constante do elemento integrador das várias experiências humanas, dessas peças que serão intermitências, pontos de luz ou intermitências da vida humana projectadas numa espécie de leque imaginário, uma figuração do real fragmentado e que solicita uma visão integradora, ou uma perspectiva que garanta a sua coerência, um sentido para a vida, que é afinal o sentido do mundo.

A mesma procura de uma unidade e coerência tal como está implícita, por exemplo, no poema que tem por título “O Mar da Minha Terra” (p.24) e que aqui transcrevemos:

O mar da minha terra é de granito,

tem gigantes de pedra olhando o céu,

montanhas com saudades do infinito

e o puríssimo ar que Deus lhe deu.

 

Não tem praias, o mar; cresceram vinhas

no dorso pedregoso das encostas,

onde as cepas fiéis conformam linhas

como monjas orando de mãos postas.

 

Dois dias são guardados para deleite

e os outros todos são para a labuta

na terra que nos dá legumes, leite,

o pão e o vinho, vivo, e a fruta.

 

O mar da minha terra não é de água;

é um sonho de pedras e chão duro

e da luta –raiz da nossa mágoa-

para alcançarmos as praias do Futuro.

 

Através da leitura deste poema constatamos aqui que há um pensador neste trabalho poético. Podemos, por isso, fazer nossas as palavras de Victor Hugo, aquelas palavras que se encontram numa carta que escreveu a Baudelaire: “Como acontece com todos os poetas, a sua poesia tem um filósofo dentro”.

Constatamos que existe nesta obra uma inquietação metafísica, uma procura do uno ou um sentido para a perspectiva fragmentária da vida.

Constatamos que temos, do mesmo modo religiosidade nesta obra, mas uma religiosidade não acantonada num espaço de estrito sentido do teológico. Trata-se antes, de uma dimensão profundamente espiritual dos textos e aberta a uma realidade concreta, uma realidade agreste com que se defronta o sujeito poético no poema que acabámos de ler, como uma realidade imanente, ressaltando das agruras e dos momentos de dúvida e de interrogação também dos personagens das suas peças de teatro.

 Passando agora aos textos dramáticos, impõe-se antes de mais sublinhar que perpassam nas quatro peças de teatro que se publicam neste livro temas essenciais, temas universais, por vezes demasiado clássicos na sua estruturação: a justiça, a solidão, o amor, o materialismo, a morte, a alegria, o individualismo ou o perdão. Nelas se privilegia um permanente diálogo inter-geracional, patente desde logo na escolha dos personagens e, no plano dos valores, a autenticidade da vida humana, o seu quotidiano, a vida no mundo rural, a vida simples em contraste com o mundo globalizado, o consumismo e os excessos do salto tecnológico e do mercantilismo. Daí também o contraste com personagens de uma profunda espiritualidade. Como por exemplo em “As Espertezas do Diabo”, Diabo que contracena com um jovem, o Zé da Avó, personagem virtuoso que consegue enganar o Diabo; mas também em personagens como a do Rei Saúl, na peça “O Rei David”, que apresenta mudanças de comportamento de um monarca propenso a actos violentos mas ao mesmo tempo capaz de mostrar arrependimento e de perdoar.  E o perdão foi, na minha perspectiva, um dos contributos essenciais para a matriz da cultura europeia, elemento central do próprio Humanismo. Já no século XX, por exemplo, depois de séculos de conflitos em várias nações como os Estados Unidos da América, foi significativo Martin Luther King ter falado da necessidade de um “perdão para um recomeço”, para uma reorganização da sociedade com bases sãs. O perdão foi tema de reflexão de importantes ensaios de pensadores notáveis, incluindo Jacques Derrida, que se exprimiu também sobre o que se passou a designar uma geopolítica do perdão.

Neste teatro de uma força fabulosa de Manuel Daniel, torna-se pregnante a construção metafórica eficaz na figuração de personagens como o Diabo, por exemplo, nas peças “O Sapateiro Pobre” e “As Espertezas do Diabo”, e que ilustram a poderosa capacidade criativa do autor neste género: com uma mestria invulgar nestas peças surge uma fulguração de imagens jocosas e de intensa ironia discursiva, escolhidas para as falas desses personagens, bem como noutros, populares, como em “O Céu roubado”; a linguagem e a vivacidade conseguidas para as personagens bíblicas da peça “O Rei David” são um momento alto de extraordinária recriação de algumas figuras da história da primeira fase do cristianismo e desse imaginário religioso, que é de todos afinal. São todos estes elementos de criatividade que dão substância e profundidade às necessárias variações de um discurso dramático de grande exigência.

Trata-se, por conseguinte, de uma obra que demonstra, por um lado, um pleno conhecimento dos nossos clássicos, desde Gil Vicente, e, por outro, uma elevada capacidade de construção dos diálogos, caracterização dos personagens e domínio dos tempos de fala. Com estas peças e as que foram publicadas até agora, peças que foram apresentadas ao público por várias companhias de teatro do país, situa-se Manuel Daniel no patamar dos autores portugueses mais representativos do género dramático em Portugal na época contemporânea. Deve-se salientar ainda que predomina nas suas peças uma forte componente didáctica, que é um excelente marcador dos seus textos, bem como da construção do jogo dramático, elemento diferenciador da generalidade dos autores da sua geração, sendo essa uma característica que escasseia no teatro actual.

E é este um ponto central destas peças, que não reside exclusivamente nas suas características enquanto textos literários, mas ainda na sua dimensão extra-literária. E é este, sempre foi, o lugar do teatro bem como a importância da representação enquanto modelo de expressão da arte dramática. Ou melhor, enquanto arte e cultura com pedagogia dentro, que de certo modo justifica a racionalidade implícita no teatro grego, em especial na tragédia, género que dita o próprio nascimento do teatro, como sabemos.

É na leitura de obras desta envergadura que nos damos conta da necessária reinvenção de uma didáctica com base na língua, nas suas infinitas possibilidades de expressão, enquanto património e reservatório de imagens, imagens da nossa memória cultural, imagens da experiência da vida e também de um pensamento sobre a condição humana.

Neste livro a língua é um anel que subsuma a universalidade dos textos deste autor polígrafo, trazendo a memória para a arte literária e para uma função prática. Neste plano impõe-se destacar a enorme relevância da obra de Manuel Daniel, pois nela convergem de modo intenso a dimensão literária e a educativa. O que me leva a pensar aqui na imagem dupla de Homero: Homero não só como criador literário, independentemente de ter sido real a sua existência ou apenas imaginária, mas Homero também como educador da Grécia. O que em suma situa a literatura enquanto guardiã da língua.

E, considerando neste plano a obra literária de Manuel Daniel, ela assume ainda maior relevo visto que, comprova-se agora mais uma vez com este volume, pela forma como trabalhou e trabalha a língua portuguesa, os nossos regionalismos e as marcas da nossa identidade regional e local, bem como pela sua peculiar criatividade, constitui-se já como parte essencial do legado cultural incontornável da região, e muito especialmente de Mêda e de Vila Nova de Foz Côa, de par com outros autores consagrados. A sua obra constitui uma das mais altas produções literárias da região e ao mesmo tempo um contributo seguro no quadro literário nacional.


Manuel Daniel, Intermitências, ed. Câmara Municipal de Foz Côa, Maio, 2018 (232 p.).

[1] Paul Valery,  Cahiers, II, 1894-1917, II, Paris, La Pléiade, 1974, p. 213.

[2] Paul Valery, Oeuvres, II, Paris, La Pléiade, 1960, p. 629.

[3] Ocorre-me precisamente a expressão de Pierre Nora “A memória é a vida”: “A memória é a vida, sempre apoiada em grupos vivos e em evolução permanente, aberta à dialéctica da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todas as utilizações, susceptível de longas lactências e repentinas revitalizações. […] A memória é um fenómeno actual.” (Pierre Nora, Les lieux de mémoire 3, Paris, Gallimard, 1996, pp.24-25.)

[4] Poema “Intermitências”, p. 21.

[5] António Ramos Rosa, in A Parede Azul, Lisboa, Caminho, 1991, p. 15.


Lisboa-Pádua, Abril-Maio de 2018.
©Jorge Augusto Maximino