E.G.CRESPO & ANA MARIA VIEGAS
Os chacras

In: EVOLUÇÃO DO COMPLEXO PINEAL DOS VERTEBRADOS
E.G.Crespo & Ana Maria Viegas
Colecção Natura, Nova Série - Vol. XVI
Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais
Lisboa, 1991


I. INTRODUÇÃO

Basicamente a evolução do complexo pineal dos Vertebrados traduz-se na transformação de estruturas sensoriais (nervosas), os «olhos» pineais dos Vertebrados inferiores, em estruturas endócrinas, as glândulas pineais dos Vertebrados superiores. Uma das questões que desde logo se pode colocar é a de como se terá operado esta transformação. Teria havido um salto evolutivo na acepção saltacionista do conceito ou, pelo contrário, esta transformação pode ser compreendida como um processo gradual, numa dupla perspectiva morfo-funcional?

Como veremos, a evolução do complexo pineal dos Vertebrados ilustra, quanto a nós, excelentemente, o que podemos considerar ser a essência de um processo evolutivo de tipo gradualista.

É, em muitos casos, difícil compreender como fenómenos evolutivos, envolvendo estruturas relativamente complexas, se possam ter desenrolado através de processos aleatórios, isto é, através de sucessivas mutações que se terão logo de integrar, harmonicamente, num conjunto plenamente funcional. Esta aparente dificuldade tem sido, recorde-se, mais em particular no que se refere à origem dos olhos complexos de certos grupos animais (Vertebrados, Cefalópodes, etc.), um dos mais evocados argumentos anti-darwinianos (anti-gradualistas).

Para se evidenciar a natureza gradualista dos processos evolutivos há portanto não só que demonstrar a existência de fases intermédias mas também o significado adaptativo das mesmas.

O caso da transformação de um «olho» numa glândula endócrina, no decurso da evolução dos Vertebrados que iremos desenvolver neste trabalho, é, como dissemos, um magnífico exemplo deste tipo de processos. Trata-se, como veremos, de uma transformação gradual, por pequenos passos, em que são evidentes numerosas fases intermédias, cujo valor adaptativo, imediato e pleno, facilmente se pode compreender. Esta transformação ajuda igualmente a entender que na evolução as soluções para cada problema não são ilimitadas. Existem numerosas limitações impostas pelas estruturas orgânicas pré-existentes que constrangem, canalizam, a evolução. As adaptações resultam sempre da conversão do que já existe, de uma reutilização do pré-existente, não se formam «de novo». Como diz SACARRÃO (1985), o que já existe fornece os materiais e, simultaneamente, os limites para as transformações subsequentes. Em suma, que a evolução se processa quase sempre por pequenos passos evolutivos que podem ser mais ou menos rápidos, mas sempre no contexto de um processo contínuo, gradual (ver SACARRÃO, 1986).

A existência, hoje plenamente confirmada, de um perfeito continuum neuro-endócrino, consubstanciado nos conceitos de série APUD e de paraneurónio, vem, por outro lado, permitir um melhor enquadramento e compreensão desta transformação de um «olho» numa glândula endócrina numa óptica gradualista.

O tema que desenvolveremos dar-nos-á ainda oportunidade de abordar vários e significativos aspectos da fotobiologia, nomeadamente a utilização da informação fótica na organização temporal, "rítmica, de muitos e importantes processos bioquímicos, metabólicos e comportamentais que na actualidade dão corpo a um novo domínio da biologia -a Cronobiologia.

Através da nossa exposição concluiremos que, ao contrário do que até há bem poucos anos se supunha, os órgãos do complexo pineal assumem, mesmo nos Vertebrados superiores (incluindo o próprio Homem), relevante significado funcional.

II. EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS SOBRE A PINEAL - PERSPECTIVA HISTÓRICA

Esta discreta e até há pouco tempo enigmática estrutura cerebral vem despertando há mais de vinte séculos a curiosidade do Homem. A sua particular topografia talvez explique este facto. No caso humano, é uma formação ímpar, localizada na parte superior do encéfalo (epitálamo) que ocupa aproximadamente o centro geométrico do crânio.

Uma das mais antigas e interessantes referências à pineal encontra-se nos «Vedas», livros sagrados dos hindús. Segundo estes, existem no Homem sete «Chacras» ou centros de energia vital (etérica), situados ao longo do eixo do corpo. O mais importante destes centros, localizado no topo da cabeça, o 7º «chacra» ( «saharasra-chacra» ou lótus-das-mil-pétalas), sede da suprema força espiritual, é identificado com a pineal.

Para muitos dos estudiosos deste assunto, as tranças ou tufos de cabelos que ornamentavam o cimo das cabeças dos membros de algumas antigas seitas religiosas orientais (frequentemente representados na arte bizantina), seriam a expressão externa deste centro. Alguns destes autores chegam mesmo a admitir que os nimbos dos santos cristãos, e até as tonsuras dos sacerdotes católicos, podem ser reminiscências destas velhas crenças sobre o significado transcendental deste misterioso órgão.

Os designados «Hdab-stom> dos tibetanos - centros de convergência da energia inconsciente e pontos de projecção para a consciência cósmica - são considerados equivalentes aos «chacras» hindús (RUBlO, 1978). Também o «olho-místico» ou «olho de Hórus» dos antigos egípcios que concederia aos iniciados a clarividência, isto é, a visão directa do invisível, tem sido, por vezes, associado aos conceitos sobre o significado «oculto» da pineal das antigas culturas orientais.

Curioso é o facto de muitas destas ideias serem ainda hoje perfilhadas, quase que integralmente, por diversas escolas ocultistas (esotéricas), para-psicologistas e «yogas», europeias e americanas.

Através dos antigos filósofos gregos estes conceitos difundiram-se pelas culturas ocidentais. A HERÓFILO e a ERASÍSTRATO, cerca de 300 a.C., se ficam a dever as primeiras descrições da pineal. Consideravam-na como uma espécie de válvula que regularia o fluxo dos «spiritus» (ou «pneuma»), através dos ventrículos encefálicos. Mais tarde, GALENO, 130-200 a.C., refutou estas opiniões, dado ter verificado, com razão, que este órgão está localizado fora do sistema ventricular. Sugere que se trataria de uma glândula linfática. Foi este autor que, com base na sua forma de pinha, o designou por «Konarium» (em latim, pineal), termo que ainda hoje se conserva na denominação de algumas das estruturas relacionadas com este órgão. A pineal é também designada por epífise («que cresce para cima»), devido à sua localização.

No século XVII, DESCARTES, no seu livro «De l'Homme», ainda fortemente influenciado pelas ideias dos antigos gregos, mas numa perspectiva puramente mecanicista, localiza a alma na pineal. Seria ali que, na sua concepção, se formaria o «spiritus animalis» que depois se distribuiria pelos ventrículos encefálicos. Destes fluiria através de pequenos poros e dos nervos (ocos, como na altura se pensava) para a periferia (músculos, glândulas, etc.). Os estímulos externos actuariam abrindo ou fechando aqueles poros ventriculares e sobre a própria pineal, aumentando ou diminuindo assim o fluxo do «spiritus animalis».

Esta concepção «dualista», corpo (máquina) -alma, embora desde logo objecto de severas críticas, persistiu, e ainda hoje é perfilhada por alguns neuro-cientistas. Estes admitem a existência de uma região do cérebro, em ligação directa com o «espírito», à qual obedeceria toda a máquina cerebral. Mesmo para o actualmente muito conhecido filósofo KARL POPPER, esta ideia cartesiana não parece ser de todo absurda (ver SACARRÃO, 1989).

Pondo de parte todas as reticências que esta teoria obviamente nos merece, não deixa contudo de conter elementos extraordinariamente interessantes. A ideia de considerar a pineal como um receptor, talvez mesmo como um «integrador» de estímulos externos, foi na realidade uma admirável e genial intuição. Efectivamente DESCARTES como que anteviu as funções que hoje são atribuídas a este órgão, ou seja, as de um «transdutor» neuro-endócrino da informação luminosa (e não só).

Depois de DESCARTES e praticamente até à segunda metade do século XIX, a pineal só esporadicamente despertou a atenção de alguns investigadores. Neste período podem citar-se, entre outros, COOPER e HENLE (reafirmando a antiga ideia de GALENO, acerca da natureza linfática da pineal), e também LEYDlG (morfologia da pineal de Lacerta sp.) e GOETH (morfologia da pineal de Bombina sp.).

Dado que a anatomia comparada, a anatomia microscópica e a embriologia antecederam o desenvolvimento da fisiologia, é natural que os primeiros conceitos acerca do significado da pineal se alicerçassem em observações de índole essencialmente morfológica.

Nos começos do século XX, a citologia pineal de muitas espécies de Vertebrados tinha já sido descrita por STUDNICKA.

Entretanto, com a descoberta dos órgãos endócrinos, o interesse pela pineal aumentou e começaram a surgir trabalhos sobre a sua actividade funcional. Ainda nos finais do século passado, DE GRAAF foi quem primeiro sugeriu funções foto-receptoras para os órgãos dos complexos pineais dos Répteis e dos Anfíbios e RABL-RUCKLAND relacionou estas estruturas com a recepção de estímulos térmicos. Também GUTZEIT e HEUBNER correlacionaram o desenvolvimento precoce dos órgãos genitais e alguns casos de puberdade antecipada (em jovens do sexo masculino), com a existência de tumores na pineal. Estas observações foram prosseguidas, mais tarde, por MARBURG, sugerindo-se que a pineal poderia ter um papel inibidor na maturação dos órgãos sexuais.

Por outro lado, VON FRISCH, McCORD e ALLEN assinalaram a intervenção da pineal nas variações do estado de agregação dos melanosomas dos melanócitos tegumentares, em larvas de Peixes e Anfíbios.

Apesar, contudo, destas descobertas isoladas, podemos afirmar, de acordo com BRAINARD (1978) que a ideia que prevaleceu, até quase metade deste século, era a de que a pineal dos Vertebrados superiores, e mais em particular a do Homem, era um mero rudimento, sem qualquer significado funcional relevante, de um órgão foto-receptor ancestral.

Durante este período, para muitos clínicos, a pineal humana pouco mais significou que uma útil referência radiológica, dada a sua conhecida tendência para se calcificar. Após a segunda guerra mundial e sobretudo a partir da publicação, em 1954, da «Pineal Gland», obra da autoria de KITAY e ALTSCHULE, as pesquisas sobre este órgão sofreram um impulso decisivo. Isto apesar de já em 1940 ter sido publicada uma importante obra sobre esta matéria, «The Pineal Gland», por GLADSTONE e WEKELEY.

Foi contudo o trabalho de KITAY e ALTSCHULE que veio organizar e sumarizar toda a literatura produzida até à data, em grande parte fruto de trabalhos incompletos, deficientemente controlados e até contraditórios.

Outro facto que, sem dúvida, muito contribuiu para o decisivo arranque das investigações neste domínio, foi a descoberta e isolamento, na pineal, por LERNER e col. (1958), de uma indolamina, a melatonina, inicialmente julgada como hormona exclusiva deste órgão.

Nas últimas décadas o interesse pela pineal cresceu espectacularmente e uma impressionante quantidade de informação tem sido conseguida por investigadores das mais diversas áreas científicas - histologistas e histoquímicos, embriologistas, endocrinologistas, neurologistas, psiquiatras, etologistas, ecologistas, etc.

Expressando este crescente interesse, sucessivas reuniões internacionais, especificamente dedicadas à pineal, têm sido realizadas nos últimos anos (Amsterdão, Londres, Jerusalém, Leibig, etc.). Hoje já existem revistas totalmente consagradas a esta matéria, nomeadamente o «Journal of Pineal Research» e a «Pineal Research Reviews».

Podemos afirmar a concluir que actualmente a pineal, mesmo no caso dos Vertebrados superiores (incluindo o Homem), longe de ser tida como um órgão rudimentar, destituído de quaisquer funções significativas, é considerada um importante transdutor da informação fótica (e não só), com decisiva intervenção no eixo hipotálamo-gónadas, modulando os ritmos circadiários e sazonais de muitos processos bioquímicos, metabólicos e comportamentais.