..COLÓQUIO INTERNACIONAL "A CRIAÇÃO". CONVENTO DOS DOMINICANOS. LISBOA. 2001


  • Variações sobre o tema da criação
    em textos e contextos norte americanos

    Maria Leonor Telles




            Ao contrário do que acontece actualmente na Europa dita cristã, onde a querela entre criacionismo e darwinismo parece ter passado à história, nos Estados Unidos da América do Norte, em especial em zonas onde a população maioritariamente professa a mesma crença religiosa, continua em aberto o conflito entre a perspectiva bíblica tradicional da criação do mundo e do ser humano, e as versões decorrentes do progresso da investigação científica. Os meios de comunicação social, nomeadamente a televisão, têm-nos mantido ao corrente desse facto e das suas incidências pedagógicas, que constituem objecto frequente quer de notícia quer de tratamento ficcional.

            Só de forma indirecta se relacionam com esse assunto os textos de que em seguida nos ocuparemos, na medida em que pretendem ser uma pequena amostragem, porventura significativa, da persistência do tema da criação na literatura norte americana, e ilustram a evolução histórica do pensamento intelectual dominante, desde os alvores do período colonial até ao século XX.

            Começaremos com um excerto do Catecismo Abreviado, composto em 1647 pelos clérigos puritanos, e que era estudado pelas crianças da Nova Inglaterra, bem como pelos adultos “de mais fracas capacidades”.  As 107 perguntas e respostas nele contidas põem em relevo os pontos essenciais da versão calvinista da doutrina cristã, começando por estabelecer que “a Palavra de Deus contida nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento é a única Regra que nos orienta” para que possamos realizar-nos plenamente, glorificando a Deus e alcançando a bem-aventurança eterna. Assim, a lição do Genesis é formulada nos seguintes termos:

.............P. Como é que Deus executa os seus decretos?

.............R. Deus executa os seus decretos nas Obras da Criação e da Providência.

.............P. Qual é a Obra da Criação?

.............R. A Obra da Criação é todas as coisas serem criadas por Deus a partir  do nada, pela Palavra do seu Poder.” 

.............P. Que Acto especial de Providência praticou Deus para com o homem no estado em que foi criado?

.............R. Tendo criado o homem, Deus estabeleceu com ele uma Aliança de Vida, sujeita à condição de perfeita obediência, proíbindo-o de comer da árvore da ciência do bem e do mal sob pena de morte.

.............P. Os nossos primeiros Pais continuaram no estado em que foram criados?

.............R. Entregues ao seu livre arbítrio, os nossos primeiros pais decairam do estado em que foram criados, pecando contra Deus.” 

.............P. Toda a humanidade decaíu com a primeira desobediência de Adão?

.............R. Sendo a Aliança feita com Adão não só para ele mas para a posteridade, toda a  humanidade que dele descende por geração natural nele pecou e com ele decaíu na sua primeira desobediência.” 

.............P. Quais são os males do estado em que o homem caíu?

.............R. Pela sua queda, toda a humanidade perdeu a comunhão com Deus, incorreu na sua ira e maldição, ficando, assim, sujeita a todos os males nesta vida, à própria morte, e às penas do Inferno por toda a eternidade.”             

..............Não podemos deixar de reconhecer que esta interpretação literal e pessimista do texto bíblico sobreviveu ao declínio da chamada “teocracia puritana” que os colonos da Nova Inglaterra aí tentaram estabelecer no século XVII.  No entanto, a mesma perspectiva calvinista que os fazia encarar o ser humano como naturalmente corrompido pelo pecado original, também os levava a admitir que, mediante a fé e por acção exclusiva da Graça Divina, aqueles que Deus predestinara para gozarem da bem-aventurança seriam capazes de construír neste mundo a cidade dos santos, a nova Jerusalem.  A América representaria, pois, a Terra Prometida onde eles, Povo Eleito, restabeleceriam a Aliança com Deus.

            Ora é esta perspectiva optimista em relação ao aqui e agora e, especificamente, à América como espaço ideal de oportunidade infinita que vai tornar-se dominante no século XVIII, quando a fina flor dos intelectuais deixa de ser constituída por ministros puritanos formados em teologia por Cambridge, no célebre Emmanuel College, para integrar sobretudo leigos imbuídos do espírito do Iluminismo, que substituem o Deus bíblico, permanentemente actuante em ínfimas intervenções providenciais, pelo Deus “relojoeiro”, igualmente responsável pela criação e pelo bem das criaturas, mas que apenas no espectáculo grandioso de um universo regido por leis perfeitas se manifesta ao homem, a quem dotou de razão para O reconhecer e para, através dela, se realizar plenamente.

         É neste contexto que vai situar-se um acto de criação que concretiza, em versão laica, o sonho puritano de autonomia relativamente a uma Europa decadente e de abolição da hierarquia consuetudinária, quando as treze colónias inglesas da América do Norte se tornam uma nova nação, os Estados Unidos.  

            A Declaração da Independência, redigida por Thomas Jefferson (1743-1826) e ratificada pelo Congresso em 4 de Julho de 1776, fundamenta-se ainda na lei de Deus, mas não se trata já do Deus da revelação bíblica que, no Antigo Testamento concedera a Adão o Paraíso e ao povo eleito a Terra Prometida, sob condição de estrita obediência a mandamentos Seus:  trata-se, sim, do Deus da Natureza, presente à razão humana na obra da criação, e que, em vez de impor deveres ao homem, lhe outorga direitos:

            “Quando no decurso dos acontecimentos humanos se torna necessário a um povo dissolver os vínculos políticos que o ligaram a outro, e assumir entre as potências da terra o estatuto de autonomia e paridade a que as Leis da Natureza e do Deus da Natureza o autorizam, o respeito devido à opinião da humanidade exige que se declarem as razões que o levam a essa separação.  Consideramos serem evidentes por si mesmas as seguintes verdades:  que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a demanda da felicidade.” 

            Talvez a melhor definição deste demiurgo benevolente que se revela na obra que criou seja, porém, o poema de Philip Freneau (1752-1832) intitulado “Acerca da Universalidade e de Outros Atributos do Deus da Natureza”, publicado em 1815, e que, literalmente traduzido, sem atender ao esquema de metro e rima original, reza assim:
                       

                        Tudo o que vemos, próximo ou distante,
                        O que é, senão o Deus da natureza?
                        Patente aqui nas obras mais humildes
                        Não menos que na esfera das estrelas.

                        Nos mares, na terra, esse Deus se avista;
                        Tudo o que existe é ele que sustenta;
                        Em tudo vive, e nunca se afastou
                        Das obras que criou, nem um momento:

                        O seu sistema, em leis gerais fixado,
                        Sábia causa primeira manifesta;
                        Governa imparcialmente a humanidade
                        E tudo quanto achamos sobre a terra.  

                        Imutável em tudo o que mudar parece,
                        O espaço ilimitado é o seu grande império;
                        A um só desígnio imenso sempre fiel,
                        Com ele não há tempo antigo ou novo.
 

                        Em todos os divinos atributos
                        A ilimitada perfeição reluz;
                        Assim envoltas e assim completas,
                        Aí convergem todas as virtudes.
 

                       Tal poder que os demais poderes suplanta
                        E que é afecto a toda a inteligência
                        Existe, como o maior e o melhor,
                        Pelos mundos todos, para os tornar felizes.
 

                        Tudo o que fez lhe agradou desde logo  
                        Em amor deu o ser às criaturas;
                        A tudo o que criou preside ainda,
                        Por todos zela, na vida ou na morte.
 

            Não será, porém, nesta linha de deismo racionalista que vamos encontrar a versão poética mais notável do sentido de nova criação associado à recente identidade própria assumida pelos Estados Unidos.  Entre os autores românticos - os “clássicos” da literatura norte americana -, é Walt Whitman (1819-1892) quem vai apresentar-se como o novo Adão de um Paraíso recuperado, combinando o optimismo prevalecente no século anterior com uma subjectividade exacerbada e com laivos de um misticismo panteista de matiz oriental. Na sua obra Folhas de Erva, cuja primeira versão, publicada em 1855, foi sendo acrescentada ao longo de edições posteriores, Whitman ultrapassa os limites habituais da convenção autobiográfica romântica, ao projectar o seu “eu” em dimensão universal,  e, no caso da secção  intitulada “Filhos de Adão”, identificando-se com o pai da humanidade, com podemos ver nos dois poemas seguintes:  

                        Ao jardim do mundo ascendendo de novo,
                        Prenunciando poderosos progenitores, filhas, filhos,
                        O amor, a vida dos seus corpos, o seu significado e o seu ser,
                        Contemplai, curiosos, aqui a minha ressurreição após o sono,
                        Tendo os ciclos que giram em suas vastas órbitas voltado a trazer-me,
                        Apaixonado, amadurecido, tudo para mim belo, tudo maravilhoso,
                        O meu corpo e o fogo palpitante que sempre o anima, por algum motivo, sumamente prodigiosos,
........................Existindo eu continuo a olhar atentamente e a descobrir,
                        Satisfeito com o presente, satisfeito com o passado,
                        Com Eva a meu lado ou atrás de mim seguindo,
                        Ou à minha frente, e eu a segui-la, tanto faz. 

                                                 --------------                         

                        Como Adão de manhã cedo
                        Saindo do meio do jardim retemperado pelo sono,
                        Contempla-me ao passar, escuta a minha voz, aproxima-te,
                        Toca-me, toca com a palma da mão o meu corpo enquanto passo,
                        Não tenhas medo do meu corpo.

              Podemos, assim, verificar, que, até ao século XIX, a obra da criação pressupõe sempre a existência de um plano divino que também confere sentido à vida humana, variando apenas a sua interpretação, que passa sucessivamente da concepção puritana atida à literalidade do texto bíblico para a perspectiva deista do racionalismo e, finalmente, retoma uma tonalidade religiosa na visão romântica, potencialmente panteista, em que o homem, corpo e alma, recupera a inocência e, em consonância com o universo, participa da natureza divina.

            Na viragem para o século XX, porém, novas teorias vêm abalar os fundamentos das convicções até então aceites, deixando sem resposta as questões metafísicas. Ora, na literatura norte americana, um dos texto que de forma mais radical reflecte a recusa de toda a tradição é, curiosamente, da autoria de um escritor conhecido em geral como humorista, Mark Twain, aliás Samuel Langhorne Clemens (1835-1910).  Na conclusão do seu conto O Desconhecido Misterioso, postumamente publicado em 1916, a personagem de nome Satan - Satanás - confronta o narrador com a “verdade”, reduzindo ao absurdo a existência do universo e do próprio indivíduo:

.............A própria vida é apenas uma visão, um sonho.

                                                (  ...   ...   ...   ... ...  )

.............Nada existe; é tudo um sonho. Deus - o homem - o mundo - o sol, a lua, a infinidade das estrelas - um sonho, tudo um sonho, não têm existência.  Nada existe além do  espaço vazio - e de ti!

                                                (  ...   ...   ...   ... ...  )

.............“Sonha outras coisas, que sejam melhores!”

                                                (  ...   ...   ...   ... ...  )

.............“É estranho, realmente, que não tenhas suspeitado que o teu universo e o seu conteúdo não passavam de sonhos, visões, ficção!  É estranho, porque são tão ingénua e histericamente disparatados - como todos os sonhos:  um Deus que  podia criar bons filhos tão facilmente como maus, mas preferiu criá-los maus; que podia tê-los feito felizes a todos, mas nunca fez um único feliz; que os fez gostar da sua vida amarga, mas a abreviou miseravelmente; que deu aos anjos a felicidade eterna imerecida, mas exigiu aos outros filhos que a merecessem; que deu aos anjos uma vida sem sofrimento, mas amaldiçoou os outros filhos com cruéis agruras e doenças mentais e físicas;  que prega justiça e inventou o inferno - prega misericórdia e inventou o inferno - prega Regras de Ouro, e o perdão multiplicado por setenta vezes sete, e inventou o inferno; que prega moral a todos os outros e ele é que não tem nenhuma; que condena os crimes, as os comete a todos; que criou o homem sem ninguém lho pedir e depois tenta impingir ao homem a responsabilidade dos seus actos, em vez de atribuí-la honestamente a quem compete, a si próprio;  e por fim, com uma estupidez  absolutamente divina, convida esse pobre escravo oprimido a adorá-lo!” 

                                         (  ...   ...   ...   ... ...  )

            “O que te revelei é verdade;  não há Deus, nem universo, nem raça humana, não há vida terrena, nem céu, nem inferno.  É tudo um sonho - um sonho grotesco e ridículo. Nada existe além de ti. E tu não és mais do que uma ideia - uma ideia  errante, uma ideia inútil, uma ideia sem abrigo, vagueando perdida no meio das eternidades vazias!”            

            É evidente que este niilismo, que, desconstruindo os textos bíblicos, aparentemente destrói toda a tradição cristã, nunca poderia manter-se como a última palavra acerca da criação, embora corresponda a uma atitude partilhada, sem sombra de ironia, por um número considerável de escritores norte americanos nas primeiras décadas do século XX, sendo talvez dos mais representativos Stephen Crane (1871-1900), um dos introdutores do Naturalismo, e, na chamada “Geração Perdida”, Ernest Hemingway (1899-1961).   

............Concluiremos, pois, esta brevíssima panorâmica com a leitura de um Coro de O Rochedo de T. S. Eliot (1888-1965), onde encontramos uma perspectiva diametralmente oposta à que acabamos de referir.  Esta escolha poderia parecer inadequada, uma vez que o autor procurou desvincular-se da tradição republicana e calvinista dos Estados Unidos, naturalizando-se súbdito de Sua Majestade Britânica e assumindo-se como anglo-católico. Mas precisamente esse seu regresso às origens representa a insatisfação com o hic et nunc característica da maioria dos escritores norte americanos contemporâneos. E o seu texto, que descreve a história espiritual da humanidade numa perspectiva cristã, parte da versão bíblica da criação que encontramos inicialmente no Catecismo seiscentista, e encerra o ciclo desde aí traçado, com uma pergunta que, embora dirigida a toda a Igreja, pode ser interpretada como interpelação directa àquela cuja tentativa gorada de estabelecer uma teocracia acabou por deixar como única herança à América e ao mundo o anseio do sucesso material que os puritanos concebiam ser sinal da eleição divina.    

"No princípio DEUS criou o mundo.  Desolação e vazio.
Desolação e vazio.  E trevas à face do abismo.
E quando já existiam homens, de múltiplas maneiras, atormentados, procuraram encaminhar-se para DEUS
Cegamente e em vão, porque o homem é uma coisa vã, e o homem sem DEUS é semente arrastada pelo vento:
levada em mil sentidos, sem encontrar lugar  para pousar e germinar.
Iam atrás da luz e atrás das trevas, e a luz impelia-os para a luz e as trevas conduziam-nos às trevas,
Adorando serpentes ou árvores, adorando demónios para adorar alguma coisa: 
clamando por vida para além da vida, por um êxtase que a carne não conhece.
Desolação e vazio. Desolação e vazio. E trevas à face do abismo.

E o Espírito pairava sobre as águas
E os homens que se voltaram para a luz e a luz reconheceu
Inventaram as Religiões Superiores; e as Religiões Superiores eram boas
E foram levando os homens de luz em luz, até ao conhecimento do Bem e do Mal.
Mas a luz deles estava sempre cercada e penetrada pelas trevas
Como na atmosfera dos mares cálidos irrompe o bafo mortal da Corrente do Ártico;
E quedaram-se em ponto morto, ponto morto animado por um vislumbre de vida, 
E ficaram com a expressão envelhecida e murcha das crianças que morreram de  fome.
Rodas de oração, culto dos mortos, renúncia deste mundo, práticas rituais de olvidado sentido
Nas areias inquietas fustigadas pelo vento, ou nos montes onde o vento não deixa a neve repousar.
Desolação e vazio. Desolação e vazio. E trevas à face do abismo."